A terceira obra fac-similada que
integra a colecção de bibliografia sobre o fado, em distribuição com o jornal Público (editada por A Bela e o Monstro),
deve-se a Avelino de Sousa (1880-1946) e detém um título acusatório - O Fado e os seus Censores (Lisboa: ed.
Autor, 1912). Com efeito, o livro reúne as crónicas que o autor publicou no
jornal A Voz do Operário, comentando
as opiniões de Samuel Maia (1874-1951), médico que usou o pseudónimo de Dr.
Félix, e de Albino Forjaz de Sampaio (1884-1949), sendo dirigido aos dois o
subtítulo “Crítica aos detractores da canção nacional”, bem como a designação
de “censores” usada no título.
Tendo aqueles autores publicado opinião
nos jornais O Século e a A Luta, respectivamente, contrariando a
ideia do fado como canção nacional, Avelino de Sousa usa curtas crónicas para
lhes responder, mantendo um tom irónico, sarcástico e cáustico na apreciação de
qualquer um deles, chegando frequentemente a ridicularizá-los.
O texto de Avelino de Sousa é de
contra-argumentação relativamente aos dos dois cronistas e, no seu jogo de
argumentos, utiliza figuras ligadas a Setúbal, como sejam Bocage, Olga Morais
Sarmento e António Maria Eusébio (o “Calafate”).
Uma das frases de Samuel Maia
terá sido no sentido de associar o fado e o vinho, com o objectivo de dar um
tom desprestigiante à canção. A resposta de Avelino de Sousa quanto a este
paralelismo é contundente: «Mas - diz V. Exª - o Fado é a canção do vinho!
Como se, para a gente se embebedar, fosse preciso sobraçar uma guitarra!
Admitamos, porém, que é assim. E, nesse caso, queira V. Exª tomar nota desta
plêiade de “bêbedos” ilustres, que têm contribuído com o seu altíssimo talento
para que o Fado mais e mais se alastre e enraíze na alma popular: Bocage, João
de Deus, Bulhão Pato, Guerra Junqueiro, António Nobre, João Penha, Gomes Leal,
D. João da Câmara, António Correia de Oliveira, Hilário, Augusto Gil, Fausto
Guedes Teixeira, Afonso Lopes Vieira, Júlio Dantas e tantos outros novos e
velhos! Que “súcia de alcoólicos”, hein, doutor?»
Avelino de Sousa, ele próprio autor e
cantador de fado (vocação que seguiu em simultâneo com a sua função de caixeiro
na livraria Guimarães e de tipógrafo), arregimentava assim o grupo dos
literatos cujos versos circulavam já pelas partituras do fado, com o poeta de
Setúbal à cabeça, para responder de forma a deixar o seu interlocutor sem
hipótese, haja em vista que os nomes mencionados constituíam na verdade uma
plêiade. E a pergunta final, num misto de exclamação, assente sobre a ironia e
a metáfora, não pretendia ser retórica, antes um desafio ou provocação ao
criticado.
Quando dirige a resposta a Forjaz de
Sampaio, a primeira observação é para sugerir o ridículo, apoiando-se em
conversa havida com a setubalense Olga Morais Sarmento (1881-1948): «Eu conheço
o sr. Albino Forjaz de Sampaio há longos anos, ainda do tempo em que S. Exª
usava uma grande cabeleira, que é, na nossa terra pelo menos, um autêntico
sinal de talento e, muitas vezes... de piolhos. Já uma vez a ilustre escritora
D. Olga Morais Sarmento da Silveira me perguntou, referindo-se à capilaridade
sebácea de muita gente boa, “se seria preciso possuir-se uma grande trunfa
abastecida de muita caspa e oleoso cosmético para se provar à humanidade que
somos inteligentes”! Não sei se será assim.» Umas linhas depois, vem o ridículo
de facto, sendo denunciado que, num soneto que publicou, Forjaz de Sampaio se
enganara e errara na construção do poema. Também para argumentar contra este
crítico Avelino de Sousa vai buscar Bocage - Sampaio escrevera ser o fado
“absolutamente incompatível com as virilidades de uma raça forte” e Sousa
responde: «Eis outra bárbara mentira do desconexo artigo de V. Exª! Basta
recordar esta quadra “Defender os pátrios lares, / dar a vida pelo Rei, / é dos
lusos valerosos / carácter, costume e lei.” que se deve à pena do imortal poeta
Manuel Maria Barbosa du Bocage. E não vale a pena transcrever também as glosas
do sublime Elmano, porque a quadra chega para desmentir a néscia afirmativa de
V. Exª.» A quadra, no entanto, não era
de Bocage mas da Condessa de Oyenhausen (Marquesa de Alorna), conforme
correcção que, em crónica publicada quase no final do livro, um leitor faz e
que Sousa aceita, explicando a origem do lapso (tinha-a visto associada às
glosas numa edição em que não estavam identificados em separado os autores do
mote e das glosas) e mantendo a argumentação - «a quadra, embora não seja de
Bocage, fica de pé do mesmo modo».
O terceiro nome que funciona como caução
para as razões de Avelino de Sousa é o do poeta Calafate, sobre o qual Forjaz
de Sampaio tinha ironizado: «Está-se a ver pedir um lugar no panteão para o
Calafate.» E comenta Sousa, ao mesmo tempo que enaltece a figura de António
Maria Eusébio: «Assim diz, desdenhosamente, o sr. Forjaz. E acrescenta: “Esta
apoteose não admira num país de correcionais.” Não está certo. O velho respeitável
que se chamou Calafate foi toda a vida um famélico, um operário honesto, um
fautor da riqueza pública, um escravo preso à gleba, como eu. Nunca aspirou a
ter um panteão que lhe guardasse os ossos, aliás, tão veneráveis como os de
qualquer outro mortal que fosse, pelo menos, trabalhador honrado como ele. Sem
embargo, se não teve um panteão, gozou a felicidade suprema de ouvir da boca de
Guerra Junqueiro palavras de infinita doçura, elogios de requintada
sinceridade, à sua obra, à sua inteligência de analfabeto, que, num esforço
supremo de cerebrização inculta, soube arrancar da lira d’alma - a mais honesta
e rica de todas - maviosíssimos sons a que a prosa vil de V. Exª não chegará
nunca! Guerra Junqueiro ouviu o pobre Calafate com aquele recolhimento próprio
do seu altíssimo espírito. Mas creio que se conserva surdo ante os guinchos
guturais de críticos paranóicos e cego para as cabriolices e cambalhotas
obscenas de certos palhaços da literatura indígena! Assim é que está certo.»
O ataque a Forjaz de Sampaio era certeiro e
acutilador: se trazia em defesa do cantador de Setúbal a autoridade do poeta freixenista
Guerra Junqueiro - que, em 1901, prefaciara um volume de poesias do Calafate,
texto a que o leitor pode aceder na obra junqueiriana Prosas Dispersas (Porto: Lello & Irmãos, 1964) -, por outro
lado, parodiava com o título de uma das obras do próprio Forjaz de Sampaio, Prosa Vil, volume de crónicas datado de
1911, ano anterior às crónicas de Avelino de Sousa.
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