A entrada do leitor em Um tiro na bruma, de Manuel Cardoso (Estoril: Principia Editora, 2007), é o enveredar por um romance histórico cuja acção se passa no final da segunda década do século XX, pelo convívio com a sociedade trasmontana de Macedo de Cavaleiros desse tempo e também pelo assistir ao lento e progressivo desmoronamento de um regime, percurso cheio de contradições e de paradoxos.
As “notas explicativas” com que o autor abre o livro servem ainda para transportar o leitor a esse tempo, seja fornecendo-lhe elementos de contextualização histórica (como o regresso dos combatentes da Grande Guerra, os conflitos entre monárquicos e republicanos, a pneumónica, a Monarquia do Norte, momentos e feitos que vão ter reflexo na narrativa), seja para confidenciar sobre os motivos que levaram a esta escrita, seja para esclarecer a linha de fronteira entre a história de uma família (a do autor) e de uma região e a ficção com que são compostas as personagens e as acções que dão corpo a esta trama.
Com efeito, a personagem central, Amadeu, médico, é construída sobre um antepassado do autor, protagonista enriquecido com o recurso a histórias, fotografias, notícias, relatos, documentos. E, para que dúvidas não restem sobre o fundo de verdade que foi pretexto desta história, o leitor é contemplado com um resumo do esquema genealógico, que abrange o tempo decorrido entre a segunda década do século XIX e o início do século XXI, fechando com a geração anterior à do autor.
A história de Um tiro na bruma inicia-se numa tarde chuvosa, fria e ventosa, quando Micas (mulher de Amadeu) e Luísa vão prestar apoio e solidariedade a Ana Pita. Nesse momento, “ouviu-se um estampido. Fora um tiro, decerto. Meio abafado. Mas fora um tiro.” O disparo acontece na primeira página do relato e, poucos parágrafos andados, fica o leitor a saber que Álvaro Ruivo, padrasto de Luísa, fora assassinado. O primeiro comentário sobre a vítima é feito por Micas, ao não lhe ser dada a certeza sobre o óbito de Ruivo: “O estafermo! Não se perdia nada. Que Deus me perdoe mas não se perdia nada! Deus às vezes podia mesmo mandar dar por aqui uma vista de olhos com olhos de ver nas almas que por cá andam!...”
Percebe-se que a história não vai girar em torno da descoberta do assassino. E, a partir daí, o leitor passa a acompanhar o quotidiano de Amadeu, comungando das suas reflexões e das suas dúvidas, assistindo ao desfiar da peregrinação pelas aldeias no atendimento aos doentes e no contributo para as estatísticas da saúde.
De vez em quando, uma ou outra lembrança entra na narrativa para recordar que o mistério sobre quem disparara sobre Álvaro Ruivo ainda se mantém. E algumas pistas vão contribuindo para sugerir um desfecho, que não chega nunca: porque não há sobre quem caiam suspeitas? poderá Amadeu ser incriminado? E, quando parece que este mistério do assassínio fica resolvido, mais por suspeitas do que por confissão ou por descoberta, o leitor está a enveredar por mais uma falsa interpretação que é dada para sossego daquela sociedade. É que a autoria do disparo só é conhecida no momento em que a personagem responsável por esse acto se quer fazer valer desse testemunho para mostrar a sua coragem e a sua decisão e capacidade de ir em frente, usando palavras que justificam o comentário inicial da Micas: “Já matei um! Sim, já matei um com um tiro só! O estupor! Tinha-se posto à força na minha mulher!”
Vai o leitor avançando nas peripécias que entretecem a vida de Amadeu e a escrita vai tomando marcas que em muito convocam Júlio Dinis (a figura do João Semana, a aproximação social, a ruralidade) ou Camilo (a rapidez e a certeza na acção) ou mesmo Eça (no pendor descritivo e na força visual, na minúcia com que nos são apresentadas personagens, paisagens, espaços, objectos e atitudes), sendo todavia evidente uma leitura de desencanto e de despedimento de um tempo, várias vezes acentuada: a sociedade apresentada como “um mundo onde tudo se desfazia e onde a autoridade parecia abandonar o terreiro a passos acelerados”; um país “a ir ao fundo! O povo quer nadar e não consegue! Quer comer e não tem o quê!”; uma personagem, Amadeu, que se sentia ir abaixo pela “situação política, o caos do país, a voragem de uma guerra civil que não tardaria a abocanhar todos os esforços para fazer de Portugal um país com nível, de Trás-os-Montes um canto com progresso”.
Um tiro na bruma é romance que bem caracteriza uma época de indefinições e de indecisões, que bem povoa a história local da região de Macedo de Cavaleiros enquanto espelho do que foi o sentir e o agir de um país na segunda década do século XX, e que, começando com um tiro anónimo, conclui com tiros bem determinados (a morte de Sidónio Pais, os bombardeamentos de canhões em Mirandela) e com a ameaça de um outro tiro certeiro. É uma história equilibrada, que procura raízes e passa por marcas de identidade nada distantes do que somos.
3 comentários:
Meu caro João RR: foi enorme a surpresa de dar com este post neste blog! Antes de mais, um muito obrigado. Mas, cumprida esta, no mínimo, obrigação, fica-me uma curiosidade enorme acerca do RR... por acaso é Reis Ribeiro? Um abraço, manuel
Que personagens históricas podemos encontrar neste livro??
As "personagens históricas" estão mencionadas no postal... sem prejuízo de, com a sua leitura, poder encontrar outras.
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