quarta-feira, 2 de abril de 2014

Vicente Penim, um setubalense na Grande Guerra


«Ontem, pelas 15 horas e 25 minutos, na altura em que passava pela Rua 24 de Julho o eléctrico 328 repleto de passageiros, o conhecido e destemido gatuno Farruca dos Santos agarrou o eléctrico e meteu-o debaixo do braço desaparecendo para nunca mais ser visto. A polícia procura o paradeiro do gatuno e do eléctrico.»
Surrealista? Talvez. Seu autor? Um combatente setubalense na Flandres, em data incerta, entre 1917 e 1918. Objectivo? Aligeirar a tensão e alegrar os ânimos dos camaradas, oficiais incluídos, todos habituados ao sofrimento da guerra, inventando histórias que eram comunicadas como notícias, em imitação de leitura num qualquer número do Século ou do Diário de Notícias, nas edições que conseguiam chegar ao campo de batalha.
Socorro-me do testemunho de Pedro de Freitas (1894-1987), que foi contramestre de clarins do Batalhão de Sapadores de Caminhos de Ferro e rumou em 1917 para a Flandres, tendo, duas décadas depois, partilhado as memórias desse tempo na obra As minhas recordações da Grande Guerra (Lisboa: 1935), título que albergou também a sua lembrança do cruzamento e do contacto com o setubalense Vicente José da Silva Penim (1888-1957), ferreiro de profissão e, depois da Guerra, operário na Fábrica de Material de Guerra.
No retrato deste setubalense sobressai a sua faceta de bem-disposto, homem de narrativas interessantes, com refinado humor (como se depreende da “notícia” sobre o roubo do eléctrico) e também a de poeta, que, não tendo publicado livro, teve a sorte de encontrar Pedro de Freitas, responsável por ter passado a escrito os seus versos, por vezes entoados com o acompanhamento de uma improvisada guitarra de latão.
Os poemas que estão reproduzidos na obra acima mencionada versam o quotidiano dos soldados portugueses na Flandres, por vezes manifestando a opinião corrente, outras vezes satirizando situações, outras ainda evocando momentos desse dia a dia. Num dos poemas, Penim deixa passar o paradoxo do que é estar na guerra: “Guerra medonha, odiosa, / Que obrigas a criatura / A procurar sepultura / Na idade mais ditosa. / Tua atitude horrorosa / Como ambição encarei, / Razão porque detestei / O teu bárbaro destino: / Fazes de mim assassino / Obrigado pela lei.”
Num outro poema, em que relata o sofrimento sentido em La Lys em 9 de Abril de 1918, evoca a figura da mãe para redobrar a coragem no combate contra o alemão, como sugere no mote: “Quando a forte artilharia / Produz a explosão, / Julgo ver-te, pobre mãe, / Entre o fumo do canhão.” As décimas seguintes serão explícitas – logo a primeira: “Nesta guerra envolvido / Tendo da vitória a esperança, / Para defender a França / Eis-me pronto e decidido. / Ao lembrar-me o lar querido, / Fonte da minha alegria, / Profunda melancolia / O coração me invade; / E rebenta de saudade / Quando a forte artilharia.” E, na última estrofe: “Mãe, que deste à luz um filho / E que jamais o esqueces, / Mil elogios mereces / Por seu tormentoso trilho. / Dá-te orgulho, dá-te brilho, / A minha honrosa missão. / Resistindo ao alemão / Morro cheio de coragem / Por julgar ver tua imagem / Entre o fumo do canhão.”
Entre os designados fados da trincheira, ocorre um muito conhecido versando o tipo de alimentação, que tem a seguinte quadra como mote: “O corned-beef afamado / Zangou-se com o feijão. / Foi dado incapaz o vinho, / Anda de licença o pão.” O título foi buscá-lo o fado ao primeiro verso e, com frequência, é a letra mencionada como tendo sido escrita nas trincheiras. É verdade, como também é verdade que o seu autor, quase nunca indicado, a produziu em 25 de Setembro de 1917, mal sabendo ler e escrever, confiando o momento de inspiração a Pedro de Freitas: o fado do “corned-beef” tem como autor o setubalense Vicente Penim.

2 comentários:

Maria Penim disse...

Sou descente de Vicente José da Silva Penim. Filha de um dos seus 5 filhos e uma dos seus 15 netos.
Grata pelo seu texto em que recorda o avô que não conheci.
Obrigada.

João Reis Ribeiro disse...

Obrigado pelo seu comentário, Maria Penim. Será que a posso contactar? Via facebook, talvez...