terça-feira, 29 de junho de 2010

Rostos (144) - Nos 110 anos de Saint-Exupéry

O Pequeno Príncipe a a raposa, em aguarela de Saint-Exupéry (em Le Petit Prince)

Antoine de Saint-Exupéry nasceu em Lyon há 110 anos. Com 44 anos, no último dia de Julho, desapareceu num voo ao largo de Marselha, desde aí se construindo uma história sobre a origem do acidente (alvejado pelos inimigos, suicídio ou falha?). Paralelamente, ficou a sua obra, sobretudo esse fascínio que é Le Petit Prince, que teve direito a desenhos do autor e tem deliciado gerações, num caminho de leitura para todas as idades. A história d’O Principezinho (assim conhecido na versão portuguesa, em traduções devidas a Alice Gomes, Joana Morais Varela, Manuel Alberto ou Margarida Osório Gonçalves) teve a sua primeira edição em 1943, nos Estados Unidos, correspondendo a um pedido de um conto de Natal que os editores tinham feito a Saint-Exupéry, enquanto a edição francesa só apareceu em 1946, dois anos depois do desaparecimento do seu autor.
Episódios como o da raposa ou o da rosa têm arrebatado os leitores e são, talvez, os mais conhecidos. Mas a história é um prodígio de simplicidade, em que, como escreveu Jean Montenot, o saber do Pequeno Príncipe é “un savoir du coeur qui ne se donne qu’à ceux qui peuvent l’entendre” e cuja filosofia, “si philosophie du conte il y a, consiste moins à donner une réponse à l’éternelle question du sens de l’existence qu’à montrer l’urgence qu’il y a à s’en inquiéter” (in Lire, hors-serie nº 9, 2009).
O fascínio desta história tocou, por exemplo, Orson Welles, que, ainda em 1943, comprou os direitos para adaptar a obra ao cinema, projecto que só não teve sequência porque Welles e Walt Disney não se entenderam: é que Welles precisava de Disney para a animação, mas a conversa, apesar do entusiasmo e do brilhantismo de Welles, não chegou a bom termo. Conta Barbara Leaming, biógrafa de Welles, que Disney abandonou a reunião sob o pretexto de uma chamada telefónica, confidenciando depois a um dos presentes: “Aqui não há lugar para dois génios!”

Previsões (fáceis) do jogo de hoje

O sítio do Le Monde atribui um título interessante à notícia sobre o jogo do Mundial de Futebol de hoje: “Espanha-Portugal, a festa dos vizinhos”. No entanto, o texto alusivo a este encontro luso-espanhol termina com algo que contraria o tom festivo do título: “O choque da Península Ibérica entre as segunda e terceira nações da classificação FIFA anuncia-se quente.” O que justifica esta pressão é aquilo que, a dada altura, o articulista diz: em causa está o facto de ambas as selecções pretenderem "integrar o círculo fechado das oito melhores equipas do mundo e responder às imensas esperanças nelas colocadas." Pelo meio, vai ficando a classificação de Cristiano Ronaldo neste Mundial como “enigmático” e como “desconhecido”...

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Maria do Carmo Vieira, "O Ensino do Português"

