No
“Prólogo” a este Não há duas equações
iguais (Lisboa: Chiado Editora, 2012), de João Miranda, a primeira quadra
lança o leitor perante um enigma quando diz: “Larguei de vez a poesia, / deixei
de andar sempre / acompanhado por um caderno / de versos que me faz acreditar.”
Paradoxal nos parece esta declaração de abandono da poesia para abrir um livro
que é de poesia!...
Continuando,
a segunda estrofe justifica a decisão do poeta: “Já não vale o esforço, /
apenas me faz sofrer / e acreditar que tudo / irá mudar é apenas / uma ilusão.”
A dor e o sofrimento causados pelo momento da escrita são o parto do próprio
poema. Os versos alinham-se porque o poeta tem algo a exprimir, são apenas o
seu olhar e sentir, não são uma pedra para mudar o mundo, tão-só um pretexto para
o poeta se conhecer.
Significativamente,
o primeiro grupo de poemas alinha-se pelo título “o mundo”, onde mais é dito
sobre o “eu” do que a propósito do que cerca este “eu”. Veja-se, por exemplo, o
poema dedicado a Setúbal, que se inicia de forma contundente: “Confesso-te minha
amada Setúbal, / és um desgosto no meu olhar”. Depois, há justificações para
esta desolação e um final que apazigua: “mas és a cidade que me viu crescer / e
pouco a pouco me fez feliz.”
Poemas
de contrastes são estes, que correspondem a momentos, aos tais excertos do
tempo que se registam no caderno, numa tentativa de fazer justiça ao princípio
que o próprio poeta estabelece, em jeito de máxima: “Vive e escreve a tua vida,
/ enquanto sabes escrever, / enquanto podes viver.” É que, como o próprio
título anuncia, “não há duas equações iguais”, verdade que surge a fechar um
poema em que o poeta se confronta consigo mesmo no desenho de um auditório em
que se fala do universo, ficando ao poeta a amargura de não se explicar “o
universo / de que somos feitos”.
Parodiando
um título de Rilke, este livro de João Miranda bem poderia responder ao título
de “cartas de um jovem poeta”, cujos
poemas são reflexos e registos de momentos, de procuras, de lutas contra o
vazio e a solidão, de homenagem aos gestos de alguns seres que na sua vida se
têm cruzado.
O
agrupamento destes poemas por títulos tão diversos quanto “mundo”, “vazios”, “momentos”,
“a força”, “amores de verão”, “ecos da distância”, “a ideia de ti”, “combustão”,
“pessoas” e “definições de mim” dá ao leitor a ideia dessa fragmentação, desse
todo multifacetado, sempre desigual e constante na sua evolução, desse tempo
que ultrapassa a noção de cronologia mas que se relaciona com a intensidade dos
instantes, sejam eles de euforia ou de vazio.
Rapidamente
o leitor conclui que aquelas verdades de rejeição enunciadas no “Prólogo”
podiam ser discutíveis, sobretudo à luz de uma lógica que Pessoa tão bem
apresentou a propósito do fingidor que o poeta é e a propósito da dor do poeta.
Esse eco pessoano é, de resto, adoptado por João Miranda no final do livro,
sugestivamente num texto intitulado “Arte poética”, onde são cantados os
prazeres da vida e é reelaborado o papel da palavra escrita: “Enquanto a veia
da poesia correr em mim, / não posso negar tal alegria.”
Muito
forte é, aliás, este último grupo, convenientemente intitulado “Epílogo”,
espaço único para uma “Autobiografia poética”, texto que glorifica o nível de
conhecimento e de saber que ao poeta é dado, que compromete o ser que se
revelou com a própria poesia, que apazigua quem fala com quem é imaginado ouvir
– um “tu” sempre presente, sempre a fazer o mesmo caminho de versos. Esta “autobiografia
poética” põe em igualdade o efeito de todas as experiências, venham elas do
manejo da palavra ou do saber sobre o mundo. Vale a pena determo-nos, por isso,
na leitura deste poema que, propositadamente, ficou para o fim, qual chave de
ouro que permite o acesso ao essencial do “eu”: “É bonita a estrada / que nos
segue, não é? // Sabes, sou estudante do engenho, / sou músico e, / acima de
tudo, poeta. // (…)”
Finalmente,
o derradeiro texto vale pela sua afirmação: “Vivo de escrever, / escrever
é o meu ar, / nunca te abandonarei
poema.” É o fecho do livro, porque é também a resolução da equação.
Como
Rilke escreveu ao seu “jovem poeta” em 1904, “toda a exaltação é boa, desde o
momento que não seja simples perturbação ou embriaguez, mas alegria clara e
transparente.” Com este “epílogo”, a escrita afigura-se como exaltação para
João Miranda. Uma entrega que lhe rende este segundo livro, com um título a
resvalar na arte da matemática, aberto ao infinito que procura o sentido para “as
reticências de mim” (como é dito numa tentativa de definição do “eu”), por onde
passa o amor, o outro, a vida, as dúvidas… tudo graças à exposição que a
palavra e a poesia alimentam neste Não há
duas equações iguais.
Duas
equações estão, pois, resolvidas (este livro e o anterior, As palavras varrem-se do meu pensamento tão depressa como eu as ia
dizer, de 2007). Agora, porque não há duas sem três, venha a próxima!
[Na apresentação do livro, na tarde de hoje, no Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal]
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