quarta-feira, 31 de agosto de 2011

No Gerês, o banco do Ramalho Ortigão, por Raul Lino

Um mapa do concelho de Terras de Bouro indica, bem próximo da vila de Gerês, o “Banco de Ramalho Ortigão”. No entanto, na estrada, não há qualquer registo do monumento. Em conversa com um natural, fica-se a saber da localização – no lugar de Assureira, num jardim com ar abandonado, junto de uma rotunda, à esquerda de quem desce do Gerês para Rio Caldo. “Mas olhe que vai encontrar aquilo em mísero estado, ninguém conserva aquilo, tem sido destruído, já partiram parte da obra, mas ainda lá há uma inscrição.”
Aquilo terá sido espaço ajardinado e terá sido cuidado… há muito tempo, embora haja marcas de limpeza florestal recente. O banco lá permanece, com marcas evidentes de vandalismo, já sem a tal inscrição. “Até isso desapareceu há uns tempos… Sei lá se foi por ser em bronze…”, comenta outro local.
Muitas considerações poderiam ser feitas a partir daqui quanto ao estado do património ou quanto à responsabilidade de quem detém os espaços públicos. Aliás, os dois interlocutores confessavam que, desde que aquele espaço passou para a responsabilidade do Parque [Nacional da Peneda Gerês], a degradação do sítio tem sido crescente.
Ramalho Ortigão não se sentou naquele banco. Tendo falecido em 1915, a peça escultórica, com a assinatura de Raul Lino, só seria inaugurada em 1920, por iniciativa da Sociedade de Propaganda de Portugal, para homenagear o escritor. Ramalho Ortigão era visita do Gerês e escreveu sobre aquela região e sobre as suas termas. Amante das caminhadas, conta-se que as fazia longas e, no sítio onde foi implantado o monumental “Banco de Ramalho Ortigão”, costumava ele sentar-se sobre uma pedra, tendo sob o alcance da vista a paisagem do Rio Caldo.
Quanto à inscrição contida na placa, o seu texto contava a história e ainda se consegue ler na net (num blogue) a transcrição: “Em umas toscas pedras que os frequentadores do Gerez chamavam os bancos do Ramalho costumava vir aqui sentar-se lendo e escrevendo o notável escritor José Duarte Ramalho Ortigão que tanto honrou a sua terra e tanto quis a esta região. A Sociedade de Propaganda de Portugal no mesmo lugar mandou levantar-lhe esta singela homenagem delineada pelo arquitecto Raul Lino de Lisboa no ano de 1920”.
Assim, vale a pena que o mapa editado pela Câmara Municipal de Terras de Bouro indique a existência do “Banco de Ramalho Ortigão”, podendo o visitante conhecer uma obra de Raul Lino, manter a memória dessa figura importante da cultura do século XIX que foi Ramalho e… contemplar o que vai havendo de incúria e de menosprezo neste país! Que boa “farpa” estes quotidianos merecem!...

[fotos: Banco do Ramalho Ortigão em postal sem data e na actualidade]

Acordo Ortográfico na revista "Ler"

A história do mais recente acordo ortográfico ainda está muito mal contada. E, provavelmente, continuará mal contada. Já toda a gente percebeu que a aprovação deste acordo foi uma questão política de significado duvidoso – não foi uniformizada a ortografia entre os lusófonos, são permitidas variações ortográficas diversas mesmo para os lusófonos de um país, as bases do acordo permitem a confusão da pronúncia em algumas palavras, etc., etc.
O ano lectivo vai começar, sendo as escolas o primeiro espaço em que, oficialmente, vai entrar o acordo ortográfico, mas nem todos os manuais foram revistos em conformidade, o que até se compreende. Os periódicos lá têm vindo a aderir ao acordo, num gesto que pareceu inovação – afinal, devem, também eles pugnar pela ortografia –, mas muitos colaboradores não aderem a essa nova escrita e fazem questão de o dizer numa nota em final de artigo.
Poderá não tardar muito e vir aí uma lei proibitiva da ortografia tal como a praticamos hoje… em defesa de um acordo ortográfico que não dá garantias, de um acordo ortográfico que nasceu com o propósito de uniformizar e poupar e acabou como vemos!
A revista Ler, na sua edição de Setembro, vai abordar o tema. E, a adivinhar pela apresentação, promete!

Rostos (160)

Vitorino Nemésio, em scrimshaw (Museu de Angra do Heroísmo, Terceira)

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Encontros sadinos nos Açores (5) – Morgado de Setúbal

Há uns anos, um amigo trouxe-me do Museu Carlos Machado, de Ponta Delgada, um postal reproduzindo uma natureza morta do Morgado de Setúbal, dizendo-me que era o único quadro que havia reproduzido em postal. Embora algumas das obras do Morgado de Setúbal tenham vindo até à cidade do Sado em 2009, havia a curiosidade de ver o legado que a Condessa de Cuba deixou ao Museu Carlos Machado, constituído em grande parte por telas do Morgado de Setúbal.
No entanto, essa visita não foi possível, assim tendo sido mais um desencontro do que um encontro – é que, ao visitar-se o núcleo de arte sacra do Museu, exposto na Igreja do Colégio (com um altar que é o expoente do barroco português), a informação foi clara: não se podia visitar o núcleo principal do Museu por estar encerrado para obras. “Está fechado já vai para cinco anos e não se sabe quando abrirá…” Ao perguntar-se por reproduções dos quadros do Morgado, a resposta foi idêntica: “Havia um postal, mas já acabou há muito e tão depressa não haverá nova edição…”
Não sei se a melhor palavra para o estado de espírito é "estupefacção". Lá ficou o registo, no livro dos visitantes - o fascínio e a falta de palavras para descrever o altar barroco da igreja e também a falta de palavras para qualificar o encerramento do Museu... temporário de vários anos!
Uma pessoa com quem se falava umas horas depois confirmava este tempo de encerramento, explicado por politiquices que terá havido em tempos… Não sei se sim, mas não custa a acreditar, porque tem de haver margem para que o inacreditável exista!
[Foto: Igreja do Colégio, em Ponta Delgada]

Encontros sadinos nos Açores (4) – Joaquim Serrão

Joaquim Silvestre Serrão foi freire de Palmela, nasceu em Setúbal (1801) e acabou os seus dias em Ponta Delgada (1877), distinguindo-se como compositor de música sacra. Os Micaelenses não o esqueceram e erigiram-lhe uma estátua que pode ser vista no centro da cidade de Ponta Delgada, mesmo nas traseiras da igreja matriz de S. Sebastião.
A peça escultórica nem sempre esteve ali, mas, ao ser trasladada para este local, o setubalense Silvestre Serrão ganhou visibilidade, mesmo porque no pedestal, há as notas biográficas essenciais relativas ao período de vida.

