Na série de entrevistas que visam pensar o futuro, o Público divulgou na sua edição de hoje as palavras de Eduardo Lourenço, trazidas pela conversa com Teresa de Sousa. Reflexão pertinente, que passa pelo sentido da política, pela atracção entre a política e os “media”, pela ideia de Europa, pela crise, pela identidade, pelos valores. Aqui reproduzo algumas partes dessa entrevista, que pode ser lida na íntegra na edição online do jornal.
GOVERNAR PORTUGAL – “Tivemos um governo de inspiração socialista - é, em todo o caso, o que pensa a opinião pública - que governou em maioria até às últimas eleições e que teve uma oposição que não foi capaz de ser um contrapeso suficiente e isso foi mau para o funcionamento do sistema. Mas a verdade é que a nossa história de quase um século, desde a I República e, mesmo, no Constitucionalismo, sempre foi muito difícil. Portugal não é um país fácil de governar... (…) Não podemos estar outra vez em jogos unicamente políticos em função dessa hipertrofia dos partidos, porque sabemos que, no passado, isso nos custou muito caro.”
DEMOCRACIA – “Mas é preciso ter também em conta que a democracia nunca foi uma solução fácil, que caia do céu. A democracia é o mais difícil dos sistemas. Supõe um grau de consciencialização política alto e um consenso em torno do seu próprio jogo. Se não for isso, as pessoas pensam noutras soluções. Foi sempre assim.”
PORTUGUESES E EUROPA – “Os portugueses estão passivamente contentes com os benefícios da Europa. Mas foram sempre assim: é como se isso nos caísse do céu da forma mais natural do mundo. E não há consciência europeia. Há mesmo uma espécie de um discurso de alheamento ou de desinteresse profundo nessa nossa nova maneira de existir. Queremos os benefícios mas não queremos a responsabilidade dessa nossa situação de europeus.”
EUROPA E OS OUTROS – “Cada país europeu tem um tal passado e é tão ele próprio "Europa", cada um diferentemente, que não vê bem o que é que a Europa lhe acrescenta a não ser uma espécie de invólucro abstracto mas que não é vivido enquanto tal. (…) Não há uma paixão europeia, para além de uma minoria. Ainda nos vivemos como província e até - o que sempre me admirou muito - como país periférico. Periférico? Nós, que estivemos no centro do mundo? (…) A Europa funciona para nós assim como uma espécie de guarda-chuva político, que pensa por nós, que age por nós.
EUROPA E FUTURO – “Está sempre mudando mas está parada. Não sabe o que quer nem para onde vai. E essa paralisia suscita reacções de refluxo para aquilo que já se conhece, que é aquilo que nós fomos no passado. Estávamos em nossa casa, mesmo que a casa não fosse brilhante, mas pelo menos mandávamos na nossa casa. Na Europa, recebemos uma espécie de ordens que não são, muitas vezes, explicadas, que se metem em tudo, mas que nos privam, a nós, da nossa acção e de exercermos a nossa qualidade de cidadãos, sempre à espera que as coisas nos apareçam feitas.”
SER EUROPEU – “Por um lado, vejo que a classe jovem é muito mais europeia na prática - viaja, vai para aqui e para ali, não tem fronteiras. Está na Europa, passou a ter as mesmas regalias que tinha a grande burguesia europeia antes dos grandes embates da I e da II Guerras, quando se andava sem passaporte. Somos europeus no sentido empírico e há uma vida europeia, sobretudo para as novas gerações. Respiram as mesmas coisas.”
PORTUGAL – “Não há uma representação simbólica de Portugal à altura da nossa própria História. Quer na ordem interna, quer na ordem externa.”
CRISE – “Estamos confrontados com uma crise provavelmente inédita na História moderna, em que o coração da nossa civilização vive como um vulcão que não domina, que está em permanente erupção. (…) Nesta crise no coração do sistema, cuja essência simbólica era a necessidade de se caminhar para menos Estado, de repente o último salvador é o Estado. E ainda com esta coisa paradoxal: o Estado e os cidadãos desse Estado terem de vir em auxílio dos ricos. Os pobres virem salvar os ricos, nunca se viu na história ocidental. (…) Esse sistema só não capotou de maneira mais radical do que em 29 porque foi salvo, não só pelos mais pobres, mas pelos novos países que emergiram e que puderam garantir que o sistema continuasse a funcionar, que nem sequer fizesse o seu mea culpa, e que mesmo os sujeitos que estão na origem desse gangsterismo histórico-político continuem, na sua impunidade, a funcionar mais ou menos na mesma.
