O 40º aniversário do 25 de Abril foi pretexto para uma
antologia de poetas setubalenses sob o título Abril – 40 anos 40 poemas, publicamente apresentado ontem, que
constitui, simultaneamente, a primeira edição da Casa da Poesia de Setúbal,
movimento em formação.
O livro reúne 29 autores (a maioria dos quais com obra
já publicada) – Alexandrina Pereira, Ana Wiesenberger, António Galrinho,
Arlindo Mota, Carlos Rodrigues, Deolinda da Conceição, Eduarda Gonçalves,
Fernanda Esteves, Fernando Guerreiro, Fernando Paulino, Filipe Gonçalves,
Helena de Sousa Freitas, João Carlos Raposo, João Santiago, Joaquina Soares,
José-António Chocolate, José Nobre, José Raposo, Linda Neto, Luís Filipe
Estrela, Manuela Matos Silva, Maria Clementina, Maria do Carmo Branco, Maria Sol,
Maurícia Teles da Silva, Miguel de Castro, Resendes Ventura, Vanda Solho e
Virgínia Costa.
Os quarenta motivos para evocar Abril podem
congregar-se na frase que abre o prefácio, assinado por Maria das Dores Meira,
presidente da Câmara Municipal de Setúbal, ao dizer: “Abril também se fez na
poesia. E pela poesia.” Esta chave será apenas metafórica, mas é exactamente desse
sentimento que partem todos os dizeres, uns mais dominados por ligações
afectivas e quase íntimas, outros assentando no jogo das palavras, alguns
evocando o momento de há quatro décadas, uns tantos reclamando o cumprimento de
Abril, muitos apoiados numa crítica resultante de alguma desilusão, vários
insistindo na ideia da liberdade. Este trajecto poético pela lembrança de Abril
adquire, assim, matizes de diversidade.
A predominância surge marcada por uma certa disforia, ao
mesmo tempo que pelo sentir a necessidade de ser retomado o ideal. À crítica
presente nos versos de José-António Chocolate, quando se interroga
anaforicamente sobre o mundo da representação (“Onde nos leva esta gente que
anda tão contente / como só seus olhos vissem donde a alegria lhes vem./ … / Onde
nos leva esta gente que anda tão contente / como se milagre houvesse estando
Deus ausente. / … / Onde nos leva esta gente que anda tão contente / como se
trajasse saúde estando tão doente. / … / Onde nos leva esta gente que anda tão
contente, / alheia a quem sofre, em seu ar emproado e impertinente.”), ou de
José Raposo, quando se revolta com uma certa desfaçatez (“Mas há quem viva brincando
/ com a nossa Liberdade, / esquecendo talvez o pranto / dos que sofreram por
ela, / no corpo sentindo a dor / mas lutando com fervor / Liberdade, como és
bela.”), responde a intenção de Ana Wiesenberger, construída sobre a antítese
da reduzida dimensão geográfica e da forte intensidade da palavra (“Portugal,
meu Portugal pequenino / É urgente que as tuas gentes inundem as Praças / Que
os nossos gritos sejam farpas / Que o nosso hino traje de novo / A
transparência desejada / O fim dos conluios que nos arruínam / A solidez da
veracidade nos caminhos”) ou de Deolinda de Jesus, com versos em jeito de
palavra de ordem (“É urgente devolver a paz ao povo / E com seu poder criar um
país novo / A união dum povo tem a força da razão.”).
A esperança é algo que inunda muitos dos poemas aqui
presentes, alicerçada sobre o sentimento e a vivência da liberdade, como se
pode ver nas palavras de Maria do Carmo Branco – “Neste país apertado de
tristeza / onde a dor e o desalento se acentua, / construiremos de novo o
poema, / quebraremos a força da algema, / erguendo a Palavra em cada rua…” Por
estes caminhos cravados de dizeres e de expressão do que vai na alma,
Alexandrina Pereira retoma a imagem do cravo e personifica-o como o elemento
capaz de ser transportador da esperança – “Meu cravo de Abril com alma de povo
/ Volta por favor a florir de novo!”
A imagem do cravo é forte no texto de Helena de Sousa
Freitas, num poema que joga com palavras e conceitos sob o título de “A (r)evolução
dos (es)cravos”, cujos dois primeiros versos assumem um tom provocatório – “Cairá
por evolução ou por aférese / o ‘r’ da revolução, assim decapitada?” O poema
evolui no sentido de uma resposta igualmente desafiadora, presente no último
terceto: “E, se nos pedem o desfalque da palavra, / nós rebatemos com perpétuos
ideais. / Pois somos cravos… ainda, sempre e muito mais!” E por aqui se chega à
responsabilidade que na afirmação da liberdade tem cada um, poeta ou não, como
propõe João Santiago no final do seu interrogativo título “Remédio?”, a sugerir
que a solução não poder vir através dos outros, mas do compromisso de todos: “No
uso da liberdade / que em ninguém delego, / ouso dizer: / que a haver luz, / se
luz houver, / ou é a luz a vir de ti / ou não é luz.”
Evocação e compromisso, mesmo que apenas poético, é
este livro, que surge uma década depois de outro construído com o mesmo
objectivo, 25 de Abril – Revolução dos
Cravos – 30 anos 30 poemas (Setúbal: Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão,
2004). Os dez anos que separam estas antologias (entre as quais só há seis
autores comuns) podem também permitir uma leitura simultânea das duas obras,
gesto que colocará o leitor perante um desafio: o que se nota que mudou no “espírito
de Abril” através da palavra poética? Fica o convite para essas leituras…
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