“Há pessoas tão secretas como os lugares escondidos desta história”. Esta é uma das primeiras afirmações do livro A Senhora da Fonte (Lisboa: Chiado Editora, 2010), de Luísa Borges, verdade que logo nos remete para o mundo da fantasia e do mistério, do fantástico, levando o leitor pelas veredas de uma narrativa que vai sendo guiada por temas clássicos como a luta entre o bem e o mal, por referências a histórias locais, por um grupo de personagens que fazem lembrar as aventuras em grupo, por uma entrada na história sem tempo.
Desde início nos apercebemos de que estamos a ser levados a pactuar com esse reino da fantasia, assim como quem se deixa levar pelas mágicas palavras de “era uma vez”. A diferença é que, nesta história, o tempo é o de 2007, no Verão, bem próximo, portanto, a contrastar com o longínquo calendário do “era uma vez”... Mas o carro em que as crianças viajam com a mãe vai entrando “para dentro do vale e da tarde” e, pouco depois, uma outra viatura corre “cada vez mais para dentro do lusco-fusco”. De entradas se fala na geografia, no tempo e num ambiente em que o mundo pode adquirir outras cores, outras tonalidades, tal como, já quase no final do livro, quando procuram Bernardo, os amigos vão “entrando, um após outro, por baixo do pórtico escuro e desaparecem nas entranhas da terra”.
Por outro lado, quando está a caminho da Arrábida, o jovem Bernardo, espreitando pelo vidro do automóvel em circulação, vai chamando a atenção à irmã, dizendo-lhe para olhar as árvores, que “estão a falar”, figura excelente para a animação da natureza, numa evocação de um país das maravilhas que poderia vir a ser o da estadia dos dois irmãos no colégio por um período de tempo indeterminado… quer dizer, um tempo de preparação até que o pai de Bernardo e de Catarina, militar, fosse resgatado depois de ter sido dado como desaparecido algures no Iraque, género de prémio para os filhos e para a família e marca que poria fim ao tempo necessário para haver a história.
Cada situação que vai acontecendo nesta aventura vai tendo o seu adensamento de mistério: de cada vez que as duas crianças são apresentadas a alguém, logo lhes é dito que já eram esperadas há muito tempo, assim se lhes antevendo uma missão; a casa da avó Henrieta tem “jardins misteriosos” e uma “campainha de outras eras”; a própria Henrieta é uma personagem antipática, severa, misteriosa e inacessível (como convém que haja numa história de aventuras e de mistério), vivendo na sua anacronia – fazia-se deslocar num carro “há muito extinto”, dos anos 30, mas “a grande velocidade” –, parecendo dar a conhecer as várias peças de um puzzle de que se desconhece o desenho final. O maior mistério é o que fica para resolver na história e constitui a trama da aventura: descobrir o paradeiro de Bernardo, que desaparecera inesperadamente porque – sabemo-lo nós, leitores – se deixara enlear numa teia de fascínio até ser absorvido num pântano que constituía um destino proibido.
Catarina e Bernardo, irmãos, sofrendo a ausência temporária dos pais (a mãe partira para o Oriente, em demanda do marido), vão descobrindo um mundo novo de relações e de histórias, numa viagem em que a imaginação muito ganha e em que o mundo é traçado a partir da imaginação, como se pode ver no raciocínio que Bernardo faz ao ver o carro da avó – “era igualzinho ao modelo miniatura da sua colecção” – isto é, o real é igual ao imaginário, ao brinquedo, ponto de partida para conhecer o mundo. Mas esta permanência no colégio é também a responsável por os levar até ao inferno ou até ao tempo dos dinossauros, ao conhecimento do mal, do sofrimento e da morte, a um passo de uma viagem na barca de Caronte, mas tendo obtido a salvação porque viajaram num barco remado por um poeta.