Encontros sadinos nos Açores (3) – Resendes Ventura

Um dos encantos de uma ilha reside no percurso da sua costa, seguindo o perímetro. Em S. Miguel, a via rápida que ligará Ponta Delgada a Nordeste está ainda em construção e, por isso, outra maneira não há para chegar a esse ponto que não seja pelas curvas e contracurvas costeiras, ricas de paisagem e de surpresas.
Descendo de Nordeste para as Furnas, depara-se o viajante com Água Retorta, perto de Povoação, abrigada no fundo da montanha, a olhar o azul intenso do mar. No adro da igreja de Nossa Senhora da Penha de França, há um painel de azulejos com um poema em louvor da terra, ali colocado pela Junta de Freguesia em 2005.
“Terra Encantada” lhe chama o poeta ali nascido, Resendes Ventura de nome literário, que outro não é senão o livreiro setubalense Manuel Pereira de Medeiros.

Encontros sadinos nos Açores (2) – Roberto Ivens

Em Ponta Delgada, há uma rua apadrinhada por Roberto Ivens, em que o célebre explorador do século XIX tem direito a busto sobre alto pedestal, onde se informa a travessia do continente africano em 1884-1885, expedição que foi um misto de aventura e de coragem, de morte e de epopeia. O companheiro de Ivens foi o palmelense Hermenegildo Capelo e dessa viagem que ambos levaram a cabo num grupo de cerca de 120 homens ficou relato na obra De Angola à Contracosta, surgida logo em 1886.
Um e outro deram nome a escolas nos locais de nascimento: em Palmela, existe a Escola Básica 2, 3 Hermenegildo Capelo; em Ponta Delgada, a Escola Básica Integrada Roberto Ivens.

Encontros sadinos nos Açores (1) – Eduardo Carqueijeiro


A Caldeira, no Faial, é um monumento natural espantoso. Preenche em absoluto aquilo que podemos imaginar quando utilizamos a palavra “monumento”. Sumptuoso, belo, esmagador, impressionante, único. Um monte ao contrário ou o inverso de um vulcão. Apenas se pode admirar com o silêncio e a contemplação. Depois de uma alegre estrada bordada de hortênsias, a Caldeira parece surgir de repente, impondo-se. Indescritível.
Melhores descrições haverá da Caldeira, por certo. Mas o primeiro encontro com a Caldeira foi dado através de um quadro presente no Museu da Horta, intitulado “Mata (a caminho da Caldeira)”, datado de 2002, da autoria do setubalense Eduardo Carqueijeiro. Feixes de luz perseguem-se entre caules, quase a anunciar o cenário que a Caldeira é. A curiosidade pelo mistério da Caldeira espicaçou-se ali.
[Foto: Caldeira, no Faial]

