Uma
dúzia de escritores de expressão portuguesa alberga-se sob o título de Os escritores (também) têm coisas a dizer
(Lisboa: Tinta da China, 2013), conjunto de entrevistas levadas a cabo por
Carlos Vaz Marques, selecção de mais vasto conjunto daquelas que o autor
publicou na revista Ler (Lisboa:
Fundação Círculo de Leitores).
As
entrevistas conduzidas por Vaz Marques têm a marca da conversa, do encontro
cuidadosamente preparado, com o trabalho de casa cumprido e com o ar de
desvendamento que deve municiar qualquer entrevistador. Não se vai perguntar
porque já se saiba; vai-se às perguntas porque se acha que, para lá do que é
conhecido, do que é do domínio comum, há mais coisas para serem ditas,
reveladas, desocultadas.
Assim,
as entrevistas são guiadas com oportunidade, demonstrando franco conhecimento
da obra do entrevistado, levando a que este se exponha para lá do que é a
publicação da sua própria obra. E cada uma das páginas é absorvida pelo leitor,
levando-o a crer que também esteve presente naquele momento de troca ou de
perscrutação de saberes, levando-o a sentir que também participou na história
daquele momento que foi a entrevista, onde não faltam contextualizações de
espaço, estados de espírito, registos de pormenores ou as justificações para que as
conversas tenham acontecido, onde não falta sequer a ilustração do rosto dos
entrevistados devida ao traço de Vera Tavares.
É
verdade que o leitor já sabe ao que vai, isto é, confia nos dotes do
entrevistador, depois de ouvido nas emissões radiofónicas e televisivas, depois
de lido em periódicos diversos, depois de lido noutras entrevistas já
publicadas em livro, como aconteceu com o título Pessoal e Transmissível (Porto: ASA, 2004), que também recolheu uma
dúzia de entrevistas das cerca de quatro centenas que tinham ido para o ar na
TSF pela voz de Carlos Vaz Marques.
O
que há de interessante no género entrevista é a vontade com que se parte à
descoberta. Seja o entrevistador, seja o leitor ou ouvinte ou telespectador. No
fundo, confiamos na lista de perguntas, na qualidade da conversa de quem faz as
perguntas, acreditando que algumas delas poderiam ser feitas por nós ou são
feitas em nosso nome. E o entrevistado entra neste jogo de revelação e de
dádiva…
Nesta
recolha de entrevistas a escritores, motivadas por livros, realizadas
maioritariamente entre 2008 e 2012 (com excepção da de Agustina, datada de
2003), passam, por ordem alfabética, os nomes de Agustina Bessa-Luís, António
Lobo Antunes, Antonio Tabucchi, Dulce Maria Cardoso, Eduardo Lourenço, Hélia
Correia, Gonçalo M. Tavares, José Saramago, Manuel António Pina, Mário de
Carvalho, Mia Couto e Valter Hugo Mãe. Todas para serem lidas de fio a pavio,
seguidas ou alternadas ou interrompidas, mas lidas. Excelentes testemunhos que
proporcionam não menos excelentes aprendizagens ou não menos interessantes
aproximações ou não menos entradas nas lógicas dos outros, óptimas conversas
que nos levam aos caminhos do desvendamento da vida, da arte, do pensamento e
do mundo!
Sublinhados
Abstracto – “Todos os substantivos abstractos são perigosos:
honra, glória, coragem, pátria. (…) Podemos torcê-los e fazer deles o que
quisermos. É em nome de palavras destas que se têm feito as piores coisas.”
(António Lobo Antunes, pg. 47)
Arrogância – “A arrogância nunca tem resultados positivos.
Normalmente é uma falsidade. (…) A arrogância habitualmente está cheia de
vento. É vaidade.” (Mário de Carvalho, pg. 277)
Biblioteca – “Como é que se faz uma biblioteca ideal? É
impossível. A minha biblioteca é feita dos livros que encontrei, dos amigos que
fiz, dos livros que me mandaram… É o acaso. Um pouco como a vida. A literatura,
no fundo, segue os mesmos caminhos da
vida. É a desordem. Que, depois, curiosamente, esta desordem se possa organizar
sozinha é algo que não depende da nossa vontade. Ela depois encontra uma forma
qualquer com a qual convivemos.” (Antonio Tabucchi, pg. 168)
Civilização – “A civilização torna as pessoas todas lunáticas.
(…) Não é que disfarcem. Uns adaptam-se mais do que outros à rotina. Mas todos,
mais ou menos, são lunáticos porque a civilização cria a aberração. O ser
civilizado é uma aberração. É perverso.” (Agustina Bessa-Luís, pg. 19)
Criar – “Criar é tão absorvente que Deus não fez mais nada senão a criação.”
(Mia Couto, pg. 213)
Cumprimento – “Se alguém me estende a mão, eu aperto-lhe a mão,
sempre. Apertar a mão é uma metáfora de coisas mais vastas: de simpatia, de
afecto.” (Manuel António Pina, pg. 374)
Data – “As datas são importantes na medida em que representam pontos de
passagem mais importantes do que o dia anterior ou o dia seguinte.” (José
Saramago, pg. 92)
Destino – “Um grande destino, aquilo para que hoje todos os
jovens são criados. (…) Ou, no fim de contas, um grande sofrimento. Porque esse
destino, chega a certa altura, tem um tecto e não vão mais além daquilo.
Começa, então, o psiquiatra a exercer a sua função.” (Agustina Bessa-Luís, pg.
