sábado, 14 de janeiro de 2017

Fado com histórias de Setúbal (1): Bocage, Calafate e outros nomes



Com o jornal Público está a ser editada a colecção “Os Livros mais afamados do Fado”, edições facsimiladas de títulos maiores sobre a historiografia do fado (volumes prefaciados pelo musicólogo Rui Vieira Nery, em edição de A Bela e o Monstro, em co-produção com o Museu do Fado, no âmbito do Plano de Salvaguarda da UNESCO). A obra que inaugurou a série é devida a João Pinto de Carvalho (1858-1936), que assinou muitas vezes com o pseudónimo anagramático Tinop, e representa, no dizer de Vieira Nery, «o marco fundador da historiografia do género» - História do Fado (Lisboa: Livraria Moderna Editora, 1903).
Ao longo da obra, várias referências são feitas a Setúbal ou a personalidades relacionadas com a cidade do Sado, assim inserindo este espaço na geografia do fado desde o seu início.
Explicando a origem do fado, o autor faz a associação ao sentido que a palavra “fado” tem, dizendo que «canta as contingências da sorte voltária, a negregada sina dos infelizes, as ironias do destino, as dores lancinantes do amor, as crises dolorosas da ausência ou do afastamento, os soluços profundos da desesperança, a tristeza dolente da saudade, os caprichos do coração, os momentos inefáveis em que as almas dos amantes descem sobre seus lábios e, antes de remontarem ao céu, detêm o voo num beijo dulcíssimo». Depois desta longa explicação quanto aos conteúdos que animam o fado, surge o nome de Bocage, por, em alguns dos seus poemas, se referir ao Fado, a “fatalidade antiga”, dando o exemplo «Que eu fosse, enfim, desgraçado, / Escreveu do Fado a mão; / Lei do Fado não se muda, / Triste do meu coração!». Umas páginas adiante, ao invocar uma possível origem marítima para o fado, o vate setubalense é de novo invocado pela sua biografia, quando se refere o “eminentemente imaginativo e contemplativo” que é o homem do mar, sobretudo quando se trata de marinheiro que verseja, como são prova os casos de Camões e de Bocage, entre outros. O carácter testemunhal da poesia bocagiana é ainda um recurso, em nota de rodapé, no capítulo em que se conta a história da Severa, a propósito da importância da Mouraria na geografia amorosa de meados do séc. XVIII, pois, nas Poesias Eróticas e Burlescas, Bocage refere-se «a algumas bonejas do seu tempo: a Coveira, a Santarena, a Inácia China e a Felícia de Chaté.»
A importância do poeta setubalense foi também enaltecida, como consta na letra de um fado antigo, contendo louvores a Bocage, composto por quatro glosas a partir do mote «Elmano, sublime Elmano! / Príncipe da literatura, / Não sei que cantiga cante / P’ra não fazer má figura.» Não só o reconhecimento da obra bocagiana, mas também uma sua quadra («Casou um bonzo na China / Co’uma mulher feiticeira, / Nasceram três filhos gémeos: / Um burro, um frade e uma freira») é trazida para a lista por ter sido mote para um improvisador de versos como foi Caetano Calcinhas, “sapateiro de calçado de senhoras”.
No capítulo sobre cantadores de fado, é mencionado, no grupo de intérpretes do período de 1860 a 1875, o “Farelo, de Azeitão”. Este cantador e António Maria Eusébio, o poeta setubalense Calafate, são mencionados numa “cantiga a atirar” recolhida em Lisboa em 1874, reproduzida no livro, de que se transcreve o mote e a primeira glosa: «Os cantadores deram a mão / E juraram de me vencer; / Que venha um por cada vez / Minha memória combater. // De Angola o “Josezinho”, / De Sacavém o “Rachado”, / Do Campo Grande o “Machado”, / E da Baixa o “Patusquinho”; / O “Calafate” setub’lão, / E o seu amigo “Leitão”, / Venha o “Farelo” d’ Azeitão, / E o título de “Plateia”, / P’ra me darem volta à ideia / Os cantadores deram a mão.»
O Calafate merece, de resto, um parágrafo no grupo dos “cantadores provincianos”, depois de já ter tido, sessenta páginas antes, direito a reprodução de retrato (uma das 13 ilustrações que integram as 270 páginas do livro), excerto em que se lembra o livro Versos do Cantador de Setúbal, coligido por Henrique das Neves e prefaciado por Guerra Junqueiro (1901): «O primeiro [cantador provinciano], na ordem hierárquica e na ordem cronológica é António Maria Eusébio, o Eusébio Calafate ou o Cantador de Setúbal. O provecto cantador, que já conta oitenta e dois anos de idade, tornou-se famoso pela sua admirável facilidade no trovar e pela originalidade das ideias satíricas, que, nos descantes, maravilhava os ouvintes pela justeza e pelo incisivo do traço, quer nos versos que vinham de memória, quer nos improvisados ali». E, a fechar o parágrafo, é reproduzida uma décima do Calafate, uma «amostra dos seus versos, onde, muitas vezes, põe de manifesto a nota satírica, mas onde também, muitas outras, se espelha a bondade do seu coração»: «Nunca fui mal procedido, / Nunca fiz mal a ninguém, / Se acaso fiz algum bem / Não estou d’isso arrependido. / Se mau pago tenho tido / São defeitos pessoais; / Todos seremos iguais / No reino da eternidade, / Na balança da igualdade / Deus sabe quem pesa mais.»
Finalmente, o autor refere as danças ligadas ao fado e, quanto ao “bater o fado” (“dança ou meneio particular em que entram duas pessoas ou três”), lembra a arte de algumas “batedoras”, entre as quais uma setubalense - «Houve batedoras de fado excitantes como as figuritas das caixas de fósforos, que, pela petulância de suas atitudes, simbolizam maravilhosamente o produto inflamável de que são o ornamento: as que aparavam com mais gajé nos tezos fados batidos eram: a Borboleta, a Ana do Porto, a Ana de Setúbal, a Emília Midões, A Amélia do Paixão e a Lucinda do Bairro Alto, convivas alegres desse eterno banquete do amor venal, onde as blandícias das gulodices fundentes alternam com as especiarias vigorosamente apimentadas e os acepipes impertinentemente cantaridados.»
Setúbal surge assim ligado aos primórdios da história do fado, ligação que, felizmente, Pinto de Carvalho deixou registada, já que, a não ter havido tal menção, esta referência se poderia ter perdido ou, pelo menos, dela poderia haver muito menos indicadores.

Sem comentários: