Ao saber do destino conventual de Beatriz (que poderia ser a mulher do seu filho Pedro), após visita ao convento, Álvaro despede-se, como se tivesse cumprido uma missão - “Adeus, mestre Mendo. Selado e brindado tenho o meu ginete, vou-me por aí fora. Deus vos dê felizes dias cá na terra e eterno repouso na bem-aventurança, e se o destino nos não tornar a unir, até ao dia do Juízo Final!” E conclui o narrador: “Despediram-se. De D. Álvaro ninguém mais soube.” Não podemos ler esta passagem sem nos lembrarmos daquele encontro entre as personagens Telmo e D. João de Portugal que Garrett criou para o seu Frei Luís de Sousa, em que o nobre, depois de se certificar sobre a história da família através do fiel escudeiro, entende estar errado no ódio e, despedindo-se, parte, desaparecendo de cena. No caso do garrettiano D. João de Portugal, como no caso do Álvaro Ataíde, de Henrique Freire, ambas as personagens antecipam o seu fim, através de uma morte psicológica, que acontece depois que o mundo se lhes fecha.
Em A Profecia, o espaço medieval da então vila sadina, em finais do século XV, é sempre caracterizado em comparação com a contemporaneidade de Henrique Freire - daí que haja ocasião para louvar a chegada do comboio ou a iluminação a gaz, que estava para breve. Mas, preocupação máxima, para lá da acção narrativa e do desenvolvimento que era sentido na cidade, Freire foca-se na preservação do património, tal como foi propósito da geração de Herculano e Garrett - há diversos momentos em que o desrespeito pela memória (tomando o exemplo da falta de reconhecimento a Bocage, haja em vista que o monumento ao poeta é posterior, de 1871), a falta de conservação dos bens culturais e o uso do camartelo são criticados, desejando que, no futuro, “a mão destruidora do vândalo desta época não se lembre de fazer do seu recinto uma praça de touros” (como acontecera no Convento de S. João, em Setúbal, duas décadas antes). Continuamos a não poder ler estes comentários sem nos lembrarmos do que Garrett ia dizendo no seu circuito por Santarém nas Viagens na minha terra, sempre condenando o despropósito com que o património edificado era deixado ao abandono...
A concluir, um desejo: “Que inteiro ou destruído, esse templo conserve sempre vestígios do antigo poder deste reino; é uma página de pedra do livro das nossas tradições.” E, para que dúvidas não restassem e incorrendo num apelo de consciência cívica, remata: “Eis os sinceros votos que fazemos em prol do Mosteiro de Jesus da cidade de Setúbal que a piedade ergueu há trezentos e setenta anos: praza a Deus nos não façam ainda um dia lançar um brado de reprovação contra os homens sem coração e sem crenças que tem reduzido a ruínas quase todos os monumentos do país.”
Advertência, é verdade, importante para o apelo à intervenção e defesa do património, uma marca que também preocupou os românticos e que foi determinante para a cultura oitocentista. Esta obra de Henrique Freire, partindo de uma profecia cuja autenticidade é discutível, pretendeu ser uma voz de defesa e de promoção da cultura local, eivada de todas as marcas do tempo em que foi escrita, fazendo coabitar figuras da nobreza e populares, exaltando o carácter testemunhal e a responsabilidade dos cidadãos. Uma história que, ao glorificar esta “página de pedra”, é um belo hino em honra do Convento de Jesus!
*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 918, 2022-09-14, p. 8.
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