Uma das obras fac-similadas que integra a colecção de
bibliografia sobre o fado, em distribuição com o jornal Público (editada por A Bela e o Monstro), deve-se a Alberto Victor
Machado (1892-1939) e pretende coligir nomes e percursos relacionados com o
género musical - Ídolos do Fado (Lisboa:
Tipografia Gonçalves, 1937) -, nela se notando também a presença do filão da
defesa do fado, sobretudo num tempo em que várias vozes se tornaram críticas
quanto à importância do género, pormenor logo assinalado no prefácio assinado
por Artur Inês - o livro revestia-se de oportunidade por surgir «no
momento em que uma nova campanha de descrédito pretende acabar com o fado».
O primeiro capítulo é, assim, uma justificação para o
gosto, um quase manifesto em nome da tolerância, levando o autor a afirmar: «Não
gostamos de ópera e por isso a não frequentamos, nem mesmo por snobismo como
alguns; mas longe de nós a ideia de combatê-la. Seria ridículo, absurdo e até
pouco cortês para aqueles que sabem apreciá-la.» Apoia-se, depois, no testemunho favorável
de diversos autores (Rocha Martins, Artur Inês, Júlio Dantas, Norberto de
Araújo, Palmira Bastos, Chianca de Garcia, Estêvão Amarante, Amélia Rey Colaço,
entre outros), para concluir: «O amarelo não teria gasto se todos o
detestassem; e, como os gostos não se discutem, que os de má boca se convençam
de que, não obstante o negregado polvo da carestia da vida oprimir entre os
seus tentáculos a humanidade, cada qual come do que mais gosta... e a caravana
passa.» Em favor do fado, o autor lista nomes importantes na
área (na composição, na interpretação ou na execução musical), não esquecendo
que também «na poesia tem ele encontrado os seus mais fervorosos
cultivadores, os seus mais desvelados adeptos», logo mencionando João de Deus, Júlio
de Castilho, António Nobre, Guerra Junqueiro, Cesário Verde, Gomes Leal, Bulhão
Pato, Augusto Gil, Bernardo de Passos, nomes de muito vasto grupo que integra
autores de letras e apreciadores. Impressionante ainda é a listagem de títulos
da imprensa especializada no fado de que o autor dá conta, que chega a atingir
as duas dúzias.
É no quarto capítulo que se inicia a série de biografias,
por ordem alfabética, rol que abrange também o capítulo seguinte, registos que
foram conseguidos através de entrevista aos próprios, repto lançado na revista Guitarra de Portugal, em Janeiro de
1937, em que se pretendeu «ouvir de viva voz todos os biografados
e recolher os seus depoimentos, dando-lhes fiel reprodução».
E, a terminar as considerações, Victor Machado incide de novo sobre os
depreciadores do fado: «a compensar-nos dessa labuta em que
voluntariamente nos embrenhámos, temos o regozijo de poder demonstrar que os
cantadores do Fado, os seus poetas, guitarristas e violistas, não são essa
horda de vadios e vencidos como alguns fadistófobos injusta e agressivamente têm
ousado julgar em arrazoados e escritos de verrina».
Pelas biografias passam alguns nomes naturais de Setúbal.
O primeiro é Carolina Redondo, conhecida como “Cantadeira de Setúbal”, que iniciou
a carreira em 1931, tendo recebido o cartão profissional no Teatro Recreio do
Povo e chegando a ser homenageada em festa promovida no Teatro Incrível Almadense,
dela dizendo o autor que «pronuncia acentuadamente os rr, o que
lhe dá uma certa graça», motivo suficiente para ser
reproduzida a letra do fado “A Minha Pronúncia”, em sextilhas, da autoria de
Clemente José Pereira, interpretado pela própria Carolina Redondo: «Tenho
visto muito bem, / Quando canto, alguém sorrir, / Duma forma que, afinal, /
Mostra não saber, porém, / Que a pronúncia é o sentir / Da nossa terra natal.
// Sem R não se escrevia / A palavra coração, / Onde vibra, tantas vezes, / A
tristeza ou alegria, / Ternas virtudes que são / Bens próprios de portugueses.
// Sem R nem a guitarra / Teria o nome que tem, / Nem se escrevia o valor / De
Portugal, nossa amarra, / Onde se sente tão bem / A terna palavra amor. // Há
muita gente que ri, / E há no seu riso a denúncia / Da sua grande ‘fraqueza’; /
Pode crer, ri-se de si, / quem ri da minha pronúncia, / Porque ela é bem portuguesa.»
Também
sadina é Dolita Lisboa, com carreira em Portugal iniciada no teatro, depois
seguindo para o Brasil, onde viveu 16 anos a cantar fado, sambas e tangos e
como bailarina. De regresso a Portugal, dedicou-se ao fado, tendo percorrido
todo o país. Foi casada com o cantador Manuel Cascais, soldador, homem que se
ligou ao fado através de alguém relacionado com Setúbal - «foi em 1916 que ele
mais se dedicou a cantar, quando naquela vila (Cascais) apareceu um soldado do
batalhão dos Caminhos de Ferro, que ainda hoje vive em Setúbal e então cantava
o Fado, dando-lhe algumas letras do seu repertório que ele decorou».