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

José Augusto Seabra: a descoberta de Creta

Foi à imagem do palimpsesto que José Augusto Seabra recorreu, em A Luz de Creta (Lisboa: Edições Cosmos, 2000), para estabelecer a relação entre a ilha grega, as referências pessoais acumuladas sobre a ilha ao longo da vida e a escrita diarística que constitui o livro. A Luz de Creta assume uma escrita produzida num tempo de seis anos, correspondentes a outras tantas estadas na ilha, no período entre 1986 e 1997. Logo à partida, o livro chama a atenção para uma determinada forma de escrita, pois apresenta, abaixo do título, a indicação de “Diário Poético”, formulação que remete para géneros e para modalidades específicas.
Comecemos pelo “diário”. Escrita das descontinuidades do tempo, abarca os dias, sem dúvida. Mas também os anos. Aqui, é a passagem por vários anos (1986, 1988, 1989, 1991, 1994 e 1997), sempre em época de estadia em Creta, o encontro de um continuum na descontinuidade da vida. Desta mesma relação dá conta Seabra, ao registar no primeiro texto (“A Ilha”): “De viagem em viagem à ilha, foi-se adrede escrevendo um texto intermitente. Ele ganhou pouco a pouco (...) a forma de uma espécie de diário de mareante, de retorno em retorno a um porto”. Um pouco adiante, é o autor quem justifica o subtítulo atribuído à obra – “de escrita em escrita, o que se retraça é a cartografia íntima de uma viagem de circum-navegação, à volta de um espaço insular circunscrito mas aberto ao universal poético”. Isto é: a escrita surge como registo, como mapa de orientação, tentando conciliar algo cuja aproximação é impossível, ou, pelo menos, difícil.
A ilha tornou-se mais pessoal do que geográfica, dando azo à utopia, sendo povoada “dos nossos fantasmas” depois que, nos vários momentos de atracagem, foi possível “conhecer-lhe as costas irregulares, as cavernas recônditas, os relevos e as planuras, os córregos e os caminhos ínvios, os casarios e as gentes estranhas que a habitam”.
A Luz de Creta é também um diário cultural, no sentido em que o eu faz a colagem da história cultural nas suas múltiplas referências a Creta, num texto de reencontro do autor com o seu percurso e com a sua obra, num desvendar das atracções que de Creta lhe provocavam o fascínio, permanentemente mantido e cultivado desde a adolescência, tempo de leitura e de encontro com Ulisses e com o Minotauro (“o mito fascinara-me e perturbara-me de raiz”), motivador da ficção de uma personagem mista de “herói cívico e libertador”, passando pela marca da resistência de que, na Segunda Guerra Mundial, Creta se revestiu (ponto forte de combate entre ingleses e alemães, culminando em importante batalha aérea em Maio de 1941, época em que o autor tinha 4 anos), valores sobretudo fortalecidos em José Augusto Seabra pela leitura de Kazantzakis (“intérprete inesquecível da identidade do povo cretense”) e pela música e conhecimento pessoal de Theodorakis (que Seabra conheceu no exílio e com quem participou em manifestação contra a ditadura grega), não esquecendo ainda o eco trazido por Jorge de Sena no seu livro de 1969, Peregrinatio ad Loca Infecta, particularmente no poema “Em Creta, com o Minotauro”, evocativo do expatriado em absoluto e de um tempo de paz e de reencontro.
Este encantamento que prendeu Seabra a Creta, durante muito tempo mantido à distância e quase secreto, encontrou concretização já na década de 80 – “Só mais tarde, em 1984, pude pela primeira vez pôr pé na ilha desejada e temida”. Dessa primeira afloração à ilha não há diário, mas memória, sobretudo do entusiasmo vivido – “Sentia-me talvez com uma nova vocação de Teseu e confiava em Ariadna – leia-se: Norma – para desenrolar o novelo da viagem labiríntica. Ela foi de uma solicitude total e lá partimos nós para Creta, via Atenas”. Surge aqui um comprovativo da escrita autobiográfica, com a sobreposição das personagens principais deste diário a pessoas reais e conhecidas: José Augusto Seabra e Norma Backes Tasca, sua mulher. Dessa primeira abordagem a Creta, a memória ficou povoada pelas marcas do abrigo e da descoberta, sobretudo no domínio cultural. É a partir da referência a Norma Tasca que o sujeito “nós” passa a ter um valor de referência reduzido ao casal, uma vez que, antes, se afirmava como um equivalente mais global, diluído na generalidade dos humanos.
O primeiro texto de A Luz de Creta constitui um registo memorialístico, porque não apresenta data, relata a experiência de um eu e evoca um conjunto de indicadores que acabam por justificar os textos diarísticos que seguem. Afinal, este primeiro texto explica, quase em jeito de crónica, o aparecimento do diário ligado a Creta, mantendo a escrita sobre um eu na perspectiva dum tempo e dum meio primordiais, incitadores do que viria a seguir, o diário, em termos de escrita, ou as sucessivas viagens a Creta, em termos de experiência de vida. O que é, ou pretende ser, este diário? Nas palavras de Seabra, datadas de 31 de Julho de 1989, terceiro ano de diário de estadia em Creta, será “um tributo pago regularmente a Cronos, que aqui nos devora os dias e as noites”, um conjunto de “instantâneos breves, com a obsessão de sorver o tempo todo, em momentos raros de aproximação da plenitude: fóricos, disfóricos”, um acto que se impõe – “recomeçar este diário intermitente, de Creta em Creta reencontrada”, isto é, afirmando a possibilidade de o tempo ter intermitências sem ser repetitivo.
Os textos do diário alusivos a 1989 tinham já sido parcialmente publicados na revista Nova Renascença (“De um Diário Grego”. Nova Renascença. Porto: Associação Cultural “Nova Renascença”, vol. X, nº 39, Outono.1990, pp. 61-64). No entanto, há algumas diferenças entre os textos publicados na revista e os que constam em A Luz de Creta, por vezes revertendo a alteração a favor de um rigor da palavra, marcado pela economia, pelo ritmo e pela vantagem da metáfora; noutras passagens, a economia de palavras levou a uma redução no campo ideológico, ocorrendo mesmo a supressão de algumas reflexões.
Os momentos de chegada a Creta são sempre repletos de entusiasmo, seja ele devido ao encontro com um estado de harmonia, seja motivado pelo retomar do diário, seja graças à proximidade relacional com os lugares, seja pela preservação interior, seja pela necessidade de cumprir um ritual já assumido.
Simetricamente, os afastamentos de Creta são autênticas promessas de retorno, com uma quase ideia de “saudade grega”, indispensável, sempre registada no dia da partida, com a mais intensa despedida registada em 18 de Agosto de 1997, que constitui o derradeiro texto do livro, anunciando a interrupção do diário e afirmando a vinculação do diarista à liberdade cretense, numa associação de história, cultura e cidadania, em que não faltam as invocações a Camões e a Homero, referências inabaláveis, nem a promessa do regresso: “No mais, Musa, no mais: é o verso indelével que de Camões ecoa neste Egeu homérico, de que tenho de despedir-me por agora, na suspensão deste diário intermitente, escrito à luz da ilha solitária entre as vagas, num outro exílio onde aprendi, ao lado da companheira amada, a descobrir a habitação do ser, nas línguas que nela se mesclam… Voltarei, voltarei… Tal como, um dia, prometi à ‘pátria de joelhos’, assim agora o asseguro a esta nova pátria livre que é para mim Creta, mátria da Grécia e da Europa toda, de que Portugal é o rosto com que fita o Ocidente, futuro do passado.” A obra encerra-se, assim, com a descoberta da liberdade, que só poderia acontecer após outra importante descoberta – a do eu –, uma e outra construídas no diário – no registo de 1 de Agosto de 1997, escrevia: “Renasci, como se emergisse do tempo, num lento amanhecer ao sol irradiante, que nos entra pelo corpo todo, desde o olhar às pregas mais íntimas. Era a luz de Creta a germinar entre o céu, terra e mar, em cada elemento mínimo do ser.”
As referências a autores ocorrem em abundância, sejam eles portugueses (Pessoa, Camões, Almada, António Ferreira), sejam do mundo clássico (Homero, Sófocles, Ésquilo), sejam gregos (Cavafis, Seferis, Kazantzakis), sejam contemporâneos (Barthes, Darío, Steiner, Yourcenar, entre muitos outros), ao mesmo tempo que desfila uma galeria de personagens míticas (Zeus, Europa, Ariadna, Dédalo, Minos, Afrodite, Apolo, Diónisos, Édipo, Antígona, Cronos), num percurso que pretende, cada vez mais, lidar com uma ideia universal de cultura e de pensamento a partir de uma ilha que terá sido a mãe da civilização. Todas estas figuras, naquilo que elas representa(ra)m para a cultura, surgem por oposição a uma ideia de caminho para a decadência que a sociedade parece estar a seguir.Mesmo refugiado na paz de Creta, o diarista não se ausenta do mundo e tenta, pela televisão ou pelos jornais atrasados, o contacto com o universo. Foi durante estadas na ilha que aconteceram factos como a liderança de Walesa na Polónia, as consequências da queda do Muro de Berlim, os conflitos com os albaneses refugiados, a destituição de Gorbatchov, entre outros. A propósito de todos estes eventos, Seabra não esconde o seu sentir de cidadão, ora manifestando a vergonha por os comunistas portugueses terem apoiado a ocupação de Praga em 1968, ora mostrando a preocupação do ritmo do mundo – “Não podemos dormir tranquilos, mesmo nesta Creta sonolenta” era o pesar manifestado em 19 de Agosto de 1991, aquando da destituição de Gorbatchov, numa altura em que a humanidade não sabia que rumo iria orientar o mundo, em resultado do caminho a seguir pela Rússia – o avanço da liberdade ou o retrocesso para o estalinismo.
As suas interrogações remetem sempre para o futuro, num misto de dúvida, mesmo quando a reflexão paira sobre o que lhe está próximo – em Creta, em 7 de Agosto de 1989: “E o mar? Será ainda o futuro para este povo? Poderá ele viver só das divisas do turismo? Ou será necessário encontrar outras formas de trabalho criador, sem perda da sua identidade nem da alegria de viver nas suas tradições? Como é que a democracia grega, recuperada, está a encarar a educação profissional, enxertando-a na antiga civilização e cultura, de modo a abrir estas comunidades à modernidade?” De dúvidas parece ser o futuro, porque, quanto ao passado, uma certeza é inabalável, resultante de um sentir humanista, que valoriza a relação do homem profundamente ligado à cultura, vector muito acentuado em Seabra: “A civilização é, de facto, o que perdura, através das barbáries”.
A permanência em Creta, para lá da intensidade pessoal que possa transmitir a ideia do refúgio, afigura-se também como uma deificação das personagens, se não pela mudança de estatuto, pelo menos pela possibilidade de convívio dos humanos com o divino, à semelhança da camoniana Ilha dos Amores, em que o prémio foi a aproximação dos nautas portugueses das deusas, assim os elevando à mesma categoria: “Inundados de azul, abrimo-nos ao céu olímpico dos deuses, que nos revisitam com o seu rumor silencioso e fugidio, como seres imprevisíveis”! Que contacto é este senão o teste ao lugar do eu? Este diário, contendo testemunhos pessoais, mesmo partilhados por duas pessoas (Seabra e Norma), acaba por corresponder àquilo que Clara Rocha definiu como constante dos géneros autobiográficos (“A Poética dos Géneros Autobiográficos”. Nova Renascença. Porto: Associação Cultural “Nova Renascença”, vol. X, nº 39, Outono.1990, pg. 18), apesar da esperada evolução da sua poética: “trata-se sempre de procurar o lugar do eu no mundo, de sondar os mistérios do destino e de conhecer melhor a natureza humana”.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Rostos (159)

