domingo, 5 de fevereiro de 2017

Os "tanques" na Primeira Grande Guerra apresentados pela propaganda num texto com um século



Os carros de assalto (“tanques”) entraram na I Grande Guerra, na batalha do Somme, em 15 de Setembro de 1916, e funcionaram como resposta ao bloqueio estratégico da frente ocidental. A ideia veio de Inglaterra, quando Churchill se deixou convencer da eficácia de tal arma por Swinton, tendo o primeiro modelo ficado conhecido por “Mark I”. Até 1918, fabricar-se-iam mais quatro modelos que mais não eram do que versões modificadas do primeiro. O seu formato de losango, visando vencer os obstáculos, foi associado à designação de “couraçados terrestres”. Se a sua eficácia ficou aquém do esperado no início, o recurso a este equipamento foi apurado e, no final de 1917, era já considerado um êxito, para o qual trabalharam ingleses e franceses. Quanto aos alemães, só tardiamente se renderam à utilização dos “tanques”, tendo construído o modelo “A7V Panzerkampferwagen”, o mais pesado dos tanques da Grande Guerra (32 toneladas), mas o mais rápido (13 km/h), o mais dotado de equipamento de ataque e o mais volumoso (com uma tripulação de 16 homens). A importância do “tanque” vislumbrava-se de tal maneira que Stéphane Audoin-Rouzeau considerou que este equipamento, juntamente com o avião, “anunciaram uma mutação decisiva nos meios de combate do século XX”.
Confrontados com esta nova arma, os exércitos e os povos foram marcados pela novidade e pelo seu poder. Em 1917, o Bureau da Imprensa Britânica em Lisboa editava, na colecção “Série de Notas sobre a Guerra”, um opúsculo (o nº 83) intitulado Os Tanks, assente num discurso hiperbolizado sobre a máquina e numa caricatura depreciativa dos alemães - “O alemão nunca o poderia ter ideado porque lhe falta em absoluto a bossa humorística. A ideia do tank só podia nascer no cérebro dum homem que vê em tudo um lado extravagante e que depois o construiu na firme convicção que havia de servir um dia para inspirar terror ao soldado alemão”. E, mais adiante: “A aparência do tank é tudo quanto há de mais absurdo. É um objecto monstruoso, desastrado, impossível. Ao fazer a sua entrada no front Ocidental, o exército britânico extorceu-se de riso; e, quando pela primeira vez o exército alemão o enxergou, os soldados pediram misericórdia e fugiram espavoridos.”
A origem do nome por que ficou conhecido este equipamento - “tanque” - é explicada: “para guardar o segredo da sua verdadeira natureza, fora dito aos operários que o construíram que deviam servir para transportar água para o exército na Mesopotâmia. Quando chegaram a França traziam já esse apelido, o qual na verdade era uma descrição bastante vaga para iludir o serviço secreto alemão”. Quando a máquina surgiu no terreno, os repórteres recorreram ao universo da metáfora na tentativa de descreverem o objecto e o seu poder (chamaram-lhe “tartarugas de aço”, “monstros pré-históricos”, “sapos gigantescos”, “dinossauros”, “mamutes baleias”, “mastodontes motores”, “baleias de guerra”, entre outros epítetos não menos imaginativos). O próprio Bureau, neste prospecto, não lhes ficou atrás ao descrever o equipamento: “Um tank é uma espécie de casa forte de Banco com armadura, que se move por si e que tem no interior soldados e peças de fogo rápido. É invulnerável a não ser aos projécteis de grande calibre. Visto de lado tem o feitio de um losango. Imóvel e silencioso é um monstro absurdo e fútil. Porém, avançando irresistível, vomitando fogo e fumo, rugindo as máquinas, troando as peças, é um pesadelo.”
Para atestar a força de tal equipamento, é referido o seu papel nas batalhas do Somme e em Cambrai, muito embora seja dito que foi nesta última que o “tanque” revelou a sua eficácia, com o seu poder destruidor e avassalador, sendo omitido que, na batalha do Somme, a utilização dos “tanques” foi uma decepção, apesar de serem relatadas duas histórias passadas com os “tanques” nessa batalha. E, quase a terminar, são também apresentadas as contrariedades que atrapalhavam a máquina - “O que mais aborrecem é a água e a lama. Em Flandres, foi a natureza que os deteve e não os alemães. Apanhados num charco, não se podem mexer: por mais que se esforcem, por mais que bufem de raiva, atolam-se infalivelmente.” E lá se conjugam o poder da metáfora e da personificação para justificar o efeito hiperbólico...
O opúsculo não se conclui sem que haja uma referência à superioridade dos Aliados, um pouco a comprovar a diferença com que o texto abriu: “Já se passou mais de um ano e ainda não apareceu nenhum tank alemão. Se um dia aparecerem, uma batalha de tanks fornecerá o acontecimento mais extravagante desta grande guerra”. É sabido que, quanto à primeira parte, o Bureau não podia fazer futurologia - se era certo que os alemães ainda não tinham incorporado o “tanque” nos seus ataques, não menos certo era que a resistência aos “tanques” sucedia por encorajamento e elevação moral, pelo menos até que o “tanque” aparecesse do lado alemão mais tarde. No entanto, quanto à segunda parte, a do “acontecimento mais extravagante”, o Bureau acabava por acertar - a evolução dos blindados tem determinado as guerras e os conflitos territoriais.

Com este opúsculo, o Bureau da Imprensa Britânica em Lisboa cumpria o seu papel no contributo para a propaganda da guerra em favor dos Aliados, com uma ajuda extraordinária do poder da imagem através da metáfora e com o recurso à sobrevalorização dos Aliados e à depreciação das tropas alemãs.

"Tanque" desenhado em vinheta na obra de Rogério Marques de Almeida Russo
Arquivo Poético da Grande Guerra (Porto: Companhia Portuguesa Editora, 192-)

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