Desde 2011, Joaquim Gouveia,
setubalense ligado ao jornalismo e a outras artes, tem vindo a publicar na
blogosfera entrevistas com pessoas ligadas a Setúbal (por nascimento ou por
adopção), a um ritmo de periodicidade variável. Escolheu para nome do blogue a
designação “Gente gira da região”, sugerindo um misto de admiração, de beleza e
de respeito, talvez porque seja isso mesmo que devemos ver em primeiro lugar em
todas as pessoas.
Em finais de 2013, no Mercado
do Livramento, Joaquim Gouveia expôs uma parte das entrevistas feitas até aí,
mas o seu projecto prosseguiu e as conversas continuaram a ter lugar sob o céu
de Setúbal, com aromas de Sado.
O modelo da entrevista tem-se
mantido: as perguntas não se preocupam com a actividade actual do entrevistado
ou com o seu estado, procuram perscrutar-lhe um caminho, encontrar linhas de
pensamento, ainda que sem aprofundamento, mesmo porque o espaço para a escrita
e para a leitura é o que é.
Dessas entrevistas, Joaquim
Gouveia resolveu agora mostrar fragmentos daquilo que estes setubalenses
pensam, na obra Como pensam os setubalenses
(Setúbal: ed. Autor, 2014), enveredando por três áreas – o mundo, a crise,
Deus. Uma centena de respostas é perfilada para cada um dos vértices deste
triângulo, todas resultantes de momentos de reflexão súbita, proporcionados
pela vertigem de uma entrevista, sem esboço ensaístico, sem análise de “prós”
ou de “contras”, sem a medida das consequências do próprio pensamento.
Primeiras ideias sobre um pensamento, sobre uma palavra, pois. Passos iniciais sobre
algo com que todos nos confrontamos no quotidiano, na vida. Afirmações sem
certezas, mas com a emoção de se olhar para o que rodeia este actor e agente
que é o homem, que somos nós.
O mundo, o que se pensa do
mundo? É sabido que todos olhamos o mundo em função do que somos e do que
sentimos. Descobriremos coisas novas, absolutamente novas? Descobrimo-las para
nós, mas elas já estavam lá antes da nossa descoberta. Olhamos o mundo pelos
nossos prismas e ele é multifacetado. Escreveu algures o poeta José Fanha: “Que
o mundo está todo do avesso já sabemos. Às vezes está do avesso para bem e
outras para mal. Mas se resolvêssemos aparafusá-lo, deixava de rodar e isso é
que não tinha graça nenhuma.” Assim, vamos achando graça ao mundo, isto é,
vamos acreditando que podemos contribuir para que ele melhore, mas… o que
sentimos depois de todo o esforço nem sempre é feliz! Perpassamos os olhos
pelas respostas aqui presentes e elas não se distanciam do essencial da
resposta de Fanha – sobrepõe-se, talvez, o tom do cepticismo, em que são
valorizados os conflitos, as desigualdades, o (ir)respirável, à mistura com a
constante dos recuos e dos regressos aos sonhos, com uma falta de
reconhecimento do homem no mundo, com uma Europa que se desmorona (que o mesmo
é dizer sobre as mudanças ou alterações de valores). A visão que os
entrevistados apresentam do mundo, do planeta Terra em que habitam e com cuja
organização convivem, não é feliz; é maioritariamente descrente, com um tom de
decepção cuja responsabilidade é remetida para o ser criador que o homem
poderia ser. Nostalgia do paraíso? Antes, talvez, a ideia de que o homem é
pequeno para tanta coisa, apesar de ser latente a crença de que, como dizia
Sebastião da Gama, “pelo sonho é que vamos”…
E entra-se na segunda questão
seleccionada: como se ultrapassa a crise? Ambígua, esta ideia de crise! Por
isso, alguns entrevistados se questionam quanto ao tipo de crise – portuguesa,
mundial, económica, financeira ou de valores? Associadas andarão elas, porque
as crises podem ser plurais e universais. Mas é verdade que a tónica dos
entrevistados caminha no sentido da humanização, isto é, do respeito pelo
homem, ao mesmo tempo que ressalta a ideia de haver um certo artificialismo
nesta ideia generalizada de “crise”. Poderíamos ir buscar muitas citações de
outros que neste livro não entram, mas bastará a lembrança do momento em que um
político afirmou ser a crise uma situação de oportunidade. Perguntaremos: de
quê? O balanço que se faz das respostas não é assim tão promissor quanto o dos
discursos políticos. Depois, há ainda a ideia de que a crise assenta sempre
sobre os mesmos. E, aqui, convém ir pedir emprestada uma citação à escritora
Dulce Maria Cardoso, que, numa entrevista, a propósito dos sacrifícios impostos
em nome das mudanças, referiu: “Cada um de nós vale a mesma coisa. Nós não
somos peças de uma engrenagem em que uns vão para carne picada para salvar
outros.” Esta rejeição surge porque o princípio parece real. Isto é: não
sobressai das respostas dos entrevistados que a crise seja ultrapassada por
meio dos sacrifícios impostos. Pior: não ressalta das respostas dos
entrevistados que, no que diz respeito a Portugal, a crise esteja a ser gerida
no sentido de ser ultrapassada. E, sem convicções, o homem, mesmo que o mundo
pule e avance, não constrói a sua salvação…
Finalmente: Deus. A pergunta
joga com ideias, sugere respostas, impõe-se: “Deus criou o homem ou foi o homem
quem criou Deus?” Algo entre a fé e o “big bang”, algo entre a religião e a
ciência. As respostas valem o que valem, porque as dúvidas também se mostram.
Nas respostas apresentadas, há a fé, a crença, a prática religiosa, como há a
falta de tudo isto. Um mundo e um tempo em que cada qual pensa a sua relação
com o divino ou a falta dela. Permita-se-me que regresse à entrevista de Dulce
Maria Cardoso, quando afirma algo de tão sensível e de tão religioso como isto:
“Deus é um comunicador. É a maior invenção da humanidade. Eu espero até que à
força de tanto ser inventado exista mesmo. Mas o meu Deus não é o dos caminhos
ínvios. É um Deus que permite a espera. Toda a vida é uma espera. A mais
evidente é a da morte. A menos evidente é a da felicidade. A existência de Deus
torna essa espera menos dolorosa.” Pelas respostas dos setubalenses
entrevistados passam mesmo as causas pelas quais (des)acreditam. Embora não
tenham de resolver a questão, os entrevistados partilham razões, pensamentos,
momentos de fé, porque, na verdade… Deus continuará a ser uma interrogação,
independentemente do lado em que se esteja. Pensar em Deus implica um encontro
do homem consigo, diálogo cujo resultado será inesperado. Confessou-o Jorge de
Sena, ainda que pela poesia: “Senhor, não peço mais do que o silêncio do mundo,
/ o silêncio dos astros, o silêncio das coisas / que outros homens fizeram, e o
das coisas / que eu próprio fiz. E o teu silêncio / de senhor que foi. Não peço
mais. / Não é nada o que peço. Dá-me / o silêncio. Dá-me o que não fui: /
silêncio (porque calei tanto): / o que não sou (pois que calo tanto): / o que
hei-de ser (já que falar não adianta): / silêncio. / Senhor: não peço mais.” E,
na mesma senda da poesia, a insubstituível Sophia de Mello Breyner retratou:
“Deus é no dia uma palavra calma / Um sopro de amplidão e de lisura.” Será,
porventura, na resposta a esta pergunta que mais diferenças existem nas
respostas que ornamentam este livro. Mas esse é o preço que se paga pela
coragem que todos assumiram ao tentar justificar Deus ou ao ensaiar o
contrário. Seja como for, Deus e o homem passeiam-se pelas respostas…
Daqui para a frente, fique o
leitor com um plural conjunto de argumentos, de opiniões, de pensamentos, de
ideias. Com que pode concordar ou de que pode discordar. Mas que lhe hão-de
suscitar o diálogo e a sua própria resposta. Depois, é consigo…
[Prefácio à obra]
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