quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Pensar o coração para homenagear Saramago



Quando Francisco aparece, após longa ausência, ouve de Clara o desabafo marcado pelo afastamento: “Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu fizeram-no de carne, e sangra todo o dia.” O excerto é da peça A segunda vida de Francisco de Assis (1987), de José Saramago, e originou o tema da terceira edição do concurso literário que a Câmara Municipal de Palmela organizou - De que é feito o teu coração? -, associando-se ao centenário saramaguiano e publicando a antologia com o mesmo título, reunindo os textos premiados (três de cada escalão).

No primeiro grupo (6 a 11 anos), as três histórias foram assinadas por Mariana Figueira Brinca (1º), Simão Rosa de Almeida (2º) e Matilde Alves (3º). O texto vencedor relata uma história cuja protagonista passa pela experiência do medo da doença e da paz resultante da recuperação, chegando à descoberta de que o amor começa nos mais próximos; em segundo lugar, surge uma história em que o coração dos outros é visto pelas atitudes, numa tentativa de olhar o outro, compreendendo o que o torna único; a terceira premiada faz passar a personagem por um percurso de simplicidade, pedagógico, para perceber algo tão complexo como saber de que são feitos os sentimentos.

No segundo escalão (12 a 17 anos), as assinaturas são de Tânia Parreira, Salomé Cruz e Marina Mendes. A primeira envereda por uma história de um amor que à partida parece impossível, mas que ajuda a mudar o mundo, cultivando ideias como a necessidade de se perceber a Natureza e acreditando na construção da utopia; a necessidade de o ser humano pensar, a importância do outro e a utopia como o mundo que se constrói são tópicos da narrativa do segundo texto, enquanto a descoberta de que não há seres perfeitos e a repugnância pela ambição desmedida são os ingredientes que dominam o terceiro classificado.

O último grupo (maiores de 18 anos) reúne os trabalhos de Carlos Vinhal Silva, José Carlos Almeida Lopes e João Alberto Roque. O narrador do primeiro texto, “Sou feito do que são feitos os livros que escrevi”, percorre os caminhos para apurar o sentido da existência, dando lugar ao sonho e ao desejo, num corajoso itinerário que busca construir o seu próprio coração (“agora sei do que sou feito; sou feito do que construí; agora sei de que é feito o meu coração: o meu coração é feito daquilo que há em mim”); a narrativa “Coração variegado”, que obteve o segundo lugar, leva a personagem a um passeio em que ressalta o papel da Natureza, num peregrinar pelas memórias de uma vida doce, agora sofrendo a ausência (“Não estás, mas sinto-te. Percebo agora a saudade. Ensinaste-me a entender de que é feito o meu coração!”); o terceiro texto tem título homónimo do tema do concurso, exercitando-se o narrador na procura da substância que forma o coração (partindo de expressões como “coração de manteiga”, “coração de ouro”, “coração de ferro” ou “coração de pedra”, variáveis de formas como os outros nos vêem), pretexto para abordar a pluralidade de sentimentos despertados e para reflectir sobre a complexidade de que o “eu” é feito.

A diversidade a propósito da matéria que faz o coração encontra linhas comuns na descoberta do outro, na faceta do sentimento, no caminho de que a vida se faz, no álbum que fica daquilo que as vidas são. Como, em O ano da morte de Ricardo Reis (1984), escreveu Saramago, “muitas vezes começamos por falar de horizonte porque é o mais curto caminho para chegar ao coração.”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 923, 2022-09-21, p. 10.


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