Manuel Maria Carrilho. "Será o deslumbramento uma política?". Diário de Notícias: 30.Set.2010
quinta-feira, 30 de setembro de 2010
quarta-feira, 29 de setembro de 2010
Que presente é este? (II)
O país que, em diversas vezes, ouviu o comentário de que se estava a sair do momento de crise, de que as coisas não seriam tão graves quanto isso e de que se estava bem quando uma decimazinha nos alegrava o ego, acaba de assistir a um plano de cortes radicais e de durezas várias. Afinal, tem-se andado a falar de quê? Estaremos num país de diferentes velocidades? Ou tudo isto resulta de um discurso consoante a oportunidade... que, esta sim, vai sendo cada vez menor? Não teremos o direito de sentir que a verdade não foi total ou, pelo menos, que as previsões e as afirmações deixaram muito a desejar quanto ao rigor?
terça-feira, 28 de setembro de 2010
Que presente é este?
Perguntei-lhe pela neta, nascida há meses, e lá me disse que ia estando bem, que se ia afeiçoando ao mundo, que os pais estavam muito contentes, mas que não iriam para o segundo filho e, assim, não havia esperanças de ter também um neto. “A vida está difícil, cada vez mais difícil…Sabe que eu e o meu marido já nem vemos televisão quando é tempo de notícias?”
Fartaram-se de ver e de ouvir notícias, vozes, opiniões alarmistas, duras, rígidas, pairando pouca verdade. “Nada sabemos ao certo, parece que ninguém quer dizer o que realmente interessa, só se desmentem e nada corresponde ao que sentimos todos os dias”, explicou. “Não vê o que se passou com os medicamentos? Numa semana, iam descer não sei quanto e, na semana seguinte, já se dizia que as comparticipações iam acabar e iam ficar mais caros a quem deles precisar… Mal de quem precisa, não é? Dantes, as notícias eram um chorrilho de calamidades, de desastres, de azares… agora, é só economia, dinheiro, intriga e nós a termos cada vez menos… Deixámos mesmo de ver notícias… Não acreditamos…”
Há quem meta a cabeça na areia, há quem se revolte e manifeste essa revolta de forma visível, há quem se revolte e se remeta ao silêncio. Não será ainda desespero o sinal máximo, não. Mas é a desesperança que nos está a invadir, qual onda de areia que tudo vai secando e impedindo que o olhar sorria para o futuro.
sexta-feira, 24 de setembro de 2010
Synapsis, em Setúbal
Synapsis é o nome de um novo grupo de “intervenção cultural e cívica” que vai apresentar-se publicamente na noite de hoje, no Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal.
Música, poesia e pintura serão as três artes que vão integrar este programa, animado por Nuno David, Salvador Peres, João Completo, Alexandre Murtinheira, Diná Lopes Peres e Carlos Medeiros. Alguns dos temas musicais acompanharão poemas de David Mourão-Ferreira (“A Secreta Viagem”) e de Sebastião da Gama (“Quem me quiser amar” e “Soneto do tempo perdido”).
Tolstoi: Guerra e Paz em edição comemorativa
Com o Público de ontem foi posto em distribuição o primeiro volume de Guerra e Paz, de Lev Tolstoi, com ilustrações de Júlio Pomar e prefácio de António Lobo Antunes, em tradução a partir do russo devida a Nina Guerra e a Filipe Guerra.
A obra, que vai ter uma dezena de volumes e assinala o centenário da morte do escritor russo, reproduz as ilustrações que Júlio Pomar fez para uma outra edição, em 1956-1958, com a particularidade de reproduzir também os estudos que as originaram. Em nota introdutória, o ilustrador considera que este romance “é declaradamente uma obra em aberto, (…) com a desmesurada ambição de pensar o mundo, característica maior dos grandes frescos de toda a literatura.”