Monumento ao Trabalhador Agrícola, na Chamusca

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Máximas em mínimas (69)

MUDANÇA
“Em tempo de mudança ocorrem, com frequência, coisas que em demais ocasiões dificilmente se passariam. E nós, sem darmos conta, a elas nos habituamos, acabando o inusitado por converter-se em acontecimento comum. Rota a textura que nos liga, os actos dependem então da contingência de cada um e só a continuidade no tempo e no espaço une os factos desconexos.”
Arlindo Barbeitos. “O Carro”. O Rio – Estórias de Regresso.
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Raul Brandão: de que cor são os Açores?

Em 13 de Maio de 1924, Raul Brandão escrevia a Teixeira de Pascoaes carta em que dizia: “Vou partir para Lisboa dentro de alguns dias e no dia 5 de Junho para os Açores (…). Conto demorar-me por lá dois meses e trazer notas para Os Pescadores e Os Lavradores e naturalmente um volume As Ilhas Desconhecidas sobre o Corvo, as Flores e o Pico.” Quando regressou, já datada da casa do Alto, de 7 de Setembro, Brandão enviava missiva ao amigo, rejubilando: “A viagem aos Açores foi esplêndida. Deve dar um livro interessante – quando eu o puder escrever.” (Raul Brandão – Teixeira de Pascoaes: Correspondência. Org.: António Mateus Vilhena e Maria Emília Marques Mano. Lisboa: Quetzal, 1994).
Dois anos depois saía, com efeito, As Ilhas Desconhecidas, conjunto de momentos e de retratos dessa viagem noticiada a Pascoaes, com registos datados do período entre 8 de Junho (a bordo do “S. Miguel”, rumo ao Corvo) e 29 de Agosto de 1924 (embarcado na Madeira para regressar ao continente). Na abertura, “em três linhas”, Brandão explica: “Este livro é feito com notas de viagem, quase sem retoques. Apenas ampliei um ou outro quadro, procurando sempre não tirar a frescura às primeiras impressões. (…) Não poder eu pintar com palavras alguns dos sítios mais pitorescos das ilhas, despertando nos leitores o desejo de os verem com os seus próprios olhos!...”
As notas reunidas por Brandão assinalam as emoções do viajante, mesmo aquelas que dão para reflexão sobre os mais caros temas ao homem, como a vida e a morte e a fronteira que as une – logo no primeiro capítulo, para descrever a fragilidade do barco, refere: “Toda a noite esta coisa complicada que é um transporte a vapor range pavorosamente como se fosse desconjuntar-se; toda a noite sinto a água bater no costado e a máquina pulsar contra o meu peito. A ideia da morte não nos larga: separa-nos do caos um tabique de não sei quantas polegadas.” O título do livro deixa adivinhar o que era o conhecimento destas ilhas na década de 1920 e todos os registos brandonianos caminham no sentido de anular esse desconhecimento, seja pelo tempo lá passado (longo, ainda que por causa dos transportes, cheio de minúcia e de descobertas), seja pela observação e chegada ao interior das pessoas e traçado dos elos que as ligam à paisagem.
As imagens das ilhas são surpreendentes – sobre S. Jorge: “Esta ilha esguia, que parece um grande bicho à tona de água, mostra-me no focinho penedos aguçados como dentes”; sobre o Pico: “uma nuvem branca e esguia cortou o Pico pelo meio e o cone sai da nuvem suspenso no ar por milagre” ou “está ali presente como um vagalhão que vai desabar sobre o Faial”; sobre as Sete Cidades: “as Sete Cidades é também a alma duma paisagem. As grandes paisagens que morrem a alguma parte hão-de ir ter… Deus colocou-a aqui, delicada e virgem, no fundo desta cratera tremenda, entre o fogo e o caos; rodeou-a de solidão e de montes; pôs-lhe à volta, para a defender, o mar”; sobre o Corvo: “O Corvo é uma democracia cristão de lavradores”; sobre as ilhas: “o espectáculo imenso que se desenrola diante de meus olhos atónitos dá-me impressão de que as ilhas nascem do mar e se vão formando à nossa vista pela mão do criador”.
As figuras humanas merecem um tratamento de proximidade, quer pelo relato das histórias de vida ouvidas, quer pelo tratamento das personagens pelo seu nome real, quase dando a impressão de que o narrador-viajante se integrara na família e se apropriara dos seus segredos. Outra coisa não seria de esperar de quem, a dada altura, estipula como princípio seu: “Aqui só uma coisa a fazer: não é olhar para fora, é olhar para as almas”. E é o mundo do trabalho, a dificuldade de viver, a comunidade, a solidão, a ligação da homem ao território, um conjunto de recursos da paleta humana ao dispor do observador.
Da paisagem açoriana sobressaem a cor, os campos, as quintas e jardins. Circulando no Faial, deixa-se cativar pela tonalidade das hortênsias para desabafar: “O homem que teve a ideia de bordar as estradas com estas plantas devia ter uma estátua na ilha”. Aliás, esta preponderância das hortênsias e do seu azul-ferrete levá-lo-á a definir a cor açoriana – “o azul que enche a terra e nunca mais acaba e que é talvez o verdadeiro céu dos Açores”.
É um viajante sequioso de conhecimento e de contemplação que se vai conhecendo a si próprio até ao ponto de dizer, inebriado pela maravilha e sensibilizado: “Já percebi que o que as ilhas têm de mais belo e as completa é a ilha que está em frente”. Esta ideia de infinito, de resto, perpassa várias vezes e, conjugada com o deslumbramento que sente pela riqueza dos caracteres humanos – haja em vista o capítulo sobre a caça à baleia ou aqueloutro em que fala dos pescadores, por exemplo – o viajante nestas ilhas deixa-se arrebatar: “Oh! Quem me dera ser patrão dum barco e ir de ilha em ilha abicar aos portos, de barrete azul adebruado de vermelho na cabeça e a mão no leme”…
À Madeira dedica Brandão capítulo curto, em que, apesar de apreciar a cor, mais quente, lhe fica a sensação dominante de algum desconforto – “Esta ilha é um cenário e pouco mais – cenário deslumbrante com pretensões a vida sem realidade e desprezo absoluto por tudo o que lhe não cheira a inglês. Letreiros em inglês, tabuletas em inglês e tudo preparado para inglês ver e abrir a bolsa.” Esta conclusão servir-lhe-á para um retrato social impiedoso dos madeirenses: “Cada vez se cava mais funda a separação entre as classes chamadas superiores e as outras. O que se faz neste país é um crime que havemos de pagar muito caro”. Em causa estavam também conceitos de turismo, entre a familiaridade e a indústria que começava a ser: “Detesto o turismo e adoro a hospitalidade. (…) Uma nação não deve ser um hotel – e Deus nos livre que o seja!”
Apesar desta sensibilidade na apresentação do que eram as “desconhecidas” ilhas, Brandão não se consegue desviar do seu estatuto de visitante. Ainda em S. Miguel, no início desse Agosto, escreverá: “Devo dizer que já me cansa um pouco e que anseio por outra luz… Começo a ter saudades do velho muro do meu quintal, tostado do sol, onde se criam as sardónicas, os líquenes amarelos e rosados, e até mesmo as pedras amadurecem como as uvas!...” E o relato desta viagem terminará com essa homenagem à luz, quando, já na bacia de Cascais, fotografa: “a luz irrompe, uma luz alegre, uma luz que vibra toda, uma luz em que cada átomo tem asas e vem direito a mim como uma flecha de oiro. No céu imenso e livre, o sol bóia como num grande fluido. Portugal!...”
O que entusiasma na escrita de Brandão é essa multiplicidade da cor, fortemente matizada, intensamente definida, algo que decorre de uma escrita que navega sobre a sensibilidade. Como António M. B. Machado Pires referiu no prefácio de As Ilhas Desconhecidas (Col. “Obras Completas de Raul Brandão”. Lisboa: Editorial Comunicação, 1987), “Raul Brandão era um emotivo, no que esta palavra, de semântica vaga, quer significar de predomínio das primeiras impressões e sentimentos sobre a elaboração cerebral, uma espécie de ‘matéria-prima’ de sentimento, ‘em bruto’, passada ao papel: assim escrevia principalmente Brandão.”

