sábado, 22 de setembro de 2012

João Miranda: "Não há duas equações iguais"


No “Prólogo” a este Não há duas equações iguais (Lisboa: Chiado Editora, 2012), de João Miranda, a primeira quadra lança o leitor perante um enigma quando diz: “Larguei de vez a poesia, / deixei de andar sempre / acompanhado por um caderno / de versos que me faz acreditar.” Paradoxal nos parece esta declaração de abandono da poesia para abrir um livro que é de poesia!...
Continuando, a segunda estrofe justifica a decisão do poeta: “Já não vale o esforço, / apenas me faz sofrer / e acreditar que tudo / irá mudar é apenas / uma ilusão.” A dor e o sofrimento causados pelo momento da escrita são o parto do próprio poema. Os versos alinham-se porque o poeta tem algo a exprimir, são apenas o seu olhar e sentir, não são uma pedra para mudar o mundo, tão-só um pretexto para o poeta se conhecer.
Significativamente, o primeiro grupo de poemas alinha-se pelo título “o mundo”, onde mais é dito sobre o “eu” do que a propósito do que cerca este “eu”. Veja-se, por exemplo, o poema dedicado a Setúbal, que se inicia de forma contundente: “Confesso-te minha amada Setúbal, / és um desgosto no meu olhar”. Depois, há justificações para esta desolação e um final que apazigua: “mas és a cidade que me viu crescer / e pouco a pouco me fez feliz.”
Poemas de contrastes são estes, que correspondem a momentos, aos tais excertos do tempo que se registam no caderno, numa tentativa de fazer justiça ao princípio que o próprio poeta estabelece, em jeito de máxima: “Vive e escreve a tua vida, / enquanto sabes escrever, / enquanto podes viver.” É que, como o próprio título anuncia, “não há duas equações iguais”, verdade que surge a fechar um poema em que o poeta se confronta consigo mesmo no desenho de um auditório em que se fala do universo, ficando ao poeta a amargura de não se explicar “o universo / de que somos feitos”.
Parodiando um título de Rilke, este livro de João Miranda bem poderia responder ao título de “cartas de um jovem poeta”, cujos poemas são reflexos e registos de momentos, de procuras, de lutas contra o vazio e a solidão, de homenagem aos gestos de alguns seres que na sua vida se têm cruzado.
O agrupamento destes poemas por títulos tão diversos quanto “mundo”, “vazios”, “momentos”, “a força”, “amores de verão”, “ecos da distância”, “a ideia de ti”, “combustão”, “pessoas” e “definições de mim” dá ao leitor a ideia dessa fragmentação, desse todo multifacetado, sempre desigual e constante na sua evolução, desse tempo que ultrapassa a noção de cronologia mas que se relaciona com a intensidade dos instantes, sejam eles de euforia ou de vazio.
Rapidamente o leitor conclui que aquelas verdades de rejeição enunciadas no “Prólogo” podiam ser discutíveis, sobretudo à luz de uma lógica que Pessoa tão bem apresentou a propósito do fingidor que o poeta é e a propósito da dor do poeta. Esse eco pessoano é, de resto, adoptado por João Miranda no final do livro, sugestivamente num texto intitulado “Arte poética”, onde são cantados os prazeres da vida e é reelaborado o papel da palavra escrita: “Enquanto a veia da poesia correr em mim, / não posso negar tal alegria.”
Muito forte é, aliás, este último grupo, convenientemente intitulado “Epílogo”, espaço único para uma “Autobiografia poética”, texto que glorifica o nível de conhecimento e de saber que ao poeta é dado, que compromete o ser que se revelou com a própria poesia, que apazigua quem fala com quem é imaginado ouvir – um “tu” sempre presente, sempre a fazer o mesmo caminho de versos. Esta “autobiografia poética” põe em igualdade o efeito de todas as experiências, venham elas do manejo da palavra ou do saber sobre o mundo. Vale a pena determo-nos, por isso, na leitura deste poema que, propositadamente, ficou para o fim, qual chave de ouro que permite o acesso ao essencial do “eu”: “É bonita a estrada / que nos segue, não é? // Sabes, sou estudante do engenho, / sou músico e, / acima de tudo, poeta. // (…)”
Finalmente, o derradeiro texto vale pela sua afirmação: “Vivo de escrever, / escrever é  o meu ar, / nunca te abandonarei poema.” É o fecho do livro, porque é também a resolução da equação.
Como Rilke escreveu ao seu “jovem poeta” em 1904, “toda a exaltação é boa, desde o momento que não seja simples perturbação ou embriaguez, mas alegria clara e transparente.” Com este “epílogo”, a escrita afigura-se como exaltação para João Miranda. Uma entrega que lhe rende este segundo livro, com um título a resvalar na arte da matemática, aberto ao infinito que procura o sentido para “as reticências de mim” (como é dito numa tentativa de definição do “eu”), por onde passa o amor, o outro, a vida, as dúvidas… tudo graças à exposição que a palavra e a poesia alimentam neste Não há duas equações iguais.
Duas equações estão, pois, resolvidas (este livro e o anterior, As palavras varrem-se do meu pensamento tão depressa como eu as ia dizer, de 2007). Agora, porque não há duas sem três, venha a próxima!

[Na apresentação do livro, na tarde de hoje, no Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal]

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