quarta-feira, 19 de abril de 2017

19 de Abril de 1860: Setúbal já é cidade!



O número do periódico O Curioso de Setúbal publicado no dia 29 de Abril de 1860, domingo, iniciava-se com a seguinte afirmação: "Setúbal já não é vila e Portugal conta mais uma cidade", frase que não esconde a satisfação de uma pretensão local. O semanário referia-se ao decreto que tinha sido assinado em 19 de Abril, no Paço das Necessidades, a elevar a vila de Setúbal à categoria de cidade.
O processo para a atribuição do título de cidade a Setúbal começara a ganhar forma com o requerimento apresentado dois anos antes, em 14 de Junho de 1858, dirigido ao rei, em que a vereação da Câmara Municipal, com o objectivo de "aumentar o esplendor e grandeza da povoação" que representava, se dirigia a Sua Majestade a fim de "pedir a graça de elevar aquela grande povoação à categoria de cidade".
As razões invocadas pelos signatários tentavam atestar a importância da localidade, incidindo sobre factores como a produção regional, a população, a vida portuária e os pergaminhos históricos. Para o presidente da Câmara, Aníbal Álvares da Silva, e para os vereadores José Joaquim Correia, Francisco Joaquim Peres, João Sezinando de Freitas Sénior, Joaquim Maria Guerreiro e Manuel José de Araújo, a vila sadina era "conhecida em toda a parte do mundo pela extensão de seu comércio de sal, laranja, cortiça e cereais". Ao nível populacional, o concelho compreendia "mais de sete mil fogos, com perto de trinta mil almas", a rivalizar "em população e grandeza com todas as cidades do reino, exceptuando Lisboa e Porto". Quanto às comunicações com o exterior, a vila estava "todos os dias recebendo em seu magnífico porto o preito que lhe pagam as principais nações do mundo, cujos estandartes ali flutuam", e, por outro lado, havia a garantia da ligação "pelo já contratado ramal à linha férrea do Alentejo". Quanto a antecedentes históricos de enobrecimento, era invocado o facto de, em 1525, o rei D.João III ter feito a mercê de atribuir à vila o título de "muito notável".
O requerimento terminava com uma mensagem para agrado do rei, dizendo que "o foro de cidade concedido a Setúbal é o reconhecimento de um facto material que não se pode contestar, é um acto de justiça" que passará a constituir "padrão de glória para o feliz reinado" de Sua Majestade.

TRÊS  MESES  PARA  UMA  PATENTE

O decreto assinado em 19 de Abril de 1860 por Fontes Pereira de Melo, que fez passar Setúbal de vila para cidade, surgiu com a confirmação dos argumentos que o requerimento da Câmara Municipal utilizara. Razões determinantes para tal título foram a "sua grande população e excelente posição topográfica", a "quantidade dos edifícios que avultam dentro de seus muros", o "movimento e vastidão do seu comércio, devido ao porto de mar", a "ligação de Setúbal à cidade de Lisboa por meio de uma linha de vapores no Tejo e de um caminho de ferro desde o Barreiro" e "os constantes testemunhos que os seus habitantes têm dado de nobre dedicação ao trono e às instituições constitucionais da monarquia".
Seis dias depois, em 25 de Abril, a Câmara, ainda presidida por Aníbal Álvares da Silva mas já com alteração ao nível de alguns vereadores, redigia um agradecimento dirigido a Sua Majestade, no sentido de, "com o maior respeito, em seu nome e no dos povos do município, assegurar os protestos do seu mais acrisolado reconhecimento".
Ao reproduzir o texto dos documentos na sua edição de 29 de Abril, O Curioso de Setúbal aproveitava para traçar um curto retrato das imagens de progresso na cidade: Setúbal era apresentada como a "terceira terra do reino em população e a quarta em comércio" e dois outros factores de desenvolvimento eram o caminho de ferro (cujos carris "já cortam e atravessam nossos montes e estradas") e o gaz ("que dentro em pouco iluminará nossas ruas"). O redactor do jornal exultava, dando os parabéns aos moradores da cidade e desejando que a data de 19 de Abril de 1860 ficasse marcada "com letras de ouro na história da terra".
No entanto, a carta patente para que Setúbal passasse a cidade não foi feita de imediato. Em 26 de Abril, morria o Duque da Terceira, António José de Sousa Manuel e Meneses Severim de Noronha, chefe do governo. A Presidência do Conselho seria assumida por Joaquim António de Aguiar, mas os tempos corriam na instabilidade. Só pelo início de Julho o Marquês de Loulé, Nuno Rolim de Moura Barreto, formaria governo e a carta patente seria assinada em 23 desse mês.

A  VIDA  NA  CIDADE

O mês de Abril de 1860 trouxe ainda outras emoções à cidade. Na sua edição do dia 22, O Curioso de Setúbal noticiava o acontecimento que tinha sensibilizado a população uma semana antes: a 15, "dia de verdadeira festa nacional para esta bela terra", cerca das duas da tarde, chegava a Setúbal o comboio, em viagem inaugural, com a presença do Ministro das Obras Públicas, tendo havido festa, música e a população na rua. Pelas cinco da tarde, já o comboio regressava ao Barreiro, entre as despedidas dos setubalenses. E o repórter terminava a descrição com um comentário curto: "a locomotiva assobiando e fumando é objecto desejado por aqueles que, gostando do progresso do nosso país, desejam vê-lo caminhar a passos gigantescos". Setúbal teria de esperar até ao ano seguinte para que o funcionamento do comboio passasse a ser regular, uma espera que não agradou muito à população como se pode verificar em opinião registada na edição de 6 de Maio do mesmo jornal: "A questão que hoje se agita nesta cidade é a da abertura do nosso caminho de ferro. Todos esperam ansiosos esse dia, mas todos duvidam quando ele seja".
Com tal marca, como na obra Setúbal nos Primórdios da Sua Elevação a Cidade (Col. “Ensaio”. Setúbal: SALPA, 1985) Lúcia Castelo dos Santos e Francisco Castelo dos Santos assinalaram, "o progresso atravessa o Tejo em direcção ao Sul". Para lá de todos os factores que tinham sido evocados para atestar a importância de Setúbal, a indústria começava também a afirmar-se, sobretudo ao nível conserveiro, no domínio das mais modernas técnicas, havendo ainda referências a fábricas produtoras de fósforos e de gás para iluminação e de indústrias transformadoras nos ramos da cortiça e das bebidas. Simultaneamente, era também sentida a necessidade de melhoramentos aos mais diversos níveis para o bem-estar na cidade, em áreas como a saúde pública, a apresentação ao nível de limpezas na cidade e a educação. Na mesma edição de 6 de Maio d'O Curioso, um articulista chamava a atenção para as novas necessidades: "O progresso não consiste só em fazer caminhos de ferro, colocar fios eléctricos e edificar monumentos. Não. É necessário também tratar de educar e civilizar o povo".
A marcha para aquilo que Setúbal viria a ser no século XX estava, assim, a ser influenciada pelas novas necessidades e por uma atitude crítica de exigências que os jornais da época não esqueciam e a elevação de Setúbal a cidade não fora elemento estranho a este conjunto de inovações. A toponímia viria, de resto, a perpetuar a data de 19 de Abril numa rua entre o Largo do Carmo e Praça Teófilo Braga e não esqueceria o nome de Aníbal Álvares da Silva numa artéria entre a Avenida dos Combatentes e a Rua Acácio Barradas.

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