Quaisquer que sejam os escritos autobiográficos, eles resultam sempre da singularidade de uma experiência pessoal, seja esta singularidade reconhecida pelos outros, seja reconhecida pelo próprio que a viveu. Em qualquer dos casos, o protagonista dessa singularidade está predisposto a reconhecê-la e a considerá-la de tal forma importante que ela pode virar testemunho escrito. Abundam exemplos desses na literatura, resultados de vivências únicas na política, nos campos de batalha, em missões de solidariedade, na prisão, na doença, na profissão.
O que aqui nos traz Florindo Cardoso, no seu livro Sobreviver ao cancro (Setúbal: ed. Autor, 2010), é uma dessas experiências, é a singularidade do estado de doença por que passou, numa experiência de solidão e de confronto com as potencialidades da vida.
Logo na “Nota de Autor” é feita uma curta apresentação da narrativa: “É uma história de vitórias e derrotas, de alegrias e lágrimas, de sofrimento e dor; de uma certa felicidade por ter sobrevivido e poder contar aos outros a minha batalha.”
Esta necessidade de dar testemunho do vivido, apesar dos seus custos (psicológicos, sobretudo) implica também que se fale de esperança, que pode ser algo tão fácil como não alimentar o pessimismo, como viver o momento oportuno para uma palavra amiga dirigida a quem dela precise, vivência que Florindo Cardoso reconhece nem sempre ter tido, como confessa ao encerrar a nota: “Os portugueses têm um defeito terrível que está bem presente em qualquer situação: nunca simplificam, antes complicam, transmitindo uma energia negativa.” Puxão de orelhas, é certo, a hábitos sociais que, na verdade, nada ajudam em momentos difíceis!
A manhã de 6 de Fevereiro de 2009 foi o início deste testemunho, numa história dramática em que o sangue corre pelas pernas, incontrolável; em que a solidão torna o momento mais trágico; em que a calma do outro lado da linha telefónica mais serve para conduzir ao desespero de uma evidência: a luta desmesurada entre o homem e o mal, a obsessão pela vida, o medo da morte.
A narrativa inicia-se com a violência da revelação – “Tem um cancro maligno e está anémico”, frase que penetra “como uma autêntica facada no coração” e que resulta de um confronto brutal com a descoberta, mais sublinhado pela insensibilidade de quem profere a sentença.
A partir daqui, a experiência narrada vive com todas as pequenas coisas a saberem a passos importantes: é a voz de uma voluntária que acalma e incita à persistência na luta, “uma estrela num céu tão cinzento”, pensa o doente; é o olhar pela sala de espera de um hospital, onde estão “dezenas de pessoas a queixar-se de dores e outras maleitas”, contando “histórias incríveis”; é a estranheza perante o tom algo desportivo que vai sendo posto por alguns técnicos na realização das respectivas tarefas… Enquanto anda de um lado para o outro – aqui incluindo o trajecto entre dois hospitais, entre Lisboa e Setúbal –, o doente confronta-se com o facto de que tudo corre “como se ele não existisse”, comentário forte e incisivo quanto ao que deve ser a atitude de quem trabalha na saúde. Apesar do sofrimento, este doente vai tendo energias para algum sentido de humor e de crítica.
A narrativa que Florindo Cardoso nos traz, sendo uma memória de um seu tempo e do seu sentir, não esconde as vicissitudes do protagonista, os seus momentos de fragilidade, como acontece quando está já na cama do hospital de Setúbal: “As pestanas fecharam-se e o medo venceu a dor e as lágrimas.”
Na semana que passou até à intervenção cirúrgica, o tempo foi de revolta, em “dias de muita infelicidade e lágrimas de sofrimento”, ao mesmo tempo que o corpo técnico estava agora a zelar também pelo equilíbrio emocional do paciente. E o decurso da história vai mostrando como um capítulo que se intitula “Revolta” acaba por dizer respeito ao tempo da esperança e do desejo de sentir o mundo que apela lá de fora, apesar da sombra das ideias suicidas.
O regresso a casa, pouco mais de duas semanas depois da manhã da tragédia, é uma pequena saudação à vida: “Que sensação óptima! Parecia um dia de Verão. (…) Sinto-me vivo! Quando entrei no meu apartamento, senti uma alegria enorme. Deitei-me no sofá e saboreei cada momento até adormecer.”
O capítulo que está sob o signo do “Regresso” vai dando conta do que é o encontro com a vida normal, quotidiana, mais numa perspectiva crítica, não faltando a referência aos hábitos sociais – “Parece que virou moda falar desta doença. Se por um lado é bom desmistificar para ajudar os doentes que se deparam com estes casos, por outro, acaba por afundar ainda mais e adensa-se o medo da morte.”