António Lobo Antunes, que contextualiza o aparecimento e a recepção de Guerra e Paz (publicado em folhetins entre 1865 e 1869), conclui o prefácio com afirmações poderosas, considerando-o um “livro pantagruélico, devorador, desigual, (…) uma assombrosa manifestação da grandeza do espírito humano, produto de um canibal de génio que tudo engole e transforma segundo as suas leis pessoais”. Muito mais do que um “bom” romance, Lobo Antunes defende que o leitor está perante “a viagem indispensável ao interior de nós mesmos, pela mão de uma criatura tirânica e implacável, o espelho desmesurado e frequentemente arbitrário da nossa condição”.
Uma excelente oportunidade para o leitor acompanhar as campanhas napoleónicas e um retrato da Rússia oitocentista, pois!
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quinta-feira, 23 de setembro de 2010
Do professor de Português
"Do professor de Português espera-se que contribua para o desenvolvimento de uma sensibilidade perceptiva e de um potencial criador que contribuam para a compreensão do comportamento humano e para o desenvolvimento de formas de relacionamento plurais com a criação cultural."
Conceição Coelho, na secção "Auto-retrato de professora", no suplemento "JL - Educação" ontem publicado (com o JL)
Preocupações de escola segundo Manuel Esperança (e segundo muitos outros)
O suplemento "JL - Educação", que integrou a edição do JL de ontem, contém uma entrevista feita por Maria João Martins a Manuel Esperança, director da Escola Secundária José Gomes Ferreira e presidente recém-eleito do Conselho Nacional de Escolas. Quando a jornalista lhe perguntou quais as preocupações mais imediatas sentidas na escola, Manuel Esperança traçou um retrato a que não se pode ficar indiferente... porque é verdadeiro. A entrevista vale ser lida na totalidade, mas transcrevo essa resposta que contém o lote das preocupações:
"Incomoda-me pensar que esta sociedade ainda não parou de descer e que devíamos todos pensar em assegurar qualidade e rigor. Não tenhamos dúvidas de que esta geração de jovens nos vai acusar de termos sido demasiado permissivos. Digo sempre aos professores aqui da escola que não podemos entrar na onda de facilitar por facilitar. Não trabalho para a estatística. Não se pode ceder a essa tentação nem pensar que, neste caso, o tempo é bom conselheiro. Os problemas da escola têm de ser resolvidos na hora. Por outro lado, estou preocupado com o ambiente que as escolas vão ter este ano com a segunda fase da avaliação de professores. Creio que vai ser outra vez um ano complicado, não gostava de reviver o ambiente que se viveu aqui na escola há dois anos. Na verdade, há muita gente que se importa realmente de ser avaliada e que fica muito tensa com esta situação. O que fatalmente se reflecte nas condições de trabalho. Por outro lado, a questão dos agrupamentos de escolas e do reordenamento da rede também não é simples. Eu não estou contra a figura dos agrupamentos de escolas, mas em alguns é uma completa loucura. Qualquer decisão na matéria deveria implicar uma participação das famílias, das autarquias e, de uma forma transparente, sem interesses partidários ao barulho."
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O poema e o poeta segundo Gullar
Ferreira Gullar recebeu, aos 80 anos, o Prémio Camões, que lhe foi entregue há dias no Rio de Janeiro, sem que os Presidentes do Brasil ou de Portugal estivessem presentes. Na edição do JL de ontem, Ferreira Gullar merece destaque através de uma entrevista conduzida por Maria Leonor Nunes e de um artigo assinado por Arnaldo Saraiva. É da entrevista que retiro excertos em que o escritor fala sobre o poema e sobre o poeta.
1."O poema não é uma coisa lógica, que nasça da minha vontade. É uma descoberta, um momento... A minha poesia nasce do espanto. E dura o tempo de um espanto."
2."O poeta é incoerente. Diz a verdade que se revela no poema, não importa que vá contradizer o que disse noutro. Por isso, pode revelar coisas que não sabia um minuto antes e muito do que a filosofia não pode explicar. Às vezes, até me pergunto se poesia é Literatura."
3.O poema é na verdade uma invenção da realidade. Acho que a Literatura não revela, inventa a realidade. Porque o que não está dito não existe."