Não sendo natural de Setúbal, mas da Fuzeta, Maria do
Carmo Torres foi fadista que teve parte da sua vida ligada à cidade do Sado,
onde passou a infância e, mais tarde, trabalhou na indústria conserveira, em
que «exerceu o cargo de encarregada de
uma das secções e onde, nas poucas horas que o serviço lhe deixava disponíveis,
começou a cantar o Fado, sentindo por ele uma verdadeira paixão. Conhecedor
desta vocação, o empresário Piteira convidou-a a tomar parte numa revista de
Manuel Envia, que então se ensaiava no Salão Recreio do Povo, convite a que
acedeu, interpretando um garoto. Maria do Carmo contava nesse tempo apenas 19
anos e foi aquele o seu primeiro êxito. Quando acabou de cantar, o empresário
abraçou-a publicamente, felicitando-a com verdadeiro entusiasmo. Era a primeira
vez que ela cantava o fado em público e a sua estreia não podia ser mais
auspiciosa. Depois, tomou parte no desempenho de uma outra revista no Casino de
Setúbal, em que fez a imitação do conhecido marítimo António Gouga, sendo
obrigada a cantar sete vezes seguidas, sempre aplaudida com vibrante
entusiasmo.»
O nome
de José Rocha também não é de Setúbal, mas a esta cidade esteve ligado.
Lisboeta e empregado de comércio, «começou a sua vida artística na Companhia
Infantil de Manuel Envia, em Setúbal. Foi nesta cidade que cantou o fado pela
primeira vez no Casino Setubalense e, depois, em Sesimbra e no Montijo. Também
na cidade do Sado tomou parte em muitas festas de beneficência, promovidas pelo
Grupo Setubalense Cultivadores do Fado Solidariedade Humana, (...) do qual foi
sócio fundador, bem como da Sociedade Promotora de Educação Popular Setubalense,
que, em 22 de Novembro de 1936, o elegeu seu sócio honorário. Em Setúbal, José
Rocha cantou algumas vezes ao lado dos seus colegas da velha guarda Alfredo
Correeiro, João Estica, António Pedro Machado Machadinho, Armando Barata, António
Lado, Carlos Ribeiro, José Ribeiro, José Pires e José Alves Barata, estes dois
últimos de Setúbal.»
Ainda da região de Setúbal, são mencionados os nomes de Domingos
Silva (natural do Barreiro), Ercília Costa (nascida na Costa da Caparica) e Francisco
Viana (natural da Moita, conhecido pelo apelido “Vianinha”).
Nos percursos de vida traçados, há lugar para o registo
de localidades onde os biografados intervieram, constando a passagem por
Setúbal de nomes como António Lado, Artur Fininho, Augusto Carlos (que cantou
também na Incrível Almadense e «em casa do
velho cantador Miguel Caleiro, em Vila Nogueira de Azeitão»), Carmen Santos
(que cantou em Sesimbra e Barreiro), Ermelinda Vitória (que ingressou no profissionalismo em
1928, mas que «contava apenas 9 anos quando, com o velho Calafate de
Setúbal, começou a cantar o Fado naquela cidade»), Estanislau Cardoso, Guilherme
Simões (que também cantou no Barreiro), Ilda Silva (que também interpretou em
Alhos Vedros, Almada e Montijo), José Júlio (espectáculo no Luísa Todi e também
em Almada), José Ribeiro (com actuações também em Almada, Pinhal Novo e
Montijo), Júlio Duarte (irmão de Alfredo Marceneiro, que cantou também em
Quinta do Anjo, Moita, Barreiro, Seixal e Montijo), Lucília do Carmo, Manuel
Calixto (também cantou em Almada), Manuel Portugal (com exibições também em
Almada, Grândola, Barreiro, Montijo e Sesimbra), Maximino Costa, Raquel de
Sousa, Renato Varela (que também actuou em Almada) e Ressurreição do Nascimento
(que também cantou em Montijo e Vendas de Azeitão).
Ainda relacionados com a região de Setúbal surgem os nomes
de Arminda Vidal (com espectáculos no Barreiro e Montijo), Frutuoso França (que
cantou em Almada, no Teatro Incrível Almadense, em espectáculo de homenagem à
setubalense Carolina Redondo), Jesuína de Melo (com várias intervenções no
Montijo, aquando das festas da Senhora da Atalaia), João Alberto (com espectáculos
em Sesimbra e Almada), Judite Pinto (que cantou no Barreiro), Leonor Duarte
(que cantou na Moita), Maria Albertina (que «entrou no filme ‘Bocage’, cantando e
dançando o ‘Bailarico Saloio’»), Ricardo Porfírio (que cantou «nas
herdades do Dr. Paula Borba em Alcácer do Sal») e
Rosa Costa (que surgiu como «cantadeira profissional em 1927, numa festa de
beneficência a favor dos náufragos da Costa da Caparica, no Teatro de S. Luís»).
Pode assim
o leitor de Ídolos do Fado ver que a
ligação ao fado que hoje existe em Setúbal tem longo historial, quase tão extenso
quanto a história do fado em Portugal, algo que inevitavelmente passará pela
identidade cultural sadia.
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