No 10 de Junho comemora-se, entre outras coisas, a obra de Luís de Camões. Não cabe duvidar de que esse seja o propósito formal de Estado e das entidades oficiais envolvidas nos actos comemorativos, nem de que o nome, a figura e a obra do épico sejam automaticamente associados à simples menção daquela data.
Mas o que parece preocupante é o facto de cada vez menos haver em Portugal qualquer espécie de interesse por Camões e por aquilo que ele representa. O nome do autor de Os Lusíadas tende a ser apenas a marca distintiva de um feriado, ambíguo luxo nos tempos que correm, e pouco mais.
As questões da identidade começam por estar relacionadas com a língua materna e esta deve a Camões a sua dimensão moderna. Mas estão à vista as consequências que, para a identidade, decorrem do actual estado de coisas: a língua materna está cada vez mais deteriorada, tornou-se uma espécie de caixote do lixo onde cabem todos os dejectos e, tal como é utilizada e falada, um dia destes mal conseguirá distinguir-se de um mero conjunto de grunhidos comunicacionais.
Nem sabemos pronunciá-la, nem sabemos escrevê-la ou falá-la com um mínimo de correcção. E nem vale a pena falar da situação catastrófica que virá a ser gerada pelo Acordo Ortográfico se este algum dia se aplicar (para já, não está em vigor: o que acontece é que se começa a macaquear nalgumas publicações uma forma aberrante de grafar a língua).
A escola pouco ou nada tem feito para melhorar a situação. Pelo contrário: durante anos e anos, degradada por teorias pedagógicas e linguísticas absurdas, permissiva e frouxa de saberes, autoridade e disciplina, a escola tratou de substituir o trato com os grandes testemunhos da língua, indispensável para ela ser bem falada e bem escrita, por relatórios, bulas de medicamentos e outras coisas assim.
Vivemos numa época de apoucamento da língua, de empobrecimento do vocabulário, de aviltamento de todas as regras de gramática. É também um tempo em que toda a gama de valores que ela transporta consigo (intelectuais, cognitivos, estéticos, expressivos, afectivos...) deixou de contar. Vêmo-la subordinar-se servilmente ao facilitismo e à tecnologia, quando devia contribuir para uma estabilização dos seus paradigmas próprios, procurando equilíbrios permanentes com as tendências que são sinal dos tempos.
É por essas e por outras que os resultados escolares do nosso país, no confronto com as tabelas internacionais, costumam ficar no último lugar de todas as escalas. E em consequência a deficientíssima formação proporcionada por uma escolaridade leviana reflecte-se no geral atraso do país e na sua trágica incapacidade para fazer face aos problemas que tem de enfrentar.
Camões não podia imaginar que a geral incapacidade de aprender e falar correctamente a língua portuguesa explica em grande parte, tanto o insucesso escolar em todas as disciplinas como as restantes maleitas crónicas que nos afectam tão gravemente e não foram erradicadas pela generalização e democratização do ensino. Como explica a terrível ignorância com que os jovens concluem os seus cursos secundários e entram nos cursos superiores. E permite ainda compreender por que razão somos um país que não consegue sair da cepa torta.
Na comunicação intergeracional, também já parece não ocorrer aquela transmissão de um conjunto de princípios, de saberes e de tradições, entre eles os relativos à língua materna, que são elementos integradores da chamada cultura geral e de uma imprescindível visão do mundo transportada e transmitida ao longo do tempo.
Nada disto é novo. Há anos e anos que se discute o que se passa e não se consegue instaurar um conjunto de medidas, a começar pelos programas, que possam reputar-se de eficazes.
Basta trocar umas palavras com qualquer professor universitário para se ver que é assim e que não se sabe de que remédios lançar mão. A doença é muito funda e prolifera desreguladamente. Contribuiu para nos lançar na crise e, o que é pior, não abre perspectivas optimistas para sairmos dela.
O poeta dizia não lhe faltar na vida honesto estudo com uma longa experiência misturado. Hoje, muito poucos podem repetir esta afirmação em causa própria.
