O segundo título da colecção “Os
Livros mais Afamados do Fado”, em distribuição pelo diário Público (editados por A Bela e o Monstro), reproduz em facsímile a
obra O Fado - Canção de Vencidos (Lisboa:
ed. Autor, 1936), de Luís Moita (1894-1967), contendo o texto de oito palestras
radiofónicas que tiveram lugar na Emissora Nacional, entre 28 de Abril e 4 de
Agosto de 1936, numa perspectiva, como o subtítulo deixa inferir, algo
anti-fadista, desviando-se de uma leitura que encarava o fado como uma “canção
nacional”. A diferença do livro relativamente às palestras cifra-se no
acrescento das notas, contendo elementos e referências documentais importantes
para a história do género.
A segunda palestra, intitulada “O
Fado e o Brasil - O Mistério do Nome”, proferida em 12 de Maio de 1936, começa
por biografar rapidamente Bocage, chamando a atenção sobretudo para as suas
marcas de “ídolo popular” que era nos alvores de 1800, comprovado mesmo por
autores estrangeiros como William Beckford, transcrito em nota final, ou Heinrich
Link, igualmente referido em nota final, não de forma directa mas através de
citação de Teófilo Braga - o leitor de hoje pode encontrar o registo de
Beckford na obra A Corte da Rainha D.
Maria II - Correspondência de William Beckford (Lisboa: Frenesi, 2003, cap.
XXIV) e o de Heinrich Friedrich Link em Notas
de uma Viagem a Portugal e através de França e Espanha (Lisboa: Biblioteca
Nacional, 2005, apêndice “Sobre a Literatura e a Língua Portuguesas”). De
facto, o poeta sadino poderia corresponder ao modelo de alguém propenso para o
mundo do fado, como se pode ver pela apresentação sucinta que dele é feita - «figura
de vivo destaque na boémia da capital, Bocage, vaidoso, sensual, brincalhão,
cheio de espírito, representava, à parte o seu enormíssimo talento, o espelho e
a consequência da sociedade de então». No entanto, o destaque nesta
referência a Bocage vai para o uso frequente que o poeta fez da palavra “fado”,
na senda camoniana, mas talvez com mais propriedade - «Bocage, imitando Camões, não
reagiu, ao contrário deste, com a sociedade do seu tempo, não se impôs a ela;
deixou-se além disso dominar pelos “prazeres, sócios meus e meus tiranos”, por
isso foi desgraçado, por isso os seus versos mais sentidos e espontâneos
traduzem a dor que lhe queimou e torturou a curta existência. Por isso Bocage
adoptou o termo “Fado” como perfeitamente ajustável à desgraça de que se sentia
possuído.»
E conclui o autor dizendo que, a partir da viagem bocagiana para a Índia, o
termo “fado” passou a ser uma constante na sua obra, adaptando-se «a quase toda
a sua espontânea produção».
Passe o facto de Luís Moita registar a
morte de Bocage como tendo acontecido em Novembro de 1805 (assim retirando um
mês à sua já curta vida), certo é que este autor considera fundamental o uso da
palavra “fado” por Bocage, sobretudo pela influência exercida sobre os seus
seguidores, os elmanistas - «em toda a obra espontânea de Bocage,
principalmente nos sonetos e redondilhas, se encontra disseminado o termo
“Fado”, tornado moda, por ele influenciado nos poetas menores do seu tempo,
satélites da sua estranha fulguração”, círculo que abrangeu, por exemplo, o
brasileiro Caldas Barbosa, o “Lereno” das “modinhas” e “lunduns” de além-Atlântico.
A importância dada a Bocage na
designação do género alarga-se mesmo em Portugal, quando, em 1805 (ano da morte
do poeta setubalense), Felisberto Inácio Januário Cordeiro, que usou o pseudónimo de Falmeno, publica Poesias de um
Lisbonense, conjunto de «versos onde o estilo bocagiano, misturado
afoitamente no sabor alambicado da ‘modinha’ e nas dolências do ‘lundum’, toma
para si o termo ‘Fado’, ainda na acepção de destino falhado e ruim, mas já como
expressão em uso, ou moda, no quadro da inspiração popular».
A teoria de Luís Moita conclui-se com a
origem da designação do género: «Inclino-me, portanto, a considerar que os
suspiros amorosos da ‘modinha’ e as tristezas do ‘lundum’ se apossaram do termo
‘Fado’, no alvorecer do século XIX, para símbolo popular, da sua compleição
impressiva»; logo, supõe Moita «haver encontrado aqui o ‘mistério do nome’ da
futura canção lisboeta...»
Esta explicação serve ao palestrante
para concluir a conversa com a contestação da crença romântica de que o fado
tenha nascido no mar, nas viagens dos Descobrimentos, advogando que o mar pode
ter sido apenas o veículo, assim pretendendo chegar mais longe: «o Fado não é
uma afirmação do valor português na via marítima dos descobrimentos, antes uma
consequência desse mesmo comércio na estrada do Atlântico». Por isso, umas
linhas antes, Luís Moita admite que «o fado deve ter sido ‘batido’ em Portugal,
pela primeira vez, por boleeiros e fidalgos, por ciganos, arrieiros e marujos
da rota do Brasil, depois de Março de 1822, isto é, ao regressar dali a corte
portuguesa, e com ela, todos os múltiplos interesses que lhe eram afins.» É
peremptoriamente que a palestra encerra, num quase arrumar o assunto com a
teoria do nascimento do fado nas viagens marítimas: «Dizer que o ‘Fado’ nasceu
no mar, só para mais facilmente solucionar a questão da origem,
indeterminando-a, ou ainda por terem sido os marujos da rota do Brasil dos
primeiros a ‘batê-lo’ nas tabernas da Madragoa e de Alfama, quando não nas
‘casas de Fado’, como já em 1833 se chamava a certas locandas suspeitas da
capital, é fechar romanticamente os olhos para não ver uma verdade porventura
incómoda a alguns, mas que deve ser grata à maioria dos portugueses.»
Bocage viria a ser, ainda, tema de “modinhas”, como
surge documentado, em nota de final da obra, em texto publicado em 1836 na Colecção de Novas Modinhas para honesto
recreio das Madamas e Apaixonadas do Harmonioso Canto, uma quase sequela já
tardia do elmanismo, por onde passam também as histórias das mulheres
bocagianas: «Meus males, minha desdita / Não podem remédio ter; / Eu deixarei
de ser triste / Quando acabar de viver. // Terno, meigo e desvelado / Por
Anarda estou chamando; / Mas a cruel ensurdece, / Dos meus ais sempre zombando.
// Já nem duvido que Elmano / Com dolo me falte à fé; / Buscar firmeza nos
homens / É remar contra a maré. // Quando dou crédito a Jónia / Entro em formal
desvario; / Buscar na mulher lisura / É bater em ferro frio. // Sendo infinitos
aqueles / Que persegue o fado iroso, / Nenhum há entre os que existem / Tão
infeliz, tão desditoso.»
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