A
obra Grandes Entrevistas da História,
que o semanário Expresso começou a
publicar no início de Novembro e que é constituída por sete volumes, torna-se
interessante a vários títulos: pelo período histórico abrangido (desde 1865),
pelos testemunhos que traz até ao leitor de hoje, por se poder assistir ao que
foi a história do género jornalístico que é a entrevista, por entrarmos na
esfera de convivência de diversas personalidades hoje consideradas referências
para a Humanidade, por não faltarem alguns nomes representativos portugueses
(seja como entrevistados, seja como entrevistadores). Para lá do que cada entrevista
possa transmitir como mensagem, o leitor é levado a abordá-las diacronicamente
e na sua relação com a História, uma vez que todas são antecedidas de um texto
introdutório, que contextualiza o momento da entrevista e os antecedentes
relativos ao entrevistado, e de um epílogo, que informa sobre o que foi o
futuro dessas mesmas personagens ou sobre as consequências do que foi dito na
entrevista.
É
assim que, no primeiro volume, apanhando o período entre 1865 e 1899,
convivemos com as ideias de Abraham Lincoln (Goldwin Smith, Macmillan’s Magazine, 07-02-1865), Karl
Marx (R. Landor, The New York World,
18-07-1871), D. Pedro II (pelo correspondente do The New York Herald, 1871), Louis Pasteur (D’Alberty, em M. Pasteur & la Rage, 1882),
Theodore Roosevelt (pelo correspondente do The
Pall Mall Gazette, 09-12-1886), Thomas Edison (R. H. Sherard, The Pall Mall Gazette, 19-08-1889), Mark
Twain (Rudyard Kipling, From Sea to Sea,
1889), Papa Leão XIII (Séverine, Le
Figaro, 03-08-1892) e Nikola Tesla (S. E. Solly, The New York Herald, 12-11-1899).
Parte
significativa destas entrevistas impressiona pela imagem que os entrevistados
deixam nos entrevistadores, constituindo o corpo dessas entrevistas pouco mais
do que isso mesmo – o autor do texto vai partilhando algumas respostas, mais
excertos de conversa do que entrevista como a concebemos hoje, e vai construindo
o retrato do entrevistado.
Por
este palco passam políticos e dirigentes como Lincoln, Marx, D. Pedro II,
Roosevelt e o Papa Leão XIII, sempre advindo deles uma imagem forte. É assim
que Smith conclui o seu texto sobre o presidente Lincoln dizendo: “Poderá ou
não ser um grande homem, mas, pelo menos, é um homem honesto e responsável. A
sua reeleição era desejável, não só pelo bem do seu país, mas também pela paz
no mundo. Já na entrevista a Marx, assinada por Landor, efectuada quando o
filósofo era líder da AIT (Associação Internacional dos Trabalhadores) e quando
estava candente a questão da Comuna de Paris, nos passa a imagem de um chefe em
posição confortável que impressiona fortemente o entrevistador, levando-o a
deixar uma leitura para o mundo – “Expus aqui, tanto quanto a minha memória mo
permitiu, os momentos mais importantes da minha conversa com este homem
notável. Deixarei que o leitor tire as suas próprias conclusões. Por muito que
se possa dizer a favor ou contra a possibilidade da sua participação no
movimento da Comuna, podemos ter a certeza de que a Associação Internacional é
um novo poder no seio do mundo civilizado com o qual este muito em breve terá
de ajustar contas, para o bem ou para o mal.” Mais parca em ideias sobre o
entrevistado é a intervenção do correspondente do The New York Herald quando
entrevista D. Pedro II – a conversa é frugal, quase de acaso, e, mesmo assim, o
jornalista disponibiliza-se para submeter ao secretário régio o texto a
redigir, visando algumas correcções; todavia, o imperador, que estava em
passeio pelo Egipto, rejeita a oferta e argumenta: “Toda a minha vida foi uma
