Quando se escreve a alguém, o
acto é feito com o objectivo de ser obtida resposta, mas, em primeiro lugar,
surge a intenção de que se seja lido. Andrée Rocha, no seu estudo A Epistolografia em Portugal (1965),
refere que, “no acto de ser escrita, a carta dirige-se, normalmente, a um
leitor vivo e único”, defendendo que ela deve ser lida “sem perder nunca de
vista a repercussão que provocou nesse correspondente”. Estabelece-se assim o
sentido que uma carta faz: só fica completo quando, do outro lado, está alguém,
o destinatário da missiva, disposto a ler, a reagir.
Assim adquire sentido um título
como Está alguém desse lado?, volume
de correspondência entre João Coelho e Salvador Peres (Lisboa: Chiado Editora,
2016), mensagens trocadas num período de cerca de duas décadas, entre 1993 e
2015, muito embora os anos de 1995, 1999 a 2001 e 2013 estejam em branco quanto
a comunicação. No total, 112 cartas, sendo metade de cada um dos autores,
apesar de essa colaboração equitativa não corresponder exactamente a pergunta e
resposta.
Ao longo destas mensagens,
veiculadas por correio electrónico, o compromisso não é com uma história, mas
com o prazer de escrever e de ensaiar, por aqui passando reflexões assentes em:
histórias (como a do pescador que deixou uma enguia no buraco de uma árvore na
floresta, contada por João Coelho); jogos de palavras (um deles, longo, quase
imparável, deve-se a João Coelho, sobre a dúvida e a circularidade entre os
primeiros e os últimos); momentos de romantismo e de poesia (como um desabafo
sobre o mar, sentido por Salvador Peres); humor (como aquele momento em que
João Coelho responde a Salvador Peres “Quanto à tua dúvida sobre se Deus
saberá, escrevi-lhe ontem a pedir confirmação, como mandei a carta por correio
azul espero que a resposta seja rápida”); locais (de que é exemplo magno o
momento em que Salvador Peres tenta explicar a magia da Arrábida); actualidade
(como o desafio proposto por João Coelho de se imaginar uma discussão sobre o
país à volta de “uma mesa de reuniões oval muito grande”); vida (como a amarga
verificação do que é hoje a rua - muita coisa menos “um lugar de paragem, de
construção do mundo”, como diz João Coelho).
Também vão circulando nomes e
referências da arte e da cultura por linhas em que o dizer se cruza com figuras
como Platão, Álvaro de Campos, Bocage, Luísa Todi, Bernardim Ribeiro, Eça,
Saramago, Agostinho da Silva, José Afonso ou Piazzolla. Habitualmente, há uma
provocação, em tom sério ou de riso, e daí parte-se para o espaço da escrita,
por vezes no mesmo dia, muitas vezes depois de o tempo se acumular. É de João
Coelho (2 de Julho de 1998) a explicação: “Quando se escreve podem-se criar
universos novos, diferentes, estimular a imaginação, não tendo de se ficar
preso ao real. Podem-se ultrapassar muitas fronteiras e erguer algumas.” O
mesmo autor, oito anos depois (24 de Outubro de 2006), confessa: “Eu apenas
opino e brinco, não leves a mal.” E Salvador Peres justifica a entrada no jogo
(1 de Setembro de 2004): “Foi bem oportuno o teu texto. Obrigou-me a escrever e
isso é já um começo.” Estes desafios e justificações (serão?) não se repetem,
mas o leitor tem a sensação de que eles estão sempre presentes, em cada
interpelação e em cada resposta, em cada pergunta e em cada especulação.
Os pontos de vista abraçam-se nas
diferenças e na chegada a momentos de partilha, com um discurso directo e,
muitas vezes, acutilante, como defende Salvador Peres (17 de Julho de 2014):
“Ser afectivo sem ser lamechas é um exercício nem sempre fácil de conseguir. Eu
não gosto, de todo, do registo fofinho. Prefiro as subtilezas da ironia e o
gume afiado do humor.”
Este livro conduz o leitor a
momentos de encontro com o mundo, possibilidade que acaba por responder à
provocação que o próprio título, produzido em uníssono pelos dois autores, pode
ser: claro que tem de estar alguém deste lado, claro que deve estar alguém
deste lado! Para que estas cartas agora publicadas façam sentido. Elisabete
Caramelo, que prefaciou a escolha dos autores, termina a sua apresentação
dizendo que este livro é “a narrativa de quem não está fechado no seu pequeno
mundo e mostra, todos os dias, que ser humano é pensar e sentir e protestar e
agir e, sobretudo, imaginar”. Eis a razão por que é obrigatório estar alguém
deste lado!