A língua de Camões está irreconhecível. Se ele voltasse ao mundo, decerto pensaria em rasgar a sua obra. Deixámos de ser dignos dela.
Mas o que parece preocupante é o facto de cada vez menos haver em Portugal qualquer espécie de interesse por Camões e por aquilo que ele representa. O nome do autor de Os Lusíadas tende a ser apenas a marca distintiva de um feriado, ambíguo luxo nos tempos que correm, e pouco mais.
As questões da identidade começam por estar relacionadas com a língua materna e esta deve a Camões a sua dimensão moderna. Mas estão à vista as consequências que, para a identidade, decorrem do actual estado de coisas: a língua materna está cada vez mais deteriorada, tornou-se uma espécie de caixote do lixo onde cabem todos os dejectos e, tal como é utilizada e falada, um dia destes mal conseguirá distinguir-se de um mero conjunto de grunhidos comunicacionais.
Nem sabemos pronunciá-la, nem sabemos escrevê-la ou falá-la com um mínimo de correcção. E nem vale a pena falar da situação catastrófica que virá a ser gerada pelo Acordo Ortográfico se este algum dia se aplicar (para já, não está em vigor: o que acontece é que se começa a macaquear nalgumas publicações uma forma aberrante de grafar a língua).
A escola pouco ou nada tem feito para melhorar a situação. Pelo contrário: durante anos e anos, degradada por teorias pedagógicas e linguísticas absurdas, permissiva e frouxa de saberes, autoridade e disciplina, a escola tratou de substituir o trato com os grandes testemunhos da língua, indispensável para ela ser bem falada e bem escrita, por relatórios, bulas de medicamentos e outras coisas assim.
Vivemos numa época de apoucamento da língua, de empobrecimento do vocabulário, de aviltamento de todas as regras de gramática. É também um tempo em que toda a gama de valores que ela transporta consigo (intelectuais, cognitivos, estéticos, expressivos, afectivos...) deixou de contar. Vêmo-la subordinar-se servilmente ao facilitismo e à tecnologia, quando devia contribuir para uma estabilização dos seus paradigmas próprios, procurando equilíbrios permanentes com as tendências que são sinal dos tempos.
É por essas e por outras que os resultados escolares do nosso país, no confronto com as tabelas internacionais, costumam ficar no último lugar de todas as escalas. E em consequência a deficientíssima formação proporcionada por uma escolaridade leviana reflecte-se no geral atraso do país e na sua trágica incapacidade para fazer face aos problemas que tem de enfrentar.
Camões não podia imaginar que a geral incapacidade de aprender e falar correctamente a língua portuguesa explica em grande parte, tanto o insucesso escolar em todas as disciplinas como as restantes maleitas crónicas que nos afectam tão gravemente e não foram erradicadas pela generalização e democratização do ensino. Como explica a terrível ignorância com que os jovens concluem os seus cursos secundários e entram nos cursos superiores. E permite ainda compreender por que razão somos um país que não consegue sair da cepa torta.
Na comunicação intergeracional, também já parece não ocorrer aquela transmissão de um conjunto de princípios, de saberes e de tradições, entre eles os relativos à língua materna, que são elementos integradores da chamada cultura geral e de uma imprescindível visão do mundo transportada e transmitida ao longo do tempo.
Nada disto é novo. Há anos e anos que se discute o que se passa e não se consegue instaurar um conjunto de medidas, a começar pelos programas, que possam reputar-se de eficazes.
Basta trocar umas palavras com qualquer professor universitário para se ver que é assim e que não se sabe de que remédios lançar mão. A doença é muito funda e prolifera desreguladamente. Contribuiu para nos lançar na crise e, o que é pior, não abre perspectivas optimistas para sairmos dela.
O poeta dizia não lhe faltar na vida honesto estudo com uma longa experiência misturado. Hoje, muito poucos podem repetir esta afirmação em causa própria.
A língua de Camões está irreconhecível. Se ele voltasse ao mundo, decerto pensaria em rasgar a sua obra. Deixámos de ser dignos dela.
Vasco Graça Moura. "A língua de Camões?". Diário de Notícias: 09.Junho.2010
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