"Vida complexa e admirável a de hoje. Novas ambições e mais largos desejos. O homem como um divino génio do mal emancipa-se da tutela vergonhosa do Passado e da Tradição, liberta-se de si próprio e ele que tinha a cobardia da vida e a cobardia da morte - porque não sabia viver a grande Vida e não sabia morrer, ignorando que a morte é uma renovação - emancipado e liberto, audacioso e revoltado, agressivo e febril, sobe a todas as alturas, vai a toda a parte, reduz distâncias, detém a marcha do tempo e iguala-se a Deus, e ultrapassa Deus ainda...
Vida de agitação e velocidade... Correr, correr, correr vertiginosamente, não para chegar depressa ao fim, mas para que o fim não chegue tão depressa... Correr é criar a sensação e multiplicar a nossa vida... E a vida é longa não pelos anos que conta, mas pelas sensações que contém.
Todo o homem que sabe viver e quer viver desdobra-se, multiplica-se... O automóvel, o telefone, a telegrafia sem fios, os grandes transatlânticos, o cinematógrafo, o gramofónio, o aeroplano, modificaram o organismo humano, dando-lhe a omnividência e a ubiquidade. Os seus sentidos geraram novos sentidos..."
O leitor lê e, por momentos, pensa que está perante uma reflexão contemporânea, feita neste tempo; depois, à medida que avança a leitura, começam a surgir sinais de que o tempo de produção não será este, mas um outro que nos precedeu. É um texto actual, mudássemos-lhe nós os aparelhos e as máquinas com que finaliza a citação. Pois é: são os parágrafos iniciais do texto "O Futurismo", assinado por Bettencourt Rebelo, composição que se debruça sobre a "vida de hoje", o "homem dominador" e outras questões da época - um "hoje" que diz respeito a 1917, ano em que foi publicado o primeiro e único número de Portugal Futurista, revista dirigida por Carlos Filipe Porfírio, que teve assinaturas de Almada Negreiros, de Guillaume Appolinaire, de Mário de Sá-Carneiro, de Fernando Pessoa, de Blaise Cendrars e outros e desenhos de Santa-Rita Pintor e de Amadeo de Sousa Cardoso. Uma revista que, apesar de ser número único, ficou na história da literatura e da cultura portuguesas, em 42 páginas que constituíram uma pedrada no charco e que mereceram a apreensão das autoridades.
Está-se na celebração do seu centenário e o Público, em associação com a editora A Bela e o Monstro, fez sair hoje uma edição facsimilada da revista, uma obra a ler/ver e a guardar. As justificações podem ser muitas e abranger várias áreas do saber - Nuno Júdice, no Público de ontem, escreveu uma página sobre a história da revista, suficientemente esclarecedora e apelativa quanto ao interesse. Mas, para quem queira saber mais, pode-se recomendar, também de Nuno Júdice e de Teolinda Gersão, os textos introdutórios à edição facsimilada desta mesma revista, saída em 1981 (Lisboa: Contexto Editora). Se já não conseguir a edição saída em 1981, aproveite, pelo menos, a que veio com o Público de hoje...
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