constante entrevista e, consequentemente, nunca digo nada que não deseje que se
torne público.” Roosevelt apresenta-se como um forte ganhador, analisando
criteriosamente a política e afirmando: “Nós, os norte-americanos, somos
demasiado empreendedores para aceitar restrições”. Leão XIII, o primeiro Papa
entrevistado por uma mulher que se deixa deslumbrar pelo Vaticano, marca pela
sua análise do que é a igreja e pelo destino que sente, enquanto chefe
católico, de conduzir o seu povo para um caminho de “doçura e fraternidade”. A
entrevista surge como uma voz em prol da doutrina social da Igreja. Conte-se o
tempo decorrido entre 1892 e 2014, ano em que um Papa voltou a ser entrevistado
por outra mulher…
Na
área da ciência e dos inventos, a presença é a de Pasteur, Edison e Tesla. De
Louis Pasteur, então na apoteose da carreira, a ideia que ressalta é a da
visita do jornalista ao laboratório onde o investigador pesquisava a vacina
para a raiva, momento em que o entrevistador comenta, depois de assemelhar um
galo a uma coruja, de confrontar as reacções de uma ovelha com as de um macaco:
“Era uma cena impressionante. (…) Se os animais pudessem partilhar o que
pensam, como gostaria de compreender a sua linguagem. Que entrevista fascinante
não faria aos hóspedes do Sr. Pasteur!” Edison é apresentado como um inventor,
de cuja conversa não está ausente a animosidade com Tesla, antevisionando um
futuro em que “fábricas enormes funcionam dia e noite”, numa “luta do homem
contra o metal”. Nikola Tesla é o centro de uma entrevista que gira em torno de
um laboratório, de uma estação experimental; por isso, a primazia dada pelo
autor da peça jornalística vai para a descrição do espaço e de toda a maravilha
com que se confronta, muito mais do que para a conversa. O que estava em causa
no momento era a possibilidade de serem transmitidas mensagens para qualquer
parte do mundo.
Finalmente,
um homem das artes, o autor de aventuras protagonizadas por Huckleberry Finn e
por Tom Sawyer. Mark Twain, escritor entrevistado por outro escritor, Kipling,
fala da sua obra, enfatizando o herói Sawyer – “Ele é todos os meninos que
conheci ou recordo” – e da presença autobiográfica na literatura, no romance,
concluindo a sua entrevista com um discurso sobre a leitura de ciência e sobre
uma abordagem dos factos que justificava a própria literatura – “Primeiro
pegamos nos factos, e depois podemos distorcê-los à vontade”.
O
segundo volume abrange o período temporal entre 1900 e 1930, com entrevistas a
Júlio Verne (Gordon Jones, Temple Bar,
Junho de 1904), Harry Houdini (Edha Ferber, Appleton
Crescent, 23-07-1904), Guglielmo Marconi (Kate Carew, New York Tribune, 14-04-1912), Sacadura Cabral e Gago Coutinho
(Thomaz Ribeiro Colaço, O Dia,
07-06-1922), Marie Curie (Marie Mattingly Meloney, no livro Pierre Curie, 1923), Benito Mussolini
(António Ferro, A Capital,
02-12-1923), Charles Lindbergh (Carlyle MacDonald, The New York Times, 22-05-1927), Georges Clemenceau (George
Sylvester Viereck, Liberty,
07-07-1928), Henry Ford (M. K. Wisehart, Modern
Mechanics, Dezembro de 1929) e Sigmund Freud (George Sylvester Viereck, em Glimpses of the Great, 1930).
Lemos
a entrevista com Júlio Verne, feita um ano antes da sua morte, e percebe-se o
porquê de este continuar a ser um autor de eleição, pelos mundos que imaginou
ou que antecipou, chegando mesmo a confessar, em jeito de explicação e sem
pretensão de superioridade: “O máximo que posso dizer é que talvez tenha olhado
um pouco mais além no futuro do que a maioria daqueles que me criticaram”.