4."O poema é uma alquimia em que a dor vira prazer estético."
5."Os poetas percebem o mundo a partir da linguagem que usam."
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quarta-feira, 22 de setembro de 2010
Sobre o momento
"Aquilo de que o país precisa é de estadistas, não de ilusionistas."
Bagão Félix, esta manhã, na Antena 1.
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sábado, 18 de setembro de 2010
Verdades de Manuel Maria Carrilho
Político – “(…) A sociedade é muito melhor que a política – como se vê em Portugal. E o bom político não é aquele que é muito determinado, é o que faz composição com a sociedade. Como Obama, aliás. (…) Falo de uma cultura de diálogo que fomente a negociação política, não o afrontamento. (…) Temos de estimular a negociação, a convivialidade democrática. (…)”
Qualificação – “(…) [A qualificação] é o défice fundamental do país, exige um esforço colossal e contínuo, que não tem acontecido. Qualificação numa perspectiva estruturada: qualificação do território, das instituições e das pessoas. (…) A qualificação de que precisamos é hiperexigente. Neste domínio da qualificação, os números são totalmente insignificantes. O que conta é o conteúdo. (…)”
Tecnologia – “(…) Vivemos um grande deslumbramento tecnológico que temos de comparar com o deslumbramento financeiro – que teve, e tem, custos tremendos para a humanidade. A responsabilidade de um político é resistir ao deslumbramento tecnológico. Até porque atrás dele vêm milhões de interesses privados. A introdução de computadores pessoais aos seis anos carece de uma justificação pedagógica. (…) Os melhores peritos da UNESCO recomendam que as novas tecnologias sejam complementares do ensino, não que o substituam, e que, por isso, sejam introduzidas, caso a caso, apenas e só pela mão dos professores. (…)”
Manuel Maria Carrilho, em entrevista a Cristina Figueiredo. Expresso: 18.Setembro.2010.
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Sobre o "estado social"
"(...) O grande problema, que quase ninguém entre nós aborda, é este: o Estado social está ameaçado em toda a Europa e não só em Portugal, mas não por uma mirífica direita. Está ameaçado, porque, concedendo direitos que hoje consideramos inalienáveis, tornou o factor trabalho caro, ao mesmo tempo que a globalização permitiu que países sem regras de humanidade social produzam bens muito baratos, beneficiando de deslocalizações e/ou através de mão de obra miseravelmente retribuída. O velho Ocidente endivida-se às mãos de chineses, indianos, brasileiros, angolanos ou russos. Os défices sucessivos vão obrigar-nos a refrear inúmeros direitos e subsídios que agora distribuímos. E este é um problema de hoje que é preciso resolver. (...)"
Henrique Monteiro. "O Estado social e a demagogia". Expresso: 18.Setembro.2010.
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quinta-feira, 16 de setembro de 2010
Discurso de abertura do ano lectivo - II
Já o ouvi ontem à tarde. Não, não vou comentar.
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Discurso de abertura do ano lectivo
Na aula, falou-se sobre o discurso de abertura do ano lectivo de Barack Obama, de Setembro de 2009. E saltou a pertinência das análises de um 9º ano: “gostei da ideia das segundas oportunidades”; “fala dos nossos deveres de estudantes perante a sociedade e perante os outros”; “compromete-nos”; "foi interessante ter falado da sua experiência como aluno".
Antes de a aula acabar, um perguntou: “porque é que não temos cá um político que nos fale assim?”
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segunda-feira, 13 de setembro de 2010
Sobre as maravilhas naturais
Vista do Portinho da Arrábida (em 2004)
As “Sete Maravilhas Naturais de Portugal” foram conhecidas na noite de ontem: Lagoa das Sete Cidades (Zonas aquáticas não marinhas), Portinho da Arrábida (Praias e falésias), Floresta Laurissilva da Madeira (Florestas e matas), Paisagem Vulcânica da Ilha do Pico (Grandes relevos), grutas de Mira de Aire (Grutas e cavernas), ria Formosa (Zonas marinhas) e o Parque Nacional da Peneda-Gerês (Zonas protegidas).