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“As figuras horríveis da vida e do inferno não são as atormentadas – são aquelas cujos traços se esquecem.”
“Nenhum sonho se chega a concluir – o sonho não cabe no mundo.”
“A exuberância, quando é impetuosa, fica a dois dedos da destruição.”
“O mar é a vida – mas o mar é também a imagem da realidade ou do inferno, que é tudo a mesma coisa.”
“Quem pode acreditar na morte, no frio horrível e eterno, diante da natureza que nos estende os braços cheia de flores e de perfumes em pleno inverno?”

Rostos (158)

Nossa Senhora "Frutos Divinos", por Alberto Miguel (1980), em Óbidos

domingo, 14 de agosto de 2011

Urbano Bettencourt - uma escrita fina...

... de ironia inteligente, com humor quanto baste, divertida, que mexe com o leitor.
Um exemplo?
Este, retirado de Que Paisagem Apagarás? (Ponta Delgada: Publiçor, 2010), que, em boa hora, foi apresentado em Setúbal pelo Manuel Medeiros há uns meses. Ei-lo:

Vida Social
Ele frequentava muito a literatura.
Para falar de gastronomia, citava o lascivo e doce passarinho de Camões. Os transportes marítimos não passavam sem dois ou três versos do poeta Alegre. A ecologia vinha, por norma, acompanhada de uns excertos de Sophia. O boletim meteorológico pendia sempre para umas frases de Nemésio. E até os problemas oftalmológicos desembocavam fatalmente em Saramago.
Era o perfeito socialite da literatura.

sábado, 13 de agosto de 2011

D Manuel Martins e a crise social em entrevista

D. Manuel Martins, bispo emérito de Setúbal, nos seus 84 anos, tem entrevista publicada no Expresso de hoje, assinada por Joana Pereira Bastos e Valdemar Cruz. A crise social foi o pretexto para este encontro. E D. Manuel Martins manteve-se fiel ao seu pensamento e à sua prática de anos, quando era prelado na cidade sadina. Ficam alguns excertos.

Situação – “Agora estou convencido – oxalá não seja assim – de que estamos numa situação má, amanhã vamos estar numa situação pior e depois de amanhã vamos estar numa situação péssima.”
Governos de Sócrates – “Na minha opinião governaram mal, com falta de respeito por nós. Governaram pior Portugal do que se fosse uma quinta pessoal, porque se fosse uma quinta pessoal com certeza que a estimavam, que a tratavam bem, que a fariam render.”
Governo de Cavaco Silva – “Criou-se uma inconsciência social de irresponsabilidade. Era toda uma política económica irresponsável, que fomentava a distribuição de cartões de crédito.”
Costumes – “Isso dos brandos costumes são histórias. Temos boa gente, mas quando for preciso também deixamos de ser boa gente. Tenho muito medo disso.”
Esperança – “Quando foi a queda do Muro de Berlim acreditei que tinham finalmente acabado as guerras. Depois veio a dos Balcãs e já fiquei um bocadinho desiludido. Depois veio a União Europeia e eu acreditei que seria uma associação de iguais, em que os pequenos podiam valer tanto como os grandes, mas não é nada disso. Os países pobres, mesmo todos juntos, não são capazes de derrotar a vontade de um dos ricos – da Alemanha ou da França. É uma Europa esfrangalhada, desorientada, que é a dois e não a 27. Ao fim e ao cabo, fomos associar-nos para engordar mais aqueles cavalheiros e nos minimizarmos a nós. Queimaram-se os campos, as vinhas, destruíram-se as produções, acabou-se com as pescas. (…) Era apenas para se venderem os produtos deles.”
Campo – “Se ao menos fôssemos capazes de voltar ao campo, já não tínhamos fome. As crises às vezes são oportunidades… Se esta nos levasse novamente ao campo, não para ficar lá, mas para aproveitar as riquezas que nos dá, libertava-nos de muita importação.”
Assistência – “A Igreja faz festas muito bonitas e esquece-se de vir para o meio daqueles que sofrem. Tem acordado muito, mas as atitudes que tem tomado são mais no sentido da assistenciazinha, da caridadezinha. Tem de ir mais longe. Ela mesma tem que dar sinais.”
Sinais – “Devíamos ser capazes de vender esse ouro todo que anda ao pescoço dos santos nas procissões. Os cordões e os anéis que o povo quer ver pendurados nos santos, para que prestam? Podem prestar para um salteador, mas não para um santo. Porque não vendemos isso tudo, deixando só as coisas de valor histórico e artístico? A Igreja é um grande sinal do amor de Deus no mundo e deve reflectir o rosto materno de Deus.”