Depois, a entrevista é ainda rica pelo respeito e admiração que consagra aos
outros, seja quando fala de autores já desaparecidos, como Dickens, seja quando
aprecia obras de seus contemporâneos, como H. G. Wells. Ainda no domínio das
artes, é-nos dado seguir alguns passos do ilusionista Harry Houdini, que
impressiona a entrevistadora pela maneira como não explica os seus truques ou
pela forma como se refere à sua família, particularmente aos pais – “nestes
dias de vertigem e loucura e frequente falta de respeito para com os mais
velhos, é agradável ouvir estas palavras da boca de um filho”, escrevia a
jornalista nesse 1904.
No
domínio da ciência, Marconi é o primeiro conversador deste volume,
desenrolando-se a entrevista com fluência e com o registo caricato da presença intimidatória
do secretário do cientista, que desespera por não conseguir controlar a duração
da conversa. No ramo da ciência, há ainda lugar para uma entrevista a Marie
Curie, que deixa que perpasse o seu papel de investigadora, mas também o do contributo
que a ciência tem de dar para uma causa humanitária, veiculando a mensagem de
que os recursos de que o mundo dispõe são de todos os que o habitam. A secção
da ciência fecha com Freud, à data o patrono da psicologia, que chega a ser comparado
com outro grande mestre da ciência: “Freud representa para a psicologia o que
Galileu representou para a astronomia.” E Freud fala das correntes, das
divergências e da sua paixão do momento: “Felizmente, as plantas não têm
temperamento ou complexidades. Adoro as minhas flores. E não me sinto infeliz.
Pelo menos, não mais do que os outros."
À
política chega o leitor pelas palavras de Mussolini, entrevistado pelo
português António Ferro, que se deixa fascinar pelo chefe italiano, inclusive
com a oferta que este lhe faz de uma sua fotografia autografada. Surpreende o
pendor rigoroso do entrevistado, quase contando ao pormenor o tempo disponível
por achar que não tempo a perder: “O deputado, que se limita a repetir o que os
jornais já me disseram, só me faz perder tempo”, dirá. Outro nome da esfera da
política é o de Georges Clemenceau, em entrevista no ano anterior à sua morte,
de 1928. Perguntado sobre o estado geral do mundo e da França, responde,
recorrendo ao seu saber e ao que vira até uma década antes: “As condições serão
satisfatórias enquanto na Europa continental se mantiver o actual equilíbrio de
forças. Se esse equilíbrio for alterado por um renascimento do imperialismo alemão, a Europa ver-se-á mergulhada noutra contenda
generalizada.” Clemenceau não chegou a esse patamar, mas sabia o porquê de o
estar a dizer…”.
Noutro
grupo está Henry Ford, o homem que ligou
a sua memória ao automóvel e à descoberta de regras para cidades e para
práticas do seu tempo. O seu visionarismo torna-se extraordinário, chegando a
idealizar: “Provavelmente, no futuro, o aquecimento nas cidades
norte-americanas será eléctrico. Ou seja,
as nossas casas terão de ser construídas de uma forma diferente, melhor.
Temos de descobrir qual é a melhor forma de as isolar. Desse modo, serão mais
frescas no verão e com um aquecimento mais uniforme no inverno.”
Da
área da navegação aérea e dos feitos grandiosos são os entrevistados Sacadura
Cabral e Gago Coutinho, especialmente o primeiro, já que o segundo, estando presente,
só intervém ocasionalmente. Interessante o pormenor de Sacadura Cabral ter lido
a entrevista previamente e lhe ter acrescentado, por seu punho, muita
informação, sobretudo no respeitante a pormenores da travessia do Atlântico Sul.
O registo da conversa não perde em humor, tendo o jornalista comentado, quando
Sacadura Cabral lamentou uma menor graça nesta travessia por a viagem não ter usado
apenas um avião mas sim três: “Se um globe-trotter desse a volta ao mundo
mudando dez vezes de botas, não deixaria por isso de dar a volta ao mundo. E se
conservasse sempre o mesmo calçado, metade da admiração iria para as botas…” O
outro viajante é Charles Lindbergh, o piloto que fez a primeira viagem sem
escalas entre Nova Iorque e Paris, cujos receios quase minimizou: “Na verdade,
pilotar um bom avião não exige nem de perto a atenção que é necessária para
conduzir um automóvel. Saí de Nova Iorque com quatro sanduíches. Só comi uma e
meia durante a travessia e bebi um pouco de água. Não creio que tivesse tido
tempo de comer mais nada, porque fiquei surpreendido ao dar-me conta de quão
curta é a distância entre Nova Iorque e a Europa.”