Aqui pela nossa zona ficou o Portinho da Arrábida, praia absolutamente bela, que não valerá a pena descrever, sob pena de tudo o que se diga saber a pouco. Obviamente, fico contente, porque acredito na beleza do Portinho da Arrábida desde que o visitei pela primeira vez, há cerca de quatro décadas.
Pelo caminho ficou a Arrábida, que era também uma das candidatas, o que não admira sendo a Arrábida um conjunto de paradoxos onde se misturam a beleza natural – fascinante, reconheça-se – e o aproveitamento industrial – triste, mas bem mais antigo do que a criação do Parque Natural, reconheça-se também.
A propósito da Arrábida, quando, na semana passada, o Expresso publicou uma reportagem fotográfica intitulada “Arrábida esventrada”, repleta de cenários dantescos e destruidores da paisagem da serra, achei-a tão demagógica quanto seria apenas artística uma reportagem de sinal contrário, apresentando apenas as belezas arrabidinas.
Não sei se é possível haver conciliação da Natureza com a utilização que o homem dela faz. Acredito que sim. E, no caso da Arrábida, essa será uma opção a seguir, a ser pe(n)sada. A Arrábida não foi uma das “Sete Maravilhas” em termos de concurso, é verdade; mas bem sabemos que a Arrábida é uma das maravilhas, com ou sem concurso. Não foi por acaso que Teixeira de Pascoais disse a Sebastião da Gama, num encontro havido em 1951, algo como (cito de cor): “A Arrábida é o altar do mundo; eu pu-lo no Marão porque sou daqui.” E já nessa altura havia indústria à conta da serra… noutras doses, é certo, mas havia.
Queiramos ou não, as maravilhas naturais não são o resultado de um concurso, mas a consequência da beleza que sentimos num determinado espaço, num dado momento, algo próximo do paraíso, afinal.
Portinho da Arrábida, visto por Hélène Beauvoir (in Panorama, 1941)
domingo, 5 de setembro de 2010
Em louvor dos pequenos passos
"Acho que as grandes transformações se dão por pequenos passos. Por outro lado, como sou muito pessimista em relação a estes grandes fenómenos de hoje - a globalização da economia, do domínio tecnológico, etc., e das transformações ecológicas que nos põem cheios de medo diante do futuro -, é nesses pequenos passos que ponho a minha esperança. (...) [Aquelas] são transformações provocadas pelo excesso de poder. Excesso de poder tecnológico, de poder financeiro, de poder político, de poder de controlo sobre a vida das pessoas. Excesso também de domínio ideológico - ou melhor, não é ideológico porque não há ideologia. É alienação. Portanto, os grupos que poderiam evitar as alterações climáticas são aqueles que não querem perder o domínio económico. Não vão alterar tudo o que leva aos detritos poluentes, aos produtos tóxicos. Não vão evitar o recurso à invasão da vida privada das pessoas para se garantir a segurança. Não vão fazer isso e não é lógico que o façam. Só o farão se houver uma catástrofe."
José Mattoso, em entrevista a Carlos Vaz Marques. Ler. Lisboa: Fundação Círculo de Leitores, nº 94, Setembro.2010.
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sábado, 4 de setembro de 2010
Seis revisitações da escola (e outras tantas dicas)
A revista “Única”, que integra o Expresso, teve como tema da edição de hoje “Voltar”, entrando também na área da educação, em que seis personalidades portuguesas foram convidadas a um regresso à escola onde estudaram para falarem desse tempo, o que as levou a, inevitavelmente, considerações sobre o presente. Aqui deixo alguns excertos, que tocam em algumas das questões que estão (ou deviam estar) em discussão no presente.