Sublinhados
Absoluto - “O absoluto está fora do alcance da nossa razão. Um ser
limitado e condicionado temporalmente como nós não pode ter a pretensão de o
conhecer.” (Salvador Peres, pg. 99)
Anonimato - “É penoso não falarmos de nós. Não há pior sina do que
o anonimato. A alternativa a não se ser mediático, nos tempos que correm, é ser
uma espécie de vegetal, não comestível, ainda por cima.” (Salvador Peres, pg.
56)
Bom senso - “O bom senso é uma invenção recente. Nunca, na história
da humanidade, houve bom senso nem mau senso. As coisas acontecem sempre a
despeito de sensos, sejam eles bons ou maus. E se contarmos com o bom senso
acordamos mijados. A sabedoria não reside no bom senso, mas sim na posição que
ocupamos relativamente às ameaças ou desafios da vida.” (Salvador Peres, pg.
74)
Dizer - “O indizível só se diz por equívoco.” (Salvador Peres, pg.
60)
Escrita - “A escrita não me serve para fixar a memória, antes para
criar novas memórias. Isto é, não me é relevante em termos de registo histórico
para fixar factos, nem sequer pessoas, mas para fazer emergir factos, pessoas e
pensamentos, cuja realidade existe paralelamente ou para além do mundo real.”
(João Coelho, pg. 117)
Fala / Escrita - “A escrita, por ser um acto reflexivo e analítico,
é, por excelência, o discurso da inteligência. A fala, pelo seu carácter
mediático e informal, é mais o discurso do afecto. A escrita luta para ordenar
o espírito. A fala é, por natureza, dissimuladora e desestabilizadora. Uma
constrói, outra desconstrói. Ambas são necessárias para tentar perceber as
fronteiras.” (Salvador Peres, pg. 92)
Felicidade / Infelicidade - “Ser infeliz não é não ser feliz. A
infelicidade é um fenómeno bem mais complexo. A infelicidade não é causada pela
ausência de felicidade. A felicidade não se encontra como quem encontra uma
pessoa que não víamos há algum tempo. A felicidade é um processo, uma construção
que não tem fim à vista. Somos ou não somos felizes no decurso desse processo
ou construção. Não somos felizes de forma estática. (...) A ausência de
felicidade é um estado neutro, muitas vezes confortável e suficiente para se
viver com qualidade. A sofreguidão da felicidade, o querer conquistá-la a
qualquer preço, isso sim, pode conduzir a estados de depressão que confusamente
se podem confundir com estados de infelicidade. Ser infeliz não é não ser
feliz.” (Salvador Peres, pg. 222)
Mudança - “Para o mundo, tanto lhe dá que empreendamos a tarefa de
o mudar: ele não muda, quem muda somo nós, isto é, a parte de nós que se
convence de que há mudança.” (Salvador Peres, pp. 73-74)
Mundo - “O mundo é nosso no breve instante cósmico em que o
sentimos na palma da mão, na ponta da caneta, ou algures, por entre os
labirintos da alma, às vezes pelas razões mais simples e aparentemente sem
importância.” (Salvador Peres, pg. 101)
Passado - “O passado é um lugar estranho e perturbador. Às vezes,
quando o olhamos, parece já não cabermos nele. Não sei se crescemos ou
encolhemos: mas caber, não cabemos.” (Salvador Peres, pg. 119)
Perguntar - “As respostas nunca são uma consequência das perguntas,
mas sim o contrário, precisamente o inverso.” (Salvador Peres, pg. 68)
Tempo - “O nosso tempo é tangível e curtíssimo. Há, portanto, que
aproveitá-lo, vivendo-o o melhor que soubermos e pudermos, com a certeza de que
aquilo que somos é único e irrepetível e que não há, tanto quanto se conhece,
uma segunda oportunidade: é agora ou nunca! Mesmo na hipótese remota da
reencarnação, o que se vive é outro tempo, sem ligação ao anterior, sem
lembranças nem saudades de um tempo que não se conheceu e de amigos que se
perderam para sempre.” (Salvador Peres, pp. 167-168)
Tempo - “O tempo é a soma de todos os anos passado com todos
aqueles que ainda estão por vir.” (Salvador Peres, pg. 17)
Vida -
“Esta vida é muito incerta e o que de certo nos for oferecido deve ser tomado a
duas mãos, ou a três, se alguém as tiver, para que a nossa vida seja mais feliz
e iluminada.” (João Coelho, pg. 32)
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