21)
Deus – “Deus é um comunicador. É a maior invenção da humanidade. Eu espero
até que à força de tanto ser inventado exista mesmo. Mas o meu Deus não é o dos
caminhos ínvios. É um Deus que permite a espera. Toda a vida é uma espera. A
mais evidente é a da morte. A menos evidente é a da felicidade. A existência de
Deus torna essa espera menos dolorosa.” (Dulce Maria Cardoso, pg. 343)
Escrever – “A responsabilidade de quem escreve é uma
responsabilidade humana: a questão da conservação da memória. A única hipótese
de conservarmos o antigo é tornarmos o antigo presente. Isso é uma
responsabilidade do escritor: dar a sua atenção ao clássico.” (Gonçalo M.
Tavares, pg. 302)
Fazer o melhor – “Olharmos o infinitamente pequeno ou o
infinitamente grande dá-nos uma relativização tão grande de tudo. A grande
dignidade do jornalismo – e da própria natureza humana – é tentar fazer o
jornal o melhor possível sabendo que no dia seguinte ele vai embrulhar peixe. O
mínimo que nos é exigível é o máximo que somos capazes de fazer. Nas coisas
simples do dia-a-dia. Ser da maior bondade possível no quotidiano. A bondade é
a maior de todas as qualidades. Inclui a beleza, a justiça e a verdade. Ser o
mais bondoso possível sabendo que isso é inútil.” (Manuel António Pina, pg. 364)
Fé – “A nossa existência é uma prisão num labirinto cuja porta de saída,
para alguns, é a fé.” (Manuel António Pina, pg. 361)
Ficção – “O homem é um ser ficcionante. Independentemente do que seja o
objecto dessa ficção. Nós estamos sempre ficcionando. A nossa relação com o
real é uma relação imaginária.” (Eduardo Lourenço, pg. 135)
Homem – “A natureza do animal humano não mudou muito desde que nós
aparecemos como homo sapiens. Portanto, contarmo-nos a nós próprios, contar o
Homem com H maiúsculo, a Humanidade, significa também olhar umas vezes para o
melhor e outras vezes para o pior. É preciso também olhar para o pior. Custa.
Mas é um dever. É uma obrigação.” (Antonio Tabucchi, pp. 174-175)
Homem – “A natureza humana deve tomar algumas precauções e a primeira é
vigiar-se um pouco, antes de se lançar em certas declarações.” (José Saramago,
pg. 101)
Importante – “O importante é sempre o que não há.” (Dulce Maria
Cardoso, pg. 319)
Literatura – “No fundo, a literatura procura umas frinchas
naquilo que nós somos. O mistério de que nós somos feitos. Perceber alguma
coisa é tentar usar uma lâmpada como a dos mineiros, para se entrar nessas
minas desconhecidas que somos nós próprios.” (Antonio Tabucchi, pg. 174)
Livro – “O relacionamento com os livros – que vem de todos os livros que a
gente lê quando é jovem – torna-os bocados de nós próprios. São as tábuas
privadas das nossas leis. As escritas e as não escritas.” (Eduardo Lourenço,
pg. 117)
Magoar – “Não quero magoar ninguém. (…) As pessoas não precisam de mim para
se magoarem, já se magoam tanto a elas mesmas. Não precisam da minha ajuda para
nada.” (António Lobo Antunes, pg. 67)
Memória – “O processo que leva a escolher, a seleccionar
aquilo que sobrevive e aquilo que deve ser apagado é o mesmo. É um processo
ficcional. Porque o que se escolhe nunca é exactamente verdade. As coisas nunca
se passam exactamente assim. É uma elaboração. Tal e qual como o relato de um
sonho é sempre uma elaboração. Ninguém se lembra exactamente do que sonhou
porque isso implicava falar a língua dos sonhos e ninguém fala a língua dos
sonhos. Quando fazemos esta tradução, temos de colocar aquilo numa outra ordem,
numa outra lógica.” (Mia Couto, pp. 188-189)
Riso – “O riso é uma forma de resistência. Não há nenhuma tirania que
suporte que se riam dela e das suas imposições. Não há nenhum fanatismo,
nenhuma igreja, que ande à volta do riso. O riso tem sempre qualquer coisa de
desafiante e de subversivo. (…) O poder habitualmente aposta na solenidade. O riso
é um desafio a isso.” (Mário de Carvalho, pg. 259)
Tédio – “As pessoas mais desesperadas são aquelas que estão sempre a fugir
do tédio. O tédio é uma coisa central, base. O que é o tédio? É um momento de
espera em que aparentemente nada está a acontecer. É uma sensação de inutilidade.
Mas a vida tem uma percentagem enorme de momentos em que nós estamos à espera.
Se não soubermos lidar com isso, estamos a desperdiçar uma matéria fundamental.”
(Gonçalo M. Tavares, pg. 309)
Tempo – “Nós não somos lineares. Nada em nós se comporta como um simples
acumular de factos. Por isso, as coisas têm retrocessos.” (Valter Hugo Mãe, pg.
229)
Testemunha – “A diferença entre ser testemunha e espectador é
que o espectador é passivo, não age, aceita. A testemunha age.” (Dulce Maria
Cardoso, pg. 334)
Texto – “Um grande texto é o que tem uma escrita
holográfica. É o que, em vez de fazer a fotografia do real, consegue dar
profundidades que eu não alcanço de outra maneira. Que só alcanço por aquela
combinação de palavras que aquele escritor conseguiu. Está lá outro universo
dentro.” (Hélia Correia, pg. 397)
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