Quando se lê um título como este – Promessa (Setúbal: ed. Autor, 2010) –, o que se pode esperar dele? Promessa, palavra assim liberta e isolada, sem nenhum determinante a antecedê-la, sem nenhuma outra palavra a qualificá-la… Promessa, apenas.
Talvez a máxima que inaugura o livro nos acrescente alguma coisa – “uma promessa é a exaltação de um compromisso”. E, aqui, se nos afigura uma linha que ganha consistência no poema de abertura, com um título que é de designação: “Eis o livro”. A primeira coordenada dirige-se ao leitor – “Este o livro que ofereço a quem ama a poesia.” O poeta promete, pois, o seu produto, a sua poesia, e conta com um interlocutor à altura, o leitor amante ou amador de poesia. A segunda coordenada relaciona-se com o mundo do poeta, com o que pode ser o povoamento do seu livro – “revela o meu sentido ético, irreverente, das minhas ideias e estéticas próprias”. O poeta promete traçar a sua paisagem privada, materializar pela palavra o seu pensar, associado a um dizer de onde a estética não esteja arredia. No fundo, fazer com que as ideias permaneçam pela arte. E temos a terceira coordenada, mesmo no final deste poema – “Continuarei escrevendo, defendendo sempre / os valores supremos da nobre arte.”
Serão estes os três ingredientes da “promessa” com que Ilídio Gomes nos povoa estas páginas, albergadas à sombra da poesia. E são eles mesmos que vão fechar o livro, cerca de uma centena de páginas adiante, quando o poema “A vida” é assim rematado: “A vida afinal não é mais do que um livro / que se lê e sempre tem um fim.” Algo que quase nos diz que a promessa foi cumprida e a missão obteve o seu termo.
Estes pouco mais de oitenta poemas, em que a poesia várias vezes é definida – ou, pelo menos, invocada – pairam maioritariamente em torno de quatro eixos temáticos: o da perspectiva biográfica, o das aprendizagens, o do local e o da construção da poesia.
No primeiro grupo, podemos integrar textos que nos dizem os percursos do poeta no mapa da vida, num misto de desbravamento e de dádiva, de descoberta e de demanda: “A vida levou-me para lá do fim do mundo, / Naveguei por mares de águas ondulantes / Em busca de coisa nenhuma, / Rompendo a roda do tempo, / Alheio à vida, face à vida!” Este grupo de textos mais marcados pela biografia socorre-se por vezes da memória – “Vejo-me e revejo-me / No que era e sempre fui”. Mas há também a preocupação da imagem a deixar, seja para afirmar a imprecisão – “imagem controversa / quase sempre fugitivo de mim” –, seja para delinear a tela de um auto-retrato (que é, de resto, o título de um poema), em que estão patentes as marcas da solidão, da honestidade, da razão, da diferença, da tranquilidade, valores que sublinham a construção de um quase manifesto pessoal.
O segundo grupo, a que chamo das aprendizagens, integra estrofes ou versos que resultam como máximas ou orientações, normalmente relacionadas com o trajecto de vida. É assim que o leitor aprende que “não é onde se bifurcam os caminhos / que morrem as encruzilhadas” ou que “o homem raramente se lembra / que a vida floresce no alvor / de todas as madrugadas”. A ideia dos caminhos ganha consistência nas aprendizagens que Ilídio Gomes faz passar e, mais adiante, reaparece a imagem do itinerário: “Há sempre uma rota, um rumo / por mais duro que seja. / Há sempre dois caminhos / há sempre duas margens / em cada rio…” Saberes que se adquirem com a prática da vida, mas também com as marcas que os outros vão deixando, tal como é revelado num texto intitulado “Compromisso”, que outra coisa não é senão uma carta dirigida ao poeta Sebastião da Gama, a reforçar a promessa do cumprimento, o compromisso com valores veiculados através do poeta da Arrábida – “Eu quero ser verdadeiro / eu quero afirmar hoje e sempre / que foi contigo que aprendi / que quanto mais se sonha / mais tarde se acorda do sonho” ou, noutro passo do mesmo poema, “Aprendi a não fugir do medo, / que com coragem se chega ao fim, / que é a coragem que anima a força / e tempera o cansaço.”
Quanto ao terceiro eixo, relacionado com o local, podemos dizer este livro de Ilídio Gomes se compromete também com a região de Setúbal. Poemas há que projectam a paisagem sadina nos versos de Promessa, num quase alargar de horizontes. Entre os motivos possíveis, o poeta elege os seguintes: a rua, “tão estreitinha”, “maneirinha”, com “janelas pequeninas / todas viradas ao mar”, constituindo-se como ponto de partida para a descoberta do universo, por um lado, e da singularidade do bairro, por outro; o rio, Sado de seu nome, ora avistado à distância, a partir da janela, matizado por tonalidades várias do azul e do verde, ora tornado elemento que afaga os pés do poeta e se manifesta em “murmúrio lânguido”, perante uma cidade “por dentro cheia de luz, / por fora feita de mar (…) /onde o sol se acolhe / em cada asa de gaivota”; resta a serra, brevemente evocada como “serra-mãe”, a mostrar ligação a outros poemas e a outro poeta, paraíso de melodias e de doces entardeceres. Este compromisso do livro com a região de Setúbal é ainda visível em duas fotografias alusivas a conhecidas paisagens setubalenses – o palácio da Comenda, junto ao Sado, e a Doca dos Pescadores, na Anunciada – introduzidas no livro, relacionando-se com o conteúdo apenas por esta dimensão do local.
Finalmente, o quarto conjunto, aquele que se relaciona com a escrita da poesia, muito recorrente, com contínuas entradas nos versos, mesmo que apenas por referência aos momentos em que o poeta se encontra com a poesia. O tempo entre o “crepúsculo” e a “madrugada” é o ideal para o poeta, uma viagem de escrita pela “noite”, que chega a ser “infinitamente bela”, sendo mesmo a escolha dos momentos crepusculares orientada para um acto tão fundamental quanto o do anúncio da morte – “Quando eu morrer / não anunciem a morte / esperem um instante até que anoiteça”. Estas preferências nocturnas para a visita da poesia completam-se com o necessário “silêncio” ou com a “solidão”, determinantes para os instantes de inquietação que a poesia é.
E voltemos à promessa, aquela que Ilídio Gomes puxa para título, uma promessa de palavras construída. Vive o poeta nas suas negruras e solidões, acariciando o poema, escrevendo pela noite fora, num acto de exaltação de um compromisso com a escrita para “dar luz à palavra”, como refere no poema intitulado “Escrever”. O essencial da promessa é essa transformação do sentir em poesia, da noite na luz das palavras, míticos elementos iluminados. Esse encontro com o verbo é ainda destacado numa nota posfacial que Ilídio Gomes conclui com uma outra máxima: “Entendo que escrever é dar luz ao mundo e a poesia, arte milenar, é ela própria um clarão de luz”.
Assim se executa a promessa, assim se conclui o livro, numa missão que põe a descoberto a essência, o mais íntimo que é permitido. Uma missão de luz, em conclusão.
[Na apresentação da obra, em 27 de Novembro de 2010, na Biblioteca Municipal de Setúbal.]
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