[9 de Abril] “O bombardeamento aberto
às 4h15 vai alastrando, crescendo e aproximando-se como um imenso incêndio numa
seara. (…)
Estou
(…) assistindo (…) ao bombardeamento, ao despejo contínuo dessa cornucópia
infernal, que em volta de nós vasa projécteis espantosos, muitos dos quais de
trajectória mais curva se ouvem vir, uivando e dando a impressão da morte, a
chegar de instante a instante!
A
terra treme, o ar vibra, o arvoredo geme e a minha caserna oscila até aos
alicerces. Nos seus subterrâneos, como os antigos cristãos que esperam a hora
de serem lançados às feras, um punhado de almas rezam a oração do amor da
Pátria e um punhado de corações batem uníssono de amor à vida. A igualdade da
adversidade os une. Só eu não rezo, com medo de ter medo, mas em compensação
alguém o faz por mim!
A
ferme vai-se desconjuntando até que por fim vem a ser devorada pelo incêndio.
Por aqui e por ali os tectos voam, as paredes fendem e os adobes despenham. A
padieira e os umbrais a que me encosto esmagar-me-ão, mas… este é o lugar que o
meu brio me determina! (…)
Chamo
os poucos homens que me restavam, formo-os e parto mas, entretanto, a
deslocação de ar produzida por uma granada de grande calibre sacode-nos. Os
meus soldados lançam-se por terra para escaparem aos estilhaços e alguns até
correm a procurar abrigos detrás das paredes de lona de uns anexos ao
alojamento como se fossem paredes de aço! Depois erguem os olhos espavoridos
para mim que, levantado, tenho rebuço de curvar a cabeça à morte que passa e
continua a passar, assobiando árias macabras…
O
espectáculo é como os nossos sentidos, habituados a bombardeamentos, jamais
tinham visto. Campos de esmeralda a serem pontuados pelas explosões. Altos
choupos decepados como vidas que desaparecem. O nevoeiro a envolver tudo em
mais escura tragédia, porque o sol se recusa a iluminá-la. (…)”
[10 de Abril] – “Neste segundo dia, o
fogo passou a ser mais renhido, incluindo granadas de gás, e as perdas
sensíveis , principalmente entre os escoceses.
Com
efeito, adiante de nós todos, nas primeiras e segundas linhas, já não existe
desde ontem senão um extenso sepulcro português. Tantos corpos desfeitos na
lama flamenga, embora com suas almas nimbadas de glória, devem sentir o peso
das tropas e viaturas de um exército imperial. Os que não se renderam morreram.
Sem dúvida, os mais heróis são estes. Os mais habitual e ingratamente
esquecidos os mesmos. Mártires todos, sem deixar de contar os mutilados,
feridos e gaseados. A aumentar o horroroso quadro, cadáveres inimigos em número
muito superior se misturam com aqueles. Bandos de corvos, como águias negras,
prussianas, vão assinalando a marcha vitoriosa.”
David Magno. Livro da guerra de Portugal na Flandres (vol. 1).
Porto: Companhia Portuguesa Editora, 1921
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