Ao longo de todas as experiências que essa vinda para um colégio, algures encostado à Arrábida, em Azeitão, lhes proporcionou, algumas vão sendo mais marcantes, sobretudo o encontro com o Cristóvão, o homem do ferro-velho, fumador de um cachimbo de porcelana que se passeava em charrete puxada por éguas, personagem saída das velharias, contador de histórias de antanho, uma outra forma de garantir a fantasia. É ele que vai introduzir a história de Hildebrando, o comerciante-navegador que povoa a lenda da Arrábida, já recriada por Henrique Lopes de Mendonça, por Miguel Caleiro ou por Carlos Alberto Ferreira Júnior ou, recuando mais, em antigas crónicas. E, a propósito desta entrada, é interessante registar o cruzamento da fantasia com a realidade, porque o velho Cristóvão conhecera esta lenda “através do seu conhecido Carlos Alberto Ferreira Júnior”, isto é, mistura-se a personagem de ficção Cristóvão com a figura local de Azeitão que foi Carlos Alberto, escritor e personalidade ligada ao movimento associativo, sobre quem já passou o centenário do nascimento.
A propósito de leituras, esta narrativa deixa-se levar também pelo confronto entre dois livros – um, dos sonhos; outro, de borboletas. Nenhum deles é, contudo, um livro inócuo e a luta pelo sucesso das personagens vai passar pela oposição entre os dois livros, uma vez que o dos sonhos é visto como uma preciosidade para ajudar, só o conseguindo ler quem esteja purificado, porque ele se torna quase profético e revelador, ao passo que o volume que contém as imagens das borboletas foi o responsável pelo acto de feitiçaria que levou Bernardo até muito perto da morte. A opção por um ou outro livro e respectivas consequências e a capacidade de as personagens os poderem ler é algo para que a narrativa também chama a atenção, como surge explícito quando a professora Lia recomenda a Catarina: “Cuidado com o que leres nos livros.” No extremo, um livro pode conduzir à salvação ou à condenação.
A história contada em A Senhora da Fonte apresenta vários pontos de contacto com a região azeitonense, não só pelas descrições que são feitas da serra da Arrábida, vista a partir da vila, mas também pela lenda de Hildebrando, pela presença dos golfinhos roazes e ainda pela invocação de Dona Constança, que por estas terras terá andado com o seu Pedro no que foi a Quinta da Nogueira.
Mas a ligação mais intensa surge através do poeta, figura algo mítica e fantasmática que funciona como adjuvante do grupo de jovens aventureiros na busca de Bernardo. Vários versos de Sebastião da Gama vão intercalando a narrativa, normalmente para funcionarem como chave de revelação, característica que bem assenta na ideia de poeta. A imagem que do poeta surge é a identificação com a figura de Sebastião da Gama, ainda que isso não seja explicitado, mas apenas sugerido por um adereço como a boina ou pelo permanente ar de simpatia e pelo sorriso ou por a personagem estar a dizer versos que têm como autor o poeta de Azeitão, assim o caracterizando. Interessante se torna verificar que é através da orientação dada pelo poeta que os jovens da história se salvam, ora porque ele se torna presente quando menos se espera, ora porque é ele quem conduz o barco que afasta o grupo de todos os perigos. Esta ideia de ser um poeta a salvar as crianças é forte nesta história, num quase hino de exaltação à poesia, verdadeiro “salvo-conduto” que o remador poeta vê renovado quase no final da narrativa, depois de uma viagem “debaixo da terra, dentro da montanha”, navegando num “rio secreto”.
Nesta viagem, em parte conduzida pela força do poeta e em parte bem sucedida pela capacidade de um ser alado com o simbólico nome de Archangel ter destruído os répteis transportadores do mal, o tempo foi marcado pela duração necessária para salvar duas personagens – Bernardo, desencarcerado do pântano e do mundo de vermes que dele se tentava apoderar, e o pai, o tenente Nogueira, encontrado no Iraque – e para restituir ao colégio e às outras personagens o bom ambiente de que necessitavam.
Livro que nos mergulha na fantasia, pois, e que transforma o final em festa, depois de nos levar às catacumbas do sofrimento. E, no momento em que a história e o livro se encerram, o leitor vê que o Poeta parte “sozinho, no bote”. E, com o narrador, apetece perguntar: para onde irá? Afinal, uma outra maneira de dizer que a história chegou ao fim e que acontece a saída do mundo da fantasia, pelo menos até ao momento em que o salvo-conduto do poeta sirva novamente para nos abrir as portas do sonho…
[Na apresentação do livro, no Museu Sebastião da Gama, ontem.]
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