Rita Ferro, escritora, estudante no Colégio das Escravas do Sagrado Coração de Jesus: “Considero os programas actuais autistas relativamente ao perfil do aluno do terceiro milénio, mais sensorial e imediatista, mais áudio-visual do que leitor, menos estimulado em casa. Exauridos e falidos, os pais só querem que os filhos passem de ano. (…) Tolerância zero à indisciplina, com penalizações inflexíveis a incidir sobre as notas, as propinas, a própria frequência. Tolerância zero à interferência histérica e abusiva dos pais na sobreprotecção dos meninos. E maior crivo na contratação dos professores. Um povo deseducado e culturalmente desfavorecido sem segurança para interferir na política, é uma crucifixão cartológica.”
Medina Carreira, advogado e ex-ministro, estudante nos Pupilos do Exército: “Não há melhor avaliação do que quando um estudante está pressionado como se estivesse na vida. Negar estas exigências da vida é de gente tola.”
Nuno Crato, professor universitário, estudante no Liceu Pedro Nunes: “Havia os maus e os bons [professores]. Mas em todos transparecia respeito pelo conhecimento e pela cultura. Talvez o que mais me tenha marcado foi esse espírito geral de gosto pelo conhecimento e gosto pela racionalidade. (…) É necessário instituir seriedade na avaliação dos estudantes (…) e é preciso maior seriedade na formação científica dos futuros professores.”
António Câmara, professor universitário, estudante no Liceu Pedro Nunes: “Tanto no secundário como na universidade, ainda não se percebeu a importância da criatividade. O ensino em Portugal é convergente e raramente divergente. (…) A internet mudou e baralhou tudo. E começa a ter consequências no ensino. A linguagem vídeo, por exemplo, é absolutamente crucial e ainda não chegou devidamente ao sistema de ensino. Os professores precisam de adaptar-se. Tem de haver disciplinas e cadeiras muito mais abertas. A nossa taxa de insucesso escolar é em primeiro lugar o insucesso do sistema de ensino.”
Eduardo Marçal Grilo, administrador e ex-ministro, estudante no Liceu Nun’Álvares: “As escolas precisam de lideranças fortes. Não impondo modelos, mas no sentido organizativo e de objectivos de cada escola. Faz sentido que haja um condutor da escola. (…) Importante é saber quem são os alunos, de cada escola, de cada região. Só desta forma se combate o insucesso escolar: aluno a aluno. (…) Têm de ser definidas metas, patamares de conhecimento. Esses patamares têm de integrar a escola e a família, que hoje em dia se demite da educação dos filhos.”
Irene Fulsner Pimentel, historiadora, estudante no Charles LePierre: “O problema não está na reprovação, está no insucesso escolar. E a discussão deve centrar-se aqui. (…) Eu sou de esquerda, toda a gente sabe. Mas a esquerda teve algumas culpas no nosso sistema educativo. Houve uma altura em que se passou a achar que a educação devia ser uma coisa lúdica. Sou muito a favor da avaliação. Dos professores e dos alunos. A escolha criteriosa dos professores seria um bom começo.”
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sexta-feira, 3 de setembro de 2010
Manuel Cardoso, "Um tiro na bruma"
A entrada do leitor em Um tiro na bruma, de Manuel Cardoso (Estoril: Principia Editora, 2007), é o enveredar por um romance histórico cuja acção se passa no final da segunda década do século XX, pelo convívio com a sociedade trasmontana de Macedo de Cavaleiros desse tempo e também pelo assistir ao lento e progressivo desmoronamento de um regime, percurso cheio de contradições e de paradoxos.
As “notas explicativas” com que o autor abre o livro servem ainda para transportar o leitor a esse tempo, seja fornecendo-lhe elementos de contextualização histórica (como o regresso dos combatentes da Grande Guerra, os conflitos entre monárquicos e republicanos, a pneumónica, a Monarquia do Norte, momentos e feitos que vão ter reflexo na narrativa), seja para confidenciar sobre os motivos que levaram a esta escrita, seja para esclarecer a linha de fronteira entre a história de uma família (a do autor) e de uma região e a ficção com que são compostas as personagens e as acções que dão corpo a esta trama.
