«Ontem, pelas 15 horas e 25 minutos, na altura em que
passava pela Rua 24 de Julho o eléctrico 328 repleto de passageiros, o
conhecido e destemido gatuno Farruca dos Santos agarrou o eléctrico e meteu-o
debaixo do braço desaparecendo para nunca mais ser visto. A polícia procura o
paradeiro do gatuno e do eléctrico.»
Surrealista? Talvez. Seu autor? Um combatente
setubalense na Flandres, em data incerta, entre 1917 e 1918. Objectivo?
Aligeirar a tensão e alegrar os ânimos dos camaradas, oficiais incluídos, todos
habituados ao sofrimento da guerra, inventando histórias que eram comunicadas
como notícias, em imitação de leitura num qualquer número do Século ou do Diário
de Notícias, nas edições que conseguiam chegar ao campo de batalha.
Socorro-me do testemunho de Pedro de Freitas
(1894-1987), que foi contramestre de clarins do Batalhão de Sapadores de
Caminhos de Ferro e rumou em 1917 para a Flandres, tendo, duas décadas depois,
partilhado as memórias desse tempo na obra As minhas recordações da Grande
Guerra (Lisboa: 1935), título que albergou também a sua lembrança do
cruzamento e do contacto com o setubalense Vicente José da Silva Penim
(1888-1957), ferreiro de profissão e, depois da Guerra, operário na Fábrica de
Material de Guerra.
No retrato deste setubalense sobressai a sua faceta de
bem-disposto, homem de narrativas interessantes, com refinado humor (como se
depreende da “notícia” sobre o roubo do eléctrico) e também a de poeta, que,
não tendo publicado livro, teve a sorte de encontrar Pedro de Freitas,
responsável por ter passado a escrito os seus versos, por vezes entoados com o
acompanhamento de uma improvisada guitarra de latão.
Os poemas que estão reproduzidos na obra acima
mencionada versam o quotidiano dos soldados portugueses na Flandres, por vezes
manifestando a opinião corrente, outras vezes satirizando situações, outras
ainda evocando momentos desse dia a dia. Num dos poemas, Penim deixa passar o paradoxo
do que é estar na guerra: “Guerra medonha, odiosa, / Que obrigas a criatura / A
procurar sepultura / Na idade mais ditosa. / Tua atitude horrorosa / Como
ambição encarei, / Razão porque detestei / O teu bárbaro destino: / Fazes de
mim assassino / Obrigado pela lei.”
Num outro poema, em que relata o sofrimento sentido em
La Lys em 9 de Abril de 1918, evoca a figura da mãe para redobrar a coragem no
combate contra o alemão, como sugere no mote: “Quando a forte artilharia /
Produz a explosão, / Julgo ver-te, pobre mãe, / Entre o fumo do canhão.” As
décimas seguintes serão explícitas – logo a primeira: “Nesta guerra envolvido /
Tendo da vitória a esperança, / Para defender a França / Eis-me pronto e
decidido. / Ao lembrar-me o lar querido, / Fonte da minha alegria, / Profunda
melancolia / O coração me invade; / E rebenta de saudade / Quando a forte
artilharia.” E, na última estrofe: “Mãe, que deste à luz um filho / E que
jamais o esqueces, / Mil elogios mereces / Por seu tormentoso trilho. / Dá-te
orgulho, dá-te brilho, / A minha honrosa missão. / Resistindo ao alemão / Morro
cheio de coragem / Por julgar ver tua imagem / Entre o fumo do canhão.”
Entre os
designados fados da trincheira, ocorre um muito conhecido versando o tipo de
alimentação, que tem a seguinte quadra como mote: “O corned-beef afamado /
Zangou-se com o feijão. / Foi dado incapaz o vinho, / Anda de licença o pão.” O
título foi buscá-lo o fado ao primeiro verso e, com frequência, é a letra
mencionada como tendo sido escrita nas trincheiras. É verdade, como também é
verdade que o seu autor, quase nunca indicado, a produziu em 25 de Setembro de
1917, mal sabendo ler e escrever, confiando o momento de inspiração a Pedro de
Freitas: o fado do “corned-beef” tem como autor o setubalense Vicente Penim.
2 comentários:
Sou descente de Vicente José da Silva Penim. Filha de um dos seus 5 filhos e uma dos seus 15 netos.
Grata pelo seu texto em que recorda o avô que não conheci.
Obrigada.
Obrigado pelo seu comentário, Maria Penim. Será que a posso contactar? Via facebook, talvez...
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