Ivan Cankar: a procura da justiça

Data de 1907 esta história A Justiça de Yerney (Col. “Nova Europa”. Lisboa: Cavalo de Ferro Editores / Grande Reportagem, 2004), construída pelo esloveno Ivan Cankar, e, apesar de mais que centenária, mantém a frescura da parábola, abordando a prática e a ética da justiça.
A narrativa estende-se por dúzia e meia de capítulos, depois de, como abertura, se ler um parágrafo como este: “Vou contar-vos esta história tal como aconteceu, com toda a sua injustiça e com toda a sua enorme tristeza. Não encontrareis nela períodos bem elaborados, nem ficções, nem hipocrisia.” Fica então o leitor a saber que A Justiça de Yerney é uma história sobre a injustiça.
Enterrado o velho Sitar, dono de vasta propriedade, quando ainda a família se recompunha do funeral, o feitor Bartholomew, tratado por Yerney, recebeu ordem do herdeiro e sucessor no sentido de abandonar as propriedades e as suas funções. Incrédulo e esmagado pela secura do novo patrão, Yerney inicia uma peregrinação no sentido de ser praticada a justiça, de defender os seus direitos, sem que ninguém tenha de ser castigado. Em causa estava a sua velhice e o facto de ter sido o seu trabalho que deu vida, durante mais de quatro décadas, à propriedade de Sitar. Como, pois, podia ser escorraçado sem direito a mais nada que não fosse uma trouxa com a roupa e umas botas que teria de carregar aos ombros durante a sua peregrinação?
A partida de Yerney é comovente, com um narrador que, logo desde início, toma o partido desta personagem – “Não havia um punhado de terra que não tivesse as marcas da labuta das suas mãos, do suor da sua fronte. Um homem vive um ano, dez anos, quarenta anos numa casa e nota que a casa se torna semelhante a ele como um irmão, e existe um laço de amor entre eles. E se, em obediência a uma ordem cruel, ele é obrigado a ir para um local distante, vai chorar mais por aquela casa que por um irmão, ou ainda mais do que chorou noutro tempo pela sua mãe.”
O calvário de Yerney arrasta-se de porta em porta, sempre contando a mesma história em busca da justiça em que acreditava, mas só uma figura desamparada e sem abrigo como Gostach, que aparecia de vez em quando, o adverte para o risco da empreitada – “Yerney, não discutas acerca de direitos e injustiça das leis dos homens e dos mandamentos de Deus. Já o fiz e olha: agora sou vagabundo e não tenho amigos.” Terá sido este o único sábio que o velho feitor encontrou (reconhecê-lo-á mais tarde), surgindo-lhe logo no início da caminhada, mas a que não deu importância pois tinha esperança e acreditava na justiça.
O roteiro de Yerney passa pelo Presidente da Câmara, pelos camponeses, pelas crianças, pelo tribunal de Dolina, pelo tribunal de Ljubljana, pela tentativa de apresentar a sua questão ao imperador em Viena (a Eslovénia integrou o império austro-húngaro até 1918), pela conversa com um padre. São tantos os interlocutores quantas vezes a história é contada, sempre na mesma versão, invariavelmente exigindo o mesmo – defendendo o seu direito a estar na casa que construiu, sem que o castigo seja aplicado a ninguém. Pelo caminho, Yerney faz-se acompanhar pela sua verdade, pela sua esperança e pelos diálogos que vai tendo com o Deus em quem acredita. Mas, em todas as portas a que bate, recebe o castigo da desconsideração, sendo preso duas vezes e encarcerado com criminosos, não tendo chegado a ver o imperador, sendo menosprezado e exposto ao ridículo. Quando achava que iria encontrar a justiça junto de um padre, o que ouviu, no meio da discussão em que questionava a existência de Deus, foi a ordem “Fora, blasfemo!”
O último capítulo é o da justiça praticada por Yerney, assim justificando o título da narrativa. Em terra onde faltava a justiça, o velho feitor constrói a tragédia e é vítima do incêndio que ateou e do ódio dos camponeses que com ele tinham trabalhado. Destruição dantesca, que surge ainda mais fulminante porquanto a justiça se mostrou pelo seu lado negativo. E, em jeito de parábola, para que o leitor entenda a lição, o narrador conclui: “Isto passou-se em Betajnova. Deus tenha misericórdia de Yerney, dos seus juízes e de todos os pecadores.”
A escrita de Cankar conforma aqui as marcas do romance psicológico, com o leitor a acompanhar o drama pessoal de Yerney segundo a sua sensibilidade, perante a insensibilidade dos outros. Por outro lado, esta busca da justiça é também uma sátira à forma como ela é praticada, haja em vista que é nos tribunais que Yerney é mais humilhado e mais incompreendido, onde vê mais hipocrisia. O leitor deixa-se impressionar pela força que jorra desta personagem, um Yerney sobretudo espiritual, que, com cada passo que dá, mais se vai aproximando do seu martírio, imposto quando a esperança lhe morreu.

Marcadores
Lamento – “O lamento é como uma semente que produz mil vezes mais. Logo que cai sobre o coração multiplica-se tão rapidamente que o coração fica sufocado, tão sufocado que a esperança não pode irromper.”
Caminho – “O caminho pode ser muito longo, o trilho pode ser muito difícil e juncado de pedras e espinhos. Mas, um dia, o caminho terá o seu fim; um dia, a porta abrir-se-á. Deus não escondeu a Sua Justiça como um avarento esconde o seu dinheiro.”
Justiça – “A justiça é uma senhora severa e exigente e não gosta que lutes contra a sua vontade. Se, apesar de estares inocente, ela te acusar de homicídio – então é porque mataste: não há dúvida alguma; se te acusa de roubo – então, é porque roubaste com ambas as mãos. Podes jurar que não mataste ou não roubaste – será um infortúnio. É mais prudente confessares-te culpado: confessar algum crime imaginário, algum roubo imaginário, pois deste modo mostrarás quão humilde és e como estás arrependido… Essas são as almas de que gosta a justiça, apesar de poderem pertencer aos mais cruéis pecadores. A justiça não gosta de corações empedernidos; ela não aprecia a inocência.”
Coração – “O coração fica mais calmo quando chora do que quando ri, e todos os pecados, todas as injustiças são levadas pelas lágrimas.”