O
que se nota no leque dos dez entrevistados das três primeiras décadas do século
XX é que todos eles acompanham a vertigem do tempo em que se situavam. Homens e
mulheres do seu tempo, sem dúvida, todos nos ajudando a perceber esse mesmo tempo.
Sublinhados
Alianças – “As alianças internacionais não acabam com as
rivalidades internacionais.” [Georges Clemenceau. Entrevista a George Sylvester
Viereck, em Liberty (07.Julho.1928). Grandes Entrevistas da História 1900-1930.
Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 92]
Autobiografia – “Uma autobiografia [é] a única obra na qual um
homem, mesmo contra a sua vontade e apesar de tentar denodadamente fazer o
contrário, se revela ao mundo tal como é na realidade. (…) Mas nuna
autobiografia autêntica é impossível que um homem conte a verdade sobre si
mesmo, assim como é impossível que consiga impedir que o leitor perceba essa
verdade.” [Mark Twain. Entrevista a Rudyard Kipling, em From Sea to Sea (1923). Grandes Entrevistas da História 1865-1899. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 86-87]
Citações – “Provavelmente, algumas das melhores frases
atribuídas aos grandes homens nunca foram proferidas, pelo menos por eles. A
imaginação do mundo inventa a palavra certa quando a imaginação falha ao herói.”
[Georges Clemenceau. Entrevista a George Sylvester Viereck, em Liberty (07.Julho.1928). Grandes Entrevistas da História 1900-1930.
Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 95]
Homem – “O homem jamais será suplantado por algo que seja inferior a ele. E
não há nada à face da Terra que seja superior ao ser humano. Partindo do
princípio de que a mais alta manifestação da vida no nosso planeta será sempre
o ser humano e dado que os humanos parecem ser seres progressivos, deduz-se que
a nossa raça continuará indefinidamente, a menos que uma catástrofe de
dimensões cósmicas a varra do planeta. O homem superará o seu nível evolutivo
actual. Por acaso não é o homem de hoje sobre-humano em comparação com o homem
primitivo?” [Georges Clemenceau. Entrevista a George Sylvester Viereck, em Liberty (07.Julho.1928). Grandes Entrevistas da História 1900-1930.
Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 102]
Igreja – “A tarefa da Igreja é doçura e fraternidade. Deve aproximar-se do
que está errado, esforçar-se por erradica-lo, mas qualquer tipo de violência
contra as pessoas é contrário à vontade de Deus, aos seus ensinamentos.” [Leão
XIII. Entrevista a Séverine, em Le Figaro
(03.Agosto.1892). Grandes Entrevistas da
História 1865-1899. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 102]
Popular – “A popularização conduz a uma aceitação superficial
sem levar a uma investigação séria. As pessoas limitam-se a repetir frases que
ouvem no teatro ou na imprensa.” [Sigmund Freud. Entrevista a George Sylvester Viereck,
em Glimpses of the Great (1930). Grandes
Entrevistas da História 1900-1930.
Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 129]
Trabalho – “Se eu tivesse um trabalho demasiado pesado para
mim, esforçar-me-ia para descobrir uma forma de o tornar mais fácil. Uma
tentativa séria de tornar menos pesado um determinado trabalho é o impulso
inicial para criar alguma coisa. Quem o fizer, construirá o seu futuro com base
numa descoberta de que o mundo necessita.” [Henry Ford. Entrevista a M. K.
Wisehart, em Modern Mechanics (Dezembro.1929).
Grandes Entrevistas da História 1900-1930.
Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 112]
Vida – “Quando uma pessoa se detém a pensar, a religião, a formação e a
educação não são garantia de nada perante a força das circunstâncias que movem
o homem.” [Mark Twain. Entrevista a Rudyard Kipling, em From Sea to Sea (1923). Grandes Entrevistas da História 1865-1899. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 86]
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