O volume inaugural da colecção de ensaios editada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos é consagrado à educação e deve-se à reflexão de Maria do Carmo Vieira, intitulando-se O Ensino do Português (Lisboa: 2010).
O que é este livro anuncia-o a autora logo no primeiro parágrafo do prefácio: “Da experiência da minha actividade docente, desde 1974, e da reflexão sobre a mudança instituída pela nova reforma, em 2003-2004, resultou este livro, no qual procuro evidenciar, através de inúmeros exemplos relativos às alterações programáticas, o estado de deterioração em que se encontram a escola e o ensino, nomeadamente o ensino da disciplina de Português.” E, se este é o propósito, facilmente o leitor verifica que dele não há desvio, pois o livro mantém esse cunho de reflexão pessoal, baseada na experiência docente e na preocupação e dedicação consagradas ao ensino do Português, sem se meter por essas veredas dos números e das estatísticas em que muitos sectores se empenham para justificar isto ou aquilo e raramente para procurar um retrato de fidelidade.
Os capítulos são sete – “Nova concepção de Escola e novo perfil de Professor”, “Gramática e Terminologia Linguística”, “Ensino Secundário”, “Ensino Básico – 3º Ciclo”, “Ensino Básico – 1º e 2º Ciclos”, “Iniciativa Novas Oportunidades” e “Revisão dos Programas do Ensino Básico”. Pelos títulos se vê que estão presentes as questões que têm ocupado o ensino da Língua Portuguesa ou do Português (terminologia que a disciplina recebe, respectivamente, no Básico e no Secundário) nos últimos anos, qual delas a mais polémica ou até controversa…
Os equívocos que Maria do Carmo Vieira demonstra assentam num princípio logo enunciado no prefácio – o “confronto irresolúvel entre ensinar e aprender, saber e competências, passado (velho) e presente (novo)”, de onde “a secundarização dos conteúdos e o menosprezo pelo património artístico que representa a Literatura, bem como pela formação científica do professor, a que se junta a criação de um perfil que lhe retira a sua individualidade”.
Creio que as observações feitas ao longo do livro servem o que se passa com o ensino do Português, mas também com o que se vive no ensino português. Tudo com responsabilidades distribuídas pela política e pelas suas medidas, pelos editores escolares (concretamente, por causa dos manuais escolares, muitos deles praticando uma infantilização crescente ou eivados de erros e de imprecisões – como ainda agora, altura de adopção de manuais de Português para o 10º ano, se pôde ver…), pela organização escolar, pela história social das últimas quatro décadas, pelas teorias da educação que têm entrado na escola muitas vezes dela se servindo como cobaia... Provavelmente, nem todos os professores subscreverão as críticas, aí entrando as formações académicas e as ideologias que pela educação lhes chegaram; mas não podem negar as histórias contadas e com as quais, possivelmente, encontrarão algumas parecidas nos seus percursos individuais. Não creio que o retrato aqui traçado seja exagerado, acho-o mesmo muito próximo daquele que é o quotidiano da vida docente, designadamente dos professores de Português, com as impossibilidades, as fragilidades e as incongruências.
A leitura deste livro tem de ser acompanhada por um dos princípios que a autora enuncia no final do seu primeiro capítulo, reflectindo sobre o que é ser professor – “ensinar é um acto de dádiva que tem por isso estreita relação com o verbo amar, e se compraz no prazer do estudo e da emoção, que advém das inúmeras leituras feitas com os alunos, bem como no interesse e no empenho por estes demonstrados nesse trabalho, num ambiente de confiança recíproca.”
Bem se sabe que esta não é também a concepção de professor que conforma todos os docentes e, por isso, vale a pena pesar cada uma das palavras deste ponto de partida. Pelo menos para quem perfilha esta ideia, fica o desafio para uma mudança favorável ao desenvolvimento do país, como consta no epílogo: “só com professores conscientes do significado de ensinar e solidamente formados, a nível científico e pedagógico, com programas adequados às exigências crescentes de cada nível de ensino e conteúdos valorizados será possível devolver à escola a sua função histórica de espaço de conhecimento, de cultura e de formação, fruto de um trabalho contínuo e empenhado de múltiplas gerações que a Inércia não pode interromper.”
Leitura indispensável, pois. Por tudo o que retrata, por tudo o que pensa (e faz pensar), por tudo o que (nos) identifica. E também pelo manifesto (sem ser panfletário) que O Ensino do Português constitui em prol de um olhar para a disciplina de Português como algo fundamental nos domínios da identidade, da cultura e do saber.

sábado, 26 de junho de 2010

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Patrulheiros - já ouviu falar deles?

Natália Abreu escreveu no Público de ontem que "estes reformados fazem uma cidade mais segura". São eles, os patrulheiros. E continua: "Não ganham muito, mas recebem algo que não tem preço. Têm entre 50 e 80 anos e uma missão - fazer do centro de Setúbal um lugar melhor."
[foto: Público]

A goleada

No dia em que Portugal venceu a Coreia do Norte por 7-0 no Mundial de Futebol, na Cidade do Cabo... parabéns à Selecção, com este desenho da bandeira portuguesa feito a partir de tampas plásticas num estabelecimento comercial localizado na estrada Setúbal-Palmela (Miraventos).

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Memória: José Saramago (1922-2010)

Revejo o volume da 1ª edição de Memorial do Convento, adquirido numa livraria de Vila Franca de Xira e ali autografado por Saramago em Março de 1983. Uma capa bem mais bonita do que as capas das edições que se lhe seguiram, mas o mesmo dizer, ao longo das edições sucessivas, e um escrever que se foi reproduzindo numa bibliografia que não parou de crescer. Relembro o prazer que me deu a leitura deste romance, logo devorado nessa altura, um livro cuja história tive pena de acabar de ler, fosse pela densidade de emoções, fosse pelo contacto com uma escrita que corria, vertiginosa, rompendo códigos e hábitos. Achei – acho – que Saramago ficaria na história da literatura portuguesa mesmo que não tivesse prosseguido a sua via de escritor, este romance bastaria para nela deixar o nome.
Duas décadas depois, em 2006, Saramago publicava As pequenas memórias, onde, a propósito da terra que é um dos pontos fortes desse romance, escrevia: “Um dia, (…) fui de excursionista a Mafra. Tinha nascido na Azinhaga, vivia em Lisboa, e agora, quem sabe se po um cúmplice aceno dos fados, uma piscadela de olhos que então ninguém poderia decifrar, levavam-me a conhecer o lugar onde, mais de cinquenta anos depois, se decidiria, de maneira definitiva, o meu futuro como escritor.”
E assim se constrói uma história. E uma obra. De Saramago fica essa obra. Com todas as inovações, com o fulgor da escrita. E com os fundamentalismos que a minam, também. Mas continuarei a apreciar essa recordação do Memorial e a sensação que me deixou enquanto leitor. Poderosