Constituem
o terceiro volume da obra Grandes
Entrevistas da História (Lisboa: “Expresso”, 2014, em publicação) as
entrevistas feitas no período 1931-1951 a George Bernard Shaw (Hayden Church, Liberty, 07-02-1931), Al Capone
(Cornelius Vanderbilt Jr., Liberty,
17-10-1931), Adolf Hitler (George Sylvester Viereck, Liberty, 07-1932), Josef Estaline (H. G. Wells, The New Statesman and Nation,
27-10-1934), Fernando Pessoa (Artur Portela, Diário de Lisboa, 14-12-1934), Federico García Lorca (Luis Bagaría,
El Sol, 10-06-1936), Mao Tsé-Tung
(James Munro Bertram, Jiefang Ribao,
23-11-1937), Walt Disney (S. J. Woolf, The
New York Times, 10-07-1938), Mahatma Gandhi (H. N. Brailsford, Harijan, 14-04-1946) e Egas Moniz
(Armindo Blanco, O Século Ilustrado,
05-11-1949).
Se
começarmos pelos entrevistados portugueses, veremos que Egas Moniz, tendo tido
a atribuição do Nobel da Medicina em 27 de Outubro, era o homem do momento – só
tinham passado nove dias até à publicação da entrevista e, além disso, era o
primeiro português nobelizado, ponto cimeiro de um percurso que já tinha levado
o nome deste médico a ser proposto para o galardão noutras ocasiões. Nesta fase
da sua vida, aos 75 anos, o entrevistador deixa-se entusiasmar com o ritmo de
vida do seu interlocutor, entre as consultas públicas e privadas, a escrita, a
investigação, a ida ao cinema e a leitura, simultaneidade que conduzirá à
questão do tempo e à explicação: “É necessário colocar um pouco de método nos
nossos hábitos, para que o excesso de tempo de que dispomos possa dar para
tudo.” O outro português da lista é Fernando Pessoa, numa curta conversa que
sucedeu à publicação da sua única obra em português editada em vida, Mensagem, que tinha acontecido em 1 de
Dezembro de 1934, duas semanas antes da divulgação da entrevista. A rápida
conversa de Pessoa com Artur Portela no “Martinho da Arcada” evidencia a
capacidade descritiva do jornalista e a enigmática personagem que o poeta é. O
texto inicia-se com o retrato do entrevistado: “A calva socrática, os olhos de
corvo de Edgar Poe, e um bigode risível, chaplinesco – eis a traços tão fortes
como precisos a máscara de Fernando Pessoa.” Tal entrada será porventura o eco
das próprias respostas do escritor, com uma dose de mistério apreciável, talvez
na linha do “fingimento”: sobre Mensagem,
dirá que “é um livro escrito em mim há muito tempo”; sobre a sua escrita,
reflectirá que tem “várias maneiras de escrever, nunca uma”. O resultado sobre
Portela é uma apresentação de Pessoa como um poeta que fala “como as cavernas,
com boca de mistério”, e que, no final, “desaparece à nossa vista, num céu
constelado de enigmas e de belas imagens”.
Mais
dois escritores povoam este grupo de entrevistados: Shaw e Lorca. Nos seus 75
anos, o escritor irlandês fala sobre a sua obra e as leituras dela feitas e
sobre a sociedade, não escondendo a sua veia de crítico social que também foi e
o seu tom humorístico, dando, por vezes, a volta às perguntas. Quando inquirido
sobre o futuro económico da Inglaterra, interroga-se se “conseguirá a
civilização safar-se” e responde: “A lista de civilizações extintas está sempre
a aumentar, tal como a lista de estrelas escuras descobertas pelos astrónomos.
Qualquer estudioso do tema sabe que a estabilidade de uma civilização depende,
em última instância, da sabedoria com que esta partilha a sua riqueza e
distribui a carga de trabalho, bem como da veracidade da educação que ministra
às crianças.” No final da entrevista, a propósito de pergunta sobre a razão de
ser das “recentes derrotas que as mulheres infligem aos homens em todas as
frentes”, espanta-se com a surpresa, considera a mulher tão apta e inteligente
para lidar com qualquer máquina como o homem e desafia: “Se consultar os
jornais de ontem, verá que várias mulheres tiveram filhos sem a ajuda de
qualquer máquina. Mostre-me um homem que tenha levado a cabo uma proeza tão
assombrosa e árdua e sentar-me-ei a debater consigo com toda a seriedade o
significado de tamanho triunfo.” Já a entrevista de García Lorca é sobretudo
uma conversa entre dois poetas, ambos tratando-se por “tu”, ambos recorrendo a
uma linguagem metafórica, mais do domínio da poesia, chegando-se ao ponto de, a
meio da entrevista, o rumo da conversa mudar e passar Lorca a entrevistador e
Bagaría a entrevistado. No decurso, fala-se da construção poética, do papel da
poesia, do afecto à Espanha, de música e do canto cigano, da literatura
espanhola (em que Lorca manifesta admiração por Antonio Machado e por Ramón
Jimenez). Cerca de dois meses depois desta publicação, em 18 de Agosto, o poeta
granadino terá sido fuzilado.
Ainda
no campo das artes, surge a voz de Walt Disney, que, aos 37 anos, era já um nome
de sucesso no mundo do cinema (depois de ter distribuído jornais, de ter sido
carteiro, de ter conduzido ambulâncias da Cruz Vermelha na Grande Guerra, de
ter trabalhado em publicidade), respondendo a uma questão sobre “o que é a
arte” de forma quase desconcertante: “O que é a arte? Eu sei lá! Somos apenas
produtores cinematográficos. O nosso objectivo é divertir. Se conseguimos,
sentimos que cumprimos o nosso objectivo e, se o público gosta do que
mostramos, simplesmente erguemos os polegares e consideramo-nos afortunados.” O
que estava em causa para Disney era a capacidade de aliar a engenharia e a
comoção: “Se o homem o conseguir fazer, será um artista, mas, se não souber
desenhar, se não conhecer a gramática da sua arte, não acredito que consiga
expressar a sua emoção.”
A
figura de Al Capone, chefe de organização criminosa, convive nesta mesa de
entrevistados através da entrevista que saiu a público justamente no dia em que
foi julgado e condenado a onze anos de prisão. O discurso do entrevistado
assume-se como um discurso político, apelando à abertura “dos cordões à bolsa”
porque eram necessários “fundos para combater a fome”. E o jornalista vai-se
surpreendendo de intervenção em intervenção. “Nos dias que correm, as pessoas
não respeitam nada. Antes, púnhamos num pedestal a virtude, a honra, a verdade
e a lei. Veja só o caos em que transformámos a nossa vida!”. E mais adiante:
“Todas as nossas principais prioridades estão invertidas. Os banqueiros
corruptos que aceitam o dinheiro dos clientes, que estes ganham com o suor do
rosto, em troca de acções que sabem não ter valor seriam inquilinos muito mais
adequados das instituições penitenciárias do que o pobre homem que rouba para
alimentar a mulher e os filhos.” Tal candura e tal convicção vão adensando a
entrevista ao ponto de o seu remate ser tão solitário quanto isto: “A porta de
ferro do gabinete fechou-se. A minha entrevista mais surpreendente de sempre
chegou ao fim.” Quase fica Vanderbilt sem palavras…
Os
quatro restantes entrevistados são oriundos do mundo da política: Josef Estaline,
Mao Tsé-Tung, Adolf Hitler e Mahatma Gandhi. No caso dos dois primeiros, o
discurso não deixa que os jornalistas atravessem as muralhas que blindam os
entrevistados; na mente dos entrevistadores ficam admirações e uma adesão à
figura com quem acabaram de falar. H. G. Wells manifestará mesmo a Estaline um
agradecimento no final da entrevista, declarando: “Actualmente, só existem dois
homens no mundo cujas opiniões, cujas palavras merecem a atenção de milhões de
pessoas: o senhor e Roosevelt.” Mas, logo a seguir, usa alguma cautela, dizendo
a Estaline: “Ainda não pude apreciar o que fizeram no seu país, porque acabei
de chegar ontem. Mas já tive ocasião de ver rostos felizes de homens e mulheres
saudáveis e estou convencido de que aqui está a acontecer algo de proporções
consideráveis.” Wells completamente rendido a Estaline! Com a entrevista de Mao
acontece um pouco a mesma coisa: estando num menos bom momento político, o
chefe chinês não sai do domínio da política e tenta justificar toda a sua acção
e contra-atacar os adversários, fortemente apoiado pela explicação do que se
passa no seu país e do modo de funcionamento da política e das instituições.
Semelhante fascínio exerceu Hitler sobre Viereck, que, regressado aos Estados
Unidos, tornou-se militante pró-alemão e chegou a ser activista da Alemanha
nazi. Refugiando-se num discurso anti-marxista e profundamente germânico,
Hitler defende os seus ideais e chega a encolerizar-se – “As veias da fronte de
Hitler incharam ameaçadoramente. A sua voz enchia a divisão” foi o registo
final do jornalista. Pelo caminho, muitos apelos, condensados num só: “Queremos
uma grande Alemanha que unifique todas as tribos germânicas. (…) É imperativo
despertar o espírito alemão. (…) Na minha visão do Estado alemão, não haverá
lugar para o estrangeiro, o esbanjador, o agiota ou o especulador, nem para
ninguém que seja incapaz de levar a cabo um trabalho produtivo.” Já a
entrevista de Gandhi é a procura de consenso, uma busca de entendimento com a
Grã-Bretanha para que a Índia seguisse o seu caminho: “Quando a Índia desfrutar
do calor da independência, provavelmente aderirá a um acordo [de carácter
defensivo], de livre e espontânea vontade. A amizade espontânea entre a
Grã-Bretanha e a Índia estender-se-ia então a outras potências e entre todas
manteriam o equilíbrio, visto que apenas elas deteriam a força moral para o
fazer. Desejaria viver mais vinte e cinco anos para ver esta visão tornar-se
realidade.” Infelizmente, assim não aconteceu e, ainda não eram passados dois
anos sobre esta entrevista, em Janeiro de 1948, um extremista hindu assassinou
Gandhi.
Entrevistas
de formas de ser, de análises pessoais, de disfarce, de sonhos, de afirmação
perante os outros, de sedução perante os jornalistas, independentemente da sua
experiência, de tudo acontece neste lote de dez momentos em que o jornalismo se
encontrou com a História e em que o mundo foi sendo construído…
Sublinhados
Audácia – “Quando alguém se propõe ir além do poder, tem de o
fazer com audácia.” [Mahatma Gandhi. Entrevista a H. N. Brailsford, em Harijan (14-04-1946). Grandes Entrevistas da História 1931-1951.
Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 106]
Personagem – “Só a História dirá até que ponto foi importante
esta personagem ou aquela.” [Josef Estaline. Entrevista a H. G. Wells, em The New Statesman and Nation (27-10-1934).
Grandes
Entrevistas da História 1931-1951.
Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 50]
[com a edição do próximo sábado do Expresso, o nº 4 desta obra]
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