Rostos (157)

D. Dinis, em Ourique

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Máximas em mínimas (68)

Voltar a um lugar
"Pode voltar-se sempre. Se foste muito feliz, volta e revive a felicidade, e, se foste triste, volta e vê se consegues pôr harmonia onde antes havia tristeza."
Pilar del Río. Visão. Lisboa: nº 961, 04.Agosto.2011, pg. 94.

Gabriel García de Oro: "Storytelling", o saber que as histórias desvendam


Terão as histórias efeito mágico? Poderão elas integrar uma rede responsável pelo reforço relacional, um poço de saberes úteis para a vida e para os sistemas a que pertencemos?
Lê-se Storytelling, de Gabriel García de Oro (Lisboa: Gestãoplus Edições, 2011), e regressa-se ao tempo em que as fábulas e as pequenas histórias povoavam o nosso imaginário. Com uma diferença: na infância pretendia-se criar um mundo mágico, universo infantil povoado por seres extraordinários, com algumas moralidades que eram entendidas de imediato mas cujo alcance ficava para um futuro; agora, as conclusões constituem o mais importante nicho que rodeia as histórias, anedotas umas, episódios verdadeiros ou verosímeis outros, narrativas da antiguidade e de livros sagrados ainda outras, quadros banais e quotidianos alguns. O subtítulo do livro, “A Magia das Palavras”, valoriza a força do verbo; o balão promocional que se lhe segue apresenta o género – “fábulas, anedotas e histórias dos melhores MBAs”.
São quase cinquenta histórias, que dão outros tantos capítulos, acompanhadas por comentários e moralidades, vocacionados para a orientação das relações no mundo do trabalho, da empresa, ou apenas para orientação na vida.
No final, um guia temático, metaforicamente chamado “Caixa de primeiros socorros da empresa”, serve como roteiro que alia cada uma das histórias a uma das áreas de intervenção abordadas – informação, segurança em si mesmo, preconceitos, ganhos, estratégia, sucesso, gestão de equipas, pensamento lateral / criatividade, gestão do tempo, gestão do poder, crises, atitude, planificação, males da empresa e negociação.
O livro é de leitura fácil, dada a curta extensão de cada capítulo e o facto de os comentários irem ao essencial. Torna-se eficaz e directo, surpreendendo o leitor pela pertinência das reflexões a partir de histórias por vezes banais ou que poderiam não ir além da anedota.
Um exemplo?
Quando ele e ela estavam a tomar banho, a campainha tocou. Acedendo ao pedido dele, foi ela quem se enrolou na toalha e se dirigiu à porta. Abriu, porque era pessoa conhecida, vizinho. Ao vê-la, disse-lhe que lhe daria mil euros se deixasse cair a toalha, oferta que fez a mulher pensar. A insistência foi até ao ponto de o vizinho exibir as duas notas de 500 euros. A tentação dominou-a e a toalha caiu. Ele contemplou a mulher, remirou-a, deu-lhe o valor prometido e despediu-se. Quando chegou à casa de banho, explicou ao marido quem tinha vindo bater à porta. “Ainda bem… Devolveu-te os mil euros que lhe emprestei?”, perguntou ele.
Todos somos levados a pensar, e com razão, que ela passou por uma situação ridícula. Mas só chegamos aí depois de conhecermos a pergunta final, isto é, apercebemo-nos do ridículo quando a mulher o sente também.
Que comentários suscita esta história ao autor? Todos vão no sentido da partilha da informação e da necessidade de se estar informado. E a conclusão de García de Oro é: “Partilhar e estar na posse de toda a informação necessária evita que nos exponhamos ao ridículo e que nos vejamos em situações de clara desvantagem.” Na tal caixa de primeiros socorros, esta história tem entrada em dois grupos – o da informação e o dos males da empresa.
A vantagem deste livro advém da força das curtas narrativas, que valem mais, muito mais, do que as largas considerações sobre as melhores formas de se agir.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Rostos (156)

Painel cerâmico, na entrada do Mercado de Nossa Senhora da Conceição, em Setúbal
Luciano dos Santos (1959)

Duarte Ivo Cruz e a Índia no teatro português

Apesar de a Índia ser o grande motivo da epopeia camoniana, a verdade é que ela não constitui uma temática forte na dramaturgia portuguesa, sendo ultrapassada por outros momentos históricos. No entanto, os textos dramáticos portugueses que abordam a Índia pautam-se pela qualidade, ainda que tendo como motivação comemorações ou figuras e com uma visão a partir de Portugal. Este é o ponto de partida de Duarte Ivo Cruz na obra O Tema da Índia no Teatro Português (Col. “Essencial”. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2011).
Facilmente nos recordamos de Gil Vicente, o pai do teatro português e também o responsável pela inserção desta temática no texto representado, haja em vista o Auto da Índia, representado em 1509, em tom crítico e até contundente, “politicamente incorrecto”, dirá Duarte Ivo Cruz. No entanto, o rumo alterar-se-á e o teatro dará primazia às terras de África no que ao fenómeno da Expansão diz respeito.
Ivo Cruz faz a revisão essencial – correspondendo ao desígnio que norteia a colecção, de resto – da dramaturgia ligada à Índia, passando por nomes como Camões (mesmo porque o seu Filodemo foi lá estreado em 1555), António Ferreira (Fanchono, 1554) ou Simão Machado (Comédia do Cerco de Diu, 1601), entre outros, mencionando também o teatro que era feito a bordo ou o que tinha propósitos missionários.
A época romântica, mesmo pela dinâmica que ao teatro incutiu Garrett, dará alguma importância à Índia, mas sem elevado compromisso. Marco importante para o temário da Índia no teatro português é o final do século XIX, aquando da comemoração do quarto centenário da viagem do Gama, com direito a concurso nacional, tendo-se falado das obras de Marcelino Mesquita, Silva Gaio, Lobo de Ávila ou Júlio de Castilho, entre outros nomes. No entanto, algumas das obras não chegaram a ser representadas e outras nem foram publicadas.
Apesar de nesta temática terem investido nomes importantes, como Lopes de Mendonça, Carlos Selvagem ou Ramada Curto, a verdade é que outros dramaturgos de relevo do século XX e mais recentes, como Romeu Correia, Natália Correia, Helder Costa ou Luzia Maria Martins, procuram a Índia apenas através de personagens que por lá passaram, o que leva Ivo Cruz a considerar que “o século XX, e já agora, esta primeira década do século XXI, deixa cair em parte o temário indiano”.
A conclusão só pode ser uma: “A Índia, como realidade concreta e quotidiana, mas sobretudo como expressão histórica, constitui de facto um dos temas centrais da dramaturgia portuguesa: mas (…) fica muito aquém, pelo menos em quantidade, do grande tema da Expansão e da colonização africana”.
A retrospectiva sobre este tema é rápida, mas elucidativa. As obras referidas não são analisadas com delongas, mas ficam as referências para mais aturada leitura. Ivo Cruz consegue provar o essencial da sua tese – a da riqueza do tema, em simultâneo com a pobreza quantitativa da produção. Questão genuína de Portugal? O autor não o diz, mas conclui o seu percurso com uma citação de Luís António de Araújo, de 1779, que, ao analisar as causas da decadência do gosto no teatro, escrevia: “Ah! E de que prejuízos não enchem o público aqueles que só se ocupam em lisonjear-lhes as suas paixões! Por isso vemos mais sujeitos inclinados a ler a história de Carlos e Rosaura do que a de Vasco da Gama!” Será que esta pergunta não tem actualidade, nesta como noutras áreas?