Com efeito, a personagem central, Amadeu, médico, é construída sobre um antepassado do autor, protagonista enriquecido com o recurso a histórias, fotografias, notícias, relatos, documentos. E, para que dúvidas não restem sobre o fundo de verdade que foi pretexto desta história, o leitor é contemplado com um resumo do esquema genealógico, que abrange o tempo decorrido entre a segunda década do século XIX e o início do século XXI, fechando com a geração anterior à do autor.
A história de Um tiro na bruma inicia-se numa tarde chuvosa, fria e ventosa, quando Micas (mulher de Amadeu) e Luísa vão prestar apoio e solidariedade a Ana Pita. Nesse momento, “ouviu-se um estampido. Fora um tiro, decerto. Meio abafado. Mas fora um tiro.” O disparo acontece na primeira página do relato e, poucos parágrafos andados, fica o leitor a saber que Álvaro Ruivo, padrasto de Luísa, fora assassinado. O primeiro comentário sobre a vítima é feito por Micas, ao não lhe ser dada a certeza sobre o óbito de Ruivo: “O estafermo! Não se perdia nada. Que Deus me perdoe mas não se perdia nada! Deus às vezes podia mesmo mandar dar por aqui uma vista de olhos com olhos de ver nas almas que por cá andam!...”
Percebe-se que a história não vai girar em torno da descoberta do assassino. E, a partir daí, o leitor passa a acompanhar o quotidiano de Amadeu, comungando das suas reflexões e das suas dúvidas, assistindo ao desfiar da peregrinação pelas aldeias no atendimento aos doentes e no contributo para as estatísticas da saúde.
De vez em quando, uma ou outra lembrança entra na narrativa para recordar que o mistério sobre quem disparara sobre Álvaro Ruivo ainda se mantém. E algumas pistas vão contribuindo para sugerir um desfecho, que não chega nunca: porque não há sobre quem caiam suspeitas? poderá Amadeu ser incriminado? E, quando parece que este mistério do assassínio fica resolvido, mais por suspeitas do que por confissão ou por descoberta, o leitor está a enveredar por mais uma falsa interpretação que é dada para sossego daquela sociedade. É que a autoria do disparo só é conhecida no momento em que a personagem responsável por esse acto se quer fazer valer desse testemunho para mostrar a sua coragem e a sua decisão e capacidade de ir em frente, usando palavras que justificam o comentário inicial da Micas: “Já matei um! Sim, já matei um com um tiro só! O estupor! Tinha-se posto à força na minha mulher!”
Vai o leitor avançando nas peripécias que entretecem a vida de Amadeu e a escrita vai tomando marcas que em muito convocam Júlio Dinis (a figura do João Semana, a aproximação social, a ruralidade) ou Camilo (a rapidez e a certeza na acção) ou mesmo Eça (no pendor descritivo e na força visual, na minúcia com que nos são apresentadas personagens, paisagens, espaços, objectos e atitudes), sendo todavia evidente uma leitura de desencanto e de despedimento de um tempo, várias vezes acentuada: a sociedade apresentada como “um mundo onde tudo se desfazia e onde a autoridade parecia abandonar o terreiro a passos acelerados”; um país “a ir ao fundo! O povo quer nadar e não consegue! Quer comer e não tem o quê!”; uma personagem, Amadeu, que se sentia ir abaixo pela “situação política, o caos do país, a voragem de uma guerra civil que não tardaria a abocanhar todos os esforços para fazer de Portugal um país com nível, de Trás-os-Montes um canto com progresso”.
Um tiro na bruma é romance que bem caracteriza uma época de indefinições e de indecisões, que bem povoa a história local da região de Macedo de Cavaleiros enquanto espelho do que foi o sentir e o agir de um país na segunda década do século XX, e que, começando com um tiro anónimo, conclui com tiros bem determinados (a morte de Sidónio Pais, os bombardeamentos de canhões em Mirandela) e com a ameaça de um outro tiro certeiro. É uma história equilibrada, que procura raízes e passa por marcas de identidade nada distantes do que somos.
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