O filme chegou hoje aos cinemas, o livro já anda por aí a circular há dias (François Bégaudeau. A turma. Col. "Ficção Universal". Trad.: Isabel St. Aubyn. Alfragide: Dom Quixote, 2008). É o tempo de um ano lectivo numa escola pública de Paris, com alunos em que o multiculturalismo é constante. As aulas são de Francês, língua não materna; o professor é francês, os alunos são dos mais diversos cantos e continentes.
A história corre rápida e é construída sobre as histórias do quotidiano, em sequências de diálogos que trazem as cores dos dias (e das aulas). As relações entre alunos ou do professor com os alunos são tensas, com a palavra a denotar a agressividade, o respeito (ou a falta dele), o interesse (ou não) pela escola, a ética, o espírito de turma, a contestação, a relativização de valores, as (des)motivações.
Entre les murs é o título original desta narrativa datada de 2006, agora traduzida para português e agora chegada ao cinema (realização de Laurent Cantet), com “Palma de Ouro” de Cannes neste ano. Dentro dos muros da escola, em que se sucedem as questões e os conselhos disciplinares, as chamadas de atenção, as provocações, em que é fácil ditar a expulsão de um aluno, em que é comum o conflito, perpassam o racismo e o (des)valor do outro, o consumismo, a aculturação, a emigração clandestina, o ambiente suburbano, as hipóteses do futuro da Europa.
Duma ponta à outra da história é o jogo entre duas equipas: de um lado, Souleymane, Khoumba, Djibril, Frida, Dico, Jingbin, Mohammed, Dounia, Sandra, Mezut, Hinda, Amar, Ming, Alyssa, Soumaia, Kevin, Fayad, Hakim e tantos outros, os alunos; do outro, Bastien, Chantal, Claude, Danièle, Élise, Gilles, François, Géraldine, Jacqueline, Jean-Philippe, Julien, Line, Luc, Léopold, Marie, Rachel, Sylvie e Valérie, os professores. E chega-se ao final com a sensação de empate.
Pelo meio, em que muitas personagens são identificadas pelos símbolos que usam (vestuário e ícones) encostados ao nome, há um contínuo saltitar da bola, às vezes forte e brusco, não se sabendo bem onde irá ela pontuar. Dos dois lados se corre por um caminho cada vez mais estreito, ao mesmo tempo que a escola se questiona (a dado passo, uma página é preenchida com 22 perguntas para reflexão na escola, em que a primeira é “quais são os valores da escola republicana e como proceder para que a sociedade os reconheça?” e a última é “como formar, recrutar, avaliar os professores e organizar melhor a sua carreira?”). Chega a ser útil tentar saltar os muros para ver a vida no exterior…
A ironia, que em dado capítulo o professor tenta explicar aos alunos enquanto recurso estilístico, percorre também muitas das conversas, uma ironia que mostra o que a escola também é. E, ironia das ironias, o tempo em que a história decorre traz também à memória um outro jogo em que Portugal entrou… – «“Hakim tu deves saber isto: quando se realiza exactamente o desafio de abertura?” Hakim levantou o nariz do papel, interrompido na contagem das cenas do acto II. “É no sábado. Às dezassete horas. Portugal-Grécia.”» Estava-se, pois, em 2004 e o tal sábado caía em 12 de Junho, em que a selecção portuguesa no “Euro” começaria a esmorecer frente a uma Grécia, perdendo por 2-1… Ironicamente também, a história conclui-se com um jogo de futebol entre turmas.
Frases vivas
Sanções por pontos – “A vantagem do sistema de pontos é a da carta de condução: o aluno sabe quando a sanção se aproxima, o que é um incentivo para se acalmar. O inconveniente é o da carta de condução: enquanto restarem pontos pode prosseguir quase impunemente.”
Respeito – “Um adolescente aprende aos poucos a respeitar os professores por causa das ameaças destes ou receando criar problemas.”
Genética – “Se alguma vez descobrirem que o gene do crime existe, há muitas coisas que vão mudar. Porque quem sabe como proceder para com as pessoas que possuam tal gene? Para já, dos que mataram, diz-se sempre que a culpa foi de algum modo deles, mas também de muitas outras coisas, circunstâncias atenuantes, como se costuma dizer. Acredita-se que não recomeçarão, se forem ajudados. Mas se possuírem o gene, então significará que não têm cura, e então que fazer? Serão sempre presos, ainda antes de cometerem algum crime.”
Poder – “Organizar o caos para construir o poder é apaixonante.”
Saber – “Não é grave não compreender tudo. Ninguém compreende tudo. Mesmo eu, às vezes, só compreendo metade do que digo. (…) O que importa é fazer o máximo possível, e depois se vê.”
Fazer – “Já todos nós fizemos coisas de que nos envergonhámos.”
Aprender – “Só aprende quem quiser aprender, quem estiver inscrito num projecto.”
Mundo – “Todos os homens são mentirosos, inconstantes, falsos, faladores, hipócritas, orgulhosos e cobardes, desdenhosos e sensuais; todas as mulheres são pérfidas, artificiais, vaidosas, curiosas e depravadas; o mundo não passa de um esgoto sem fundo onde as focas mais disformes rastejam e se contorcem em montanhas de imundície, mas há no mundo uma coisa sagrada e sublime, é a união de dois destes seres tão imperfeitos e tão horríveis. Somos muitas vezes traídos no amor, muitas vezes magoados e muitas vezes infelizes; mas amamos, e quando estamos à beira da cova, voltamo-nos para olhar para trás, e pensamos: sofri muitas vezes, enganei-me algumas vezes, mas amei. Fui eu que vivi e não um ser fictício criado pelo meu orgulho e o meu tédio.”
1 comentário:
Também estou com alguma curiosidade de assistir ao filme.
como nota de rodapé, estranhei a sua falta na colocação do nosso saudoso amigo António Fortuna!
aureliano
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