quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Henrique Freire e o romance histórico da fundação do Convento de Jesus (2)



Os onze capítulos do romance A Profecia abrem com epígrafes de Alexandre Herculano (1810-1877), oriundas das histórias que constituem a obra Lendas e Narrativas, com particular destaque para a intitulada “Mestre Gil”, narração que tem Setúbal como espaço predominante.

Estas aberturas com citações de Herculano acabam por conformar também o estilo de Henrique Freire, quer pela leitura (Lendas e Narrativas apareceu em livro em 1851, apesar de os vários textos já terem sido publicados esparsamente na imprensa), quer pela contemporaneidade de ambos. Mas as transcrições de Herculano implicam mais na escrita de Henrique Freire. Com efeito, o jovem setubalense absorvera as marcas essenciais do movimento cultural romântico, em que Herculano pontificava, pela escolha de um tema nacional para a sua ficção, pelo mergulho no passado, pela exaltação de valores patrióticos e nacionais, pela reverência demonstrada por figuras que, pelos valores que defendem e representam, se tornam modelos, seja na religião, na política ou no quotidiano.

Após o sermão do frade anunciador, a sequência dos acontecimentos é previsível - Justa Rodrigues Pereira (c. 1441 - 1514/1524) pedirá o apoio régio para construir um convento sonhado por Boitaca e a primeira pedra será lançada, em festiva cerimónia, por D. João II (1455-1495), o rei que chegou a viver em Setúbal e que, acompanhado do seu cronista Resende (1470-1536), é também personagem desta história. 

Paralelamente, uma história de amor destaca a acção joanina contra a nobreza, invocando episódios de exercício da justiça real sobre os fidalgos (como Pedro de Ataíde ou o duque de Viseu) e figuras do clero (como D. Diogo, bispo de Évora), ao mesmo tempo que uma personagem como Álvaro de Ataíde (que surge no início e no final da obra) serve para relatar a experiência dos que tiveram de exilar-se para fugirem à justiça régia. Ao falarmos destas personagens, não nos podemos desligar do movimento romântico de novo - é que a história entre Pedro e Beatriz se torna numa história de um amor impossível, acabando pela morte dele e pela entrada dela no convento, a sorte dele definida por convicções políticas e a dela por questões familiares. De imediato nos vem à memória uma ou outra personagem de Garrett (1799-1854), sejam elas de Viagens na minha terra (1846) ou de Frei Luís de Sousa (1844), obras em que, da parte dos amantes, há tudo para a construção da felicidade, desejo que é abortado pelas condições exteriores, muito mais fortes no contexto da época - situação que faz parte da tradição literária com histórias como a de Tristão e Isolda (lenda medieval, retomada na música - Wagner - e na literatura), Romeu e Julieta (da peça homónima de Shakespeare), Pedro e Inês (cuja história foi literariamente imortalizada por António Ferreira e por Camões, tendo sido retomada por muitos outros autores, designadamente Bocage), Paulo e Virgínia (do romance homónimo de Bernardin de Saint-Pierre), Simão e Teresa (de Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco) ou, mais recentemente, Maria e Tony (de West Side Story, de Irving Shulman).

Mesmo noutras personagens de Henrique Freire conseguimos ver laivos de criações garrettianas - sirva de exemplo, quase no final do romance, o regresso a Setúbal de Álvaro de Ataíde, que se exilara no estrangeiro para não ser atingido pela justiça de D. João II e, já velho, vem visitar o convento, numa última viagem, acompanhado pelo alfageme Mendo Álvares, setubalense que está presente do início ao fim da obra, sendo testemunha de tudo o que na vila se passou.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 913, 2022-09-07, p. 9

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