MEDIATIZAÇÃO E SOCIEDADE – “Na televisão, os programas existem para justificar os minutos de publicidade. Isto é a perversão total. O sistema inteiro vive em função dessa mediatização e dessa publicidade. Tudo lhe é subordinado. A política transformou-se numa espécie de máquina lúdica sem outra finalidade que não seja essa espécie de jogo de brincadeira hiper-séria. Veja que já não é no Parlamento que se faz a política. É na televisão. E não são pessoas legitimadas para ter esse tipo de discurso de efeitos políticos. É gente que tem um privilégio de que nem sequer se dá conta: têm uma espécie de pelouros e funcionam como os verdadeiros detentores do poder de opinião. Não sei onde é que isso vai levar mas é uma perversão. Quem não tiver expressão mediática não existe.
ALEXANDRE HERCULANO – “O Alexandre Herculano é quem é mas era um desgraçado no Parlamento, não tinha esse talento oratório... Era, aliás, por isso que admirava tanto o seu colega mais velho e brilhante, Almeida Garrett, que era um actor. Ele podia ser conselheiro de reis mas não podia ser um actor. Quantos "Alexandres Herculanos" não existem neste país? O melhor deste país são os "Alexandres Herculanos" que andam por aí. Não estão na política. Hoje nem sequer os querem como conselheiros do rei.”
IMIGRAÇÃO – “A Europa é curiosa. Com todo o desencanto que esta construção está a produzir, a Europa ainda está a funcionar como os Estados Unidos dos pobres deste mundo. Se a África inteira pudesse, vinha para cá. Vêm do Paquistão. Vêm de toda a parte, numa coisa que nunca existiu antes. Nós é que íamos lá. Vêm de muito longe, ficam ali em Calais à espera de passar para a Inglaterra, que é a América europeia. E Portugal é agora um país que também recebe - de toda a parte, da Ucrânia ou do Brasil. É a primeira vez que o Brasil imigra para cá...”
EUROPA E PAÍSES – “A política é uma guerra, é a mais cruel das guerras. E a Europa não é ninguém como actor político no sentido próprio e forte. Qualquer nação grande da Europa é maior que a Europa como actor político. A Alemanha é muito mais importante e a França é igual. A Europa não tem representação. Não tem número de telefone e os americanos são muito realistas e pragmáticos. Para eles, conta o que é eficaz. A Europa lá vai, muito puxada, lá os acompanha nessas aventuras na Ásia. Obrigada de algum modo, como os aliados de Roma eram obrigados a segui-la. Mas a Europa não consegue ser a Grécia dos EUA. É um museu e não pode ser um museu. (…) Estou admirado que a Europa prescinda de uma relação muito especial com a Rússia. Admitimos a perspectiva de que a Turquia entre na UE, e a mim parece-me inevitável que ela entre... Então ela entra e não entra a pátria de Tolstoi e de Dostoievski? A Rússia pertence-nos. A Alemanha podia jogar esse jogo sozinha... (…) No fundo, o único país que seria capaz de fazer outra vez desta Europa um actor a sério é a Inglaterra. Ela teve a visão do globo. Foi o único império moderno que realmente existiu. Para mim, a grande desilusão foi o papel da França. Não consegue dar a volta... A França foi o paradigma de tanta coisa. Foi uma espécie de Europa antes da Europa. Isso desapareceu em 50 anos. Perdeu-se o privilégio da língua que era a língua das elites. Perderam em Waterloo e perderam sobretudo em 1940. Têm elites fantásticas mas não têm nenhuma ambição. Como nós, não sabem o que hão-de fazer. É por isso que uma parte da Europa, se tiver de escolher, escolhe a América. Se houver aqui uma ameaça a sério, escolhe a América.”
GUERRA - “O mundo vive em guerra, sempre viveu, e a que hoje vivemos é uma guerra mais subtil e mais extraordinária, que é a guerra do poder mental, científico, tecnológico. Essa nunca pára, não tem noite nem tem dia. E os americanos pensam nela, nos seus think-tanks, 24 horas por dia.”
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