Há um texto do ucraniano Andriy Lyubka (n. 1987, em Riga) intitulado “A guerra não é tempo de literatura”, de 7 de Abril, que, se afirma que os poetas ucranianos estão ocupados no apoio social e na defesa da pátria, também confessa: “Nunca na minha vida entendi tão bem poesia como durante a revolução e a guerra. É nestes momentos que ela pode acalmar, ajudar a chorar, e também inspirar à luta, ensinar a cerrar os dentes e a lutar pela vida.”
Podemos cruzar esta afirmação com a justificação que Eugénio Lisboa (n. 1930) apresenta para o livro Poemas em tempo de guerra suja (Guerra & Paz, 2022): “Preferia não ter escrito este livro, sinal de que não tinha havido uma guerra que, de resto, continua a haver. Um tirano (...) promoveu a invasão e a destruição da Ucrânia e, dentro de mim, a indignação que é o sangue destes versos.” Este desabafo confronta-se com uma inevitabilidade - a guerra continua(rá), tal como Lisboa reconhece em nota introdutória: “Nenhum dos grandes livros que se escreveram contra a guerra, ao longo dos séculos, evitou jamais que uma nova guerra se travasse, com o habitual cortejo de ruínas, mortos e mutilados.”
O título diz ao que vem: poemas produzidos na simultaneidade desta guerra que desde Fevereiro de 2022 nos assombra e minimiza, entre 25 de Fevereiro e 26 de Junho. Datados todos eles, assumem-se como registos dos dias, muitos falando sobre a guerra, outros reflectindo sobre a vida (sua longevidade e sentido), acontecimentos do tempo (a morte de Paula Rego, por exemplo), a memória (vivências do passado, recordações de Moçambique), a companhia da Ísis (a gata que motiva alguns belos textos sobre os felinos, “mínimos tigres de salão”).
A guerra suscita a indignação, prevalecendo o tom panfletário, irónico e provocatório, o apelo à tomada de posição - “Mas que merda de poetas, / de liras enferrujadas, / pouco vigor nas canetas / e de iras mal mijadas! // Mas que vergonha de gente, / tão indigna de Camões, / de tesão deficiente / e falta de palavrões!”, versos de 27 de Fevereiro, protestam contra o silêncio dos poetas portugueses perante a catástrofe (e de todos os que não querem comprometer-se), quadras que terminam numa interpelação desafiante: “Acordai a vossa lira, / apodrecida no sono / e instigai-lhe a ira, / que não fique ao abandono!”. O alvo notado nas reflexões poéticas sobre a guerra é Putine, tirano retratado como “Mostrengo”, motivador de perguntas “a alguns amigos russos”, como Turguénev, Tchékov ou Tolstoi, sobre o que diriam desta figura.
Se a indignação contra o absolutismo se funda na sua vontade de matar o inimigo, intensa é a contradição surgida no poema “Matei o meu inimigo”, em que o soldado se amargura, depois de reparar no cadáver que fez: “Empalei-o e abracei-o, / colocando-o no chão. / Com cuidado, observei-o: / era, horror!, o meu irmão!”
Mais para o final, o tom torna-se mais introspectivo, num diálogo com o passado, o sentido da vida, a valorização do que se sentiu, as ausências dos que já passaram, terminando o livro com um soneto-reflexão sobre o tempo preenchido: “Dizem-me que tive uma vida cheia. / Digo-lhes que sim, que, de facto tive. / Se quiserem, foi mesmo uma epopeia. (...) // Mas o que é ter tido uma vida cheia? / As vidas enchem-se como tonéis? / (...) // Uma vida cheia, dizem Vocês? / (...)” As perguntas retóricas pontuam o poema, devolvendo a reflexão para os outros, pretexto para o conhecimento das razões que levaram a que portas se abrissem e se fechassem, afinal a história das nossas circunstâncias...
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 932, 2022-10-04, p. 10.
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