A verdade é que nada é tão forte como os pequenos sinais de libertação. É com graça e alguma curiosidade que decorre o passo de retirada da algália – “Finalmente, a 30 de Março, foi retirada a algália. O alívio foi tão grande. Pedi à enfermeira para mostrar o tamanho do tubo e pasmei com a sua grandeza. Os primeiros passos livres, sem saco para a urina, foram uma felicidade. Quando vi a enfermeira lançar os restos da algália para o lixo, apetecia-me gritar bem alto: estou livre!”
O humor posto em alguns comentários vai aliviando o peso da narrativa, tal como acontece no momento em que é relatado o retomar dos hábitos quotidianos: “Senti-me uma espécie de ‘morto-vivo’, com a sensação de que alguém esperava que já não viesse. Regressei e não houve funeral! Graças a Deus. Havia caras de espanto de pessoas que encontrava na rua.”
No entanto, uma segunda ameaça se preparava e, em 26 de Julho, acontecia nova entrada no hospital. Se a primeira estadia no quarto hospitalar servira para acalentar a revolta, esta segunda vai permitir o sabor amargo da solidão e do sofrimento, com um narrador a mostrar-se sem receio, a revelar-se na sua intimidade, num tom algo confessional: “Essa noite foi mal dormida e com muitas lágrimas. Pensei que tinha secado com tanto choro há três meses. Só que, na solidão do quarto, voltei a ver o filme todo da minha vida e chorei, chorei e chorei até adormecer em soluços.” Porém, depois da operação, é novamente o sentido de humor a intervir, numa ironia do narrador para consigo mesmo – ao ver-se com um dreno em cada lado das pernas, comenta: “Parecia uma árvore de Natal em fim de carreira”; ao ver a quantidade de pontos, considera: “Um cenário de filme de terror, sentia-me o filho do Frankenstein.”
As duas fases seguintes – da quimioterapia e da radioterapia – foram tempos de sofrimento silencioso, quer pelas consequências dos tratamentos, quer pelas forças necessárias para os aguentar. É a mesma escrita de dor, com os pormenores dos medos e dos isolamentos. É o encarar os outros doentes em situação de igualdade e de cumplicidade. É o olhar sobre outros casos com respeito e sofrendo a angústia do que estariam a sentir esses outros protagonistas.
Os quatro capítulos finais são um grito de esperança: “continuo a lutar pela vida com grande garra”. Isto, apesar de se manter uma certeza: a de que “o medo não vai embora, está sempre presente”.
Várias recomendações guarda Florindo Cardoso para este final: a de que “cada dia que passa [é] um sucesso e uma homenagem à vida” vale por muitos sonhos. Mas há também as recomendações mais simples da alimentação e de hábitos quotidianos. E, sobretudo, a última, que encerra o livro: “Encontrar a harmonia espiritual, dar maior importância às coisas simples da vida e descomplexar tantos problemas que surgem no dia-a-dia. Viver a vida.”
Iniciei esta leitura com a singularidade da história. E mantenho-a. Mas este relato não é apenas uma memória; é também um ensinamento e a prova de que a solidão de cada um se deve amparar, tal como Florindo Cardoso recorda: “Só mesmo o meu optimismo, o incrível apoio da equipa médica e da família permitiram vencer o derrotismo e os maus pensamentos.”
Finalmente, uma palavra sobre os apoios que Florindo Cardoso reconhece terem tido importante papel no seu percurso – a apoio do corpo médico e de enfermagem, é certo, que enaltece e a que agradece pelo seu papel de esclarecimento e de acompanhamento; o apoio espiritual, advindo de uma ligação forte à crença e ao sagrado, objectivado na dimensão religiosa de Nossa Senhora de Fátima, várias vezes referida como intermediária e recurso; o apoio familiar, sobre o qual tão pouco se sabe porque os testemunhos são normalmente dos doentes mas escassas vezes de quem os acompanha, assim nos estando vedado um outro tipo de sofrimento e de angústia. No entanto, este livro insere ainda o testemunho da mãe, numa carta dirigida ao filho, que, simbolicamente, abre o livro, memória de uma dor velada, minada por esse paradoxo que é o de “mostrar força”, por um lado, e refugiar-se nas lágrimas da incerteza, por outro. O livro surge, assim, completo, mostrando-nos o sofrimento dos dois lados, ainda que sendo um deles mais silencioso.
Se o discurso de Florindo Cardoso pode decorrer de uma conversa onde nada aparece como definitivo – mesmo o título é comedido, na medida em que não se fala de vitória –, onde algumas reservas vão aparecendo num percurso que é novo, iniciado e que vai sendo aprendido, o discurso da mãe é o da expectativa, manifestando o apoio mas claramente esperando pela reacção à doença… porque se pode ajudar a superar, mas apenas ao paciente é dada a possibilidade de efectivamente ultrapassar a crise.
Um e outro são testemunhos fortes, é verdade. Valem por isso e são necessários. Este gesto de partilha com os leitores é disso prova evidente!
[Na apresentação do livro, em 27 de Novembro de 2010, no Governo Civil de Setúbal.]
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