O
cante alentejano integra o património imaterial da Humanidade desde anteontem,
27 de Novembro, conforme decisão divulgada pela UNESCO em Paris. Uma homenagem
à genuinidade, ao saber, ao património cultural de Portugal, chegado pela toada
alentejana. Com regozijo, com parabéns!
Recordo-me
de o ter ouvido, quase de repente, quando, em 1986, vivi em Beja e pela região
dei umas voltas. Aprendi a gostar do Alentejo (que mal conhecia) e convivi com
pessoas extraordinárias. Cinco anos depois, numa colaboração com o diário Público, noticiei sobre a existência do
grupo “Ausentes do Alentejo”, constituído em Palmela. Gostei de ter conhecido o
grupo e da forma como falaram do “seu” Alentejo. A peça saiu na edição de 30 de
Março de 1991, na página 35. Por lá passam as saudades e as marcas da terra, o
bulir e o cantar da terra, uma forma própria de ser. Também se falou do cante
alentejano.
Em jeito de lembrança – ou será de homenagem? – do que
fui aprendendo sobre este património e sobre o Alentejo e em jeito de saudação
ao grupo “Ausentes do Alentejo”, reproduzo o texto. Apenas uma errata: o
segundo parágrafo da segunda coluna foi amputado por lapso técnico, omitindo o
resto do texto e escondendo o sentido – aqui fica a correcção, à maneira de
adenda: «Mas a boca acabará por lhe fugir
para a verdade. “O grupo vai muitas vezes cantar ao Alentejo e, aí, sinto
saudades por não estar mais tempo a cantar lá.”»
1 comentário:
O CANTE DA MINHA PÁTRIA
MORNA, LENTA, PROFUNDA, POLIFÓNICA, A VOZ DA TERRA FALA DE ANTANHO EM SUAVES
MELODIAS MANSAS, ÚNICAS, NUMA MISTURA LONGÍNQUA GREGA- ÁRABE-CRISTÃ MELISMÁTICA E,
DEPOIS, HODIERNA, AMANHADA NO OLHO DAS ERAS.
É O PLANGOR ARRRASTADO DAS GENTES MOUREJANTES, DEBRUÇADAS NA PLANURA,
QUE COMEM A TERRA COM PASSOS DE CADÊNCIA, SÃO REQUEBROS DE CORPOS E ALMAS,
LADO A LADO, DE BRAÇOS APERTADOS, É UM VAGIDO, BRADO, RUFAR, CLAMOR, UMA AFLIÇÃO
E UM GRITO PROFUNDOS RASGANDO AS ENTRANHAS VERMELHAS DE VELHO SANGUE DE GANHÕES
AMORENADOS, AINDA RESIDENTES OU AGORA MIGRANTES.
É O CANTE, EXPRESSÃO DOS LONGES, QUE PENETRA SENTIMENTOS DE RAIZ DE ORIGEM QUASE
ANIMAL, É O ÓVULO E O SEMEN QUE ME GERARAM.
ESSE CANTAR, DEPENDURADO NOS MEUS OLHOS ENXUTOS DE ESCUTAR AS DISTÂNCIAS
SOZINHAS, CALMOSAS DE OURO, É UMA DAS PÁTRIAS DE TODOS OS UNIVERSOS HUMANOS QUE
EM MIM SE DÃO E ACONTECEM EM GIIRÂNDOLAS INCENDIDAS NO FUNDO DO MEU SER TELÚRICO
ABRANGENTE, AFECTIVO E CULTURAL.
É A VOZ DOS MEUS PAIS MAIS ANTIGOS E A DOS MEUS MANOS MAIS JOVENS- É A MODA DO MEU
BERÇO DE LEITE, A LIÇÃO DA MINHA ESCOLA DE SEMPRE: ESSA MODA EMBALA-ME QUANDO DIGO
ATÉ AMANHÃ AO DIA!...
Daniel Nobre Mendes
Novembro 2014
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