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Antonio Tabucchi, «Mulher de Porto Pim»

Mulher de Porto Pim é um livro de Antonio Tabucchi (Lisboa: Difel, 1986) que tem como motivo os Açores, escrita que surge como resultado de uma estadia no arquipélago, ainda que não se trate de um diário de viagem (“género que pressupõe tempestividade de escrita ou uma memória impermeável à imaginação que a memória produz”).
Aqui se fala de naufrágios, dos baleeiros, da caça à baleia (valendo a pena comparar a narração de Tabucchi com a que Brandão também nos legou em As Ilhas Desconhecidas, da década de 1920), de conversas ouvidas, de histórias contadas e de Antero, essa figura que “sofria de infinito”.
Há história e impressões, há experiência de viajante e de curioso. E há anúncios que passam pela história das baleias e dos açorianos – a baleia como arquétipo e a premonição do fim dos baleeiros (no final do episódio da caça, quando o velho Carlos Eugénio quer saber o motivo de o visitante ter querido participar na saga, há a hesitação e o desabafo: “talvez porque ambos estão em extinção, digo-lhe por fim em voz baixa, vocês e as baleias, penso que foi por isso.”) E há uma narrativa, confiada pelo narrador Lucas Eduíno, que toma para título o homónimo do livro – “Mulher de Porto Pim”, história de Yeborath, cume de beleza, morta com um arpão, narrativa a que não falta a intriga amorosa, a prisão, a morte, o sentimento da traição, o triângulo amoroso, numa acção algo ao gosto camiliano. E há, no final, como “post scriptum”, a personificação num texto como “A baleia que vê os homens”, algo irónico, que deixa o cetáceo a pensar sobre os homens: “percebe-se que são tristes”.

Marcadores

Histórias - «Todas as histórias são banais, o importante é o ponto de vista.»
Curiosidade - «A curiosidade é sempre um óptimo guia.»
Vida - «Por vezes, os passos da nossa vida podem ser guiados pela combinação de poucas palavras.»
Livros - «Todos os livros são estúpidos, há sempre pouco de verdadeiro neles, e contudo li muitos nos últimos trinta anos.»
Mulher - «Uma casa sem uma mulher não é uma verdadeira casa.»
Traição - «A traição verdadeira é quando sentes vergonha e desejarias ser outro.»

domingo, 7 de agosto de 2011

António Guerreiro, a escola e Camilo


Na crónica “Ao pé da letra” publicada na revista “Actual”, no Expresso de ontem, António Guerreiro voltou a reflectir sobre o vazio de significado que algumas palavras transportam, tomando o caso de nomes com que, nos últimos tempos, se tem feito o ramalhete da crítica ao sistema educativo – “eduquês” e “facilitismo”, termos fáceis para esconder as razões menos boas no próprio sistema.
No mesmo saco mete Guerreiro o lamento por Camilo não integrar os programas do ensino secundário, no que me parece ser um “esticar a corda” desnecessário, mesmo tendo em conta as considerações que faz para as ausências da escrita camiliana.
Lamentar o silêncio sobre Camilo Castelo Branco nos programas escolares não pode ser visto apenas como algo pertencente ao grupo das “palavras de ordem”. A retirada é facilmente demonstrável, o que não acontece com os outros termos apresentados. No entanto, é forte o que é dito para explicar a ausência de Camilo: não é só dos programas, mas também do mundo da edição e, consequentemente, das livrarias.
De vez em quando lá vão surgindo umas edições de obras camilianas, por vezes até de custo bastante acessível. O que acontece é que vão sendo acontecimentos avulsos, devorados pelas novidades e pelas publicidades, muitas vezes sem direito a lugar nos escaparates.
A escola deve ser superior aos modismos, é verdade. Mas também é preciso que os programas escolares o sejam. E, nestas coisas, os cânones valem muito. Dependendo de por quem e como são estabelecidos. Ler Camilo na escola não pode ser um acto de missionação ou de gosto de um determinado professor, mas deve ser uma questão de obrigatoriedade. Quer pela literatura, quer pela identidade cultural.
A pergunta com que Guerreiro conclui a sua crónica é avassaladora, sobretudo pelo que sugere. É necessário que as instituições honrem o seu estatuto, é indispensável que a escola seja o território do saber, da cultura e da identidade. Camilo desancaria forte e acutilantemente nesta escola que omite os clássicos da sua cultura, estou certo!

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Camilo - e por cá, que lhe fizemos?



A notícia é do Público. E a adesão dos franceses à obra camiliana pode deixar-nos satisfeitos pelo reconhecimento de um dos nossos escritores em França, mas deve deixar-nos descontentes pelo pouco que pela sua obra se tem feito, designadamente no âmbito dos programas escolares. Camilo continua a ser um mestre - da escrita e do conhecimento e retrato da sociedade portuguesa. Continua a ser acutilante nas suas críticas e apreciações, quer dizer: é actual.
Camilo Castelo Branco deveria ser de leitura obrigatória. Obrigatória, insisto.
Imagino que Eco, Padura e Sepúlveda se sentirão honrados por acompanharem o nome de Camilo na lista dos mais vendidos...
Já agora, que razão terá levado o Público a mencionar o título de Sepúlveda em francês, quando temos esse título já traduzido para português?
[Foto: busto de Camilo Castelo Branco em Seide,Vila Nova de Famalicão]

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Guitarra na areia homenageia o fado

Se a aceitação do Fado como Património Cultural Imaterial da Humanidade dependesse de David Tomás, jovem de 14 anos, o caso estava já resolvido. Como não é assim, o jovem setubalense deu apenas um contributo, que merece referência, ao escolher a guitarra portuguesa para motivo da sua construção na areia, no concurso promovido pelo Diário de Notícias. Foi na praia da Figueirinha, na Arrábida, que a guitarra a homenagear o fado teve o primeiro lugar.
Aqui reproduzo a parte da notícia d’O Setubalense de hoje, que contém a justificação do autor da guitarra de areia – a homenagem ao fado. E aos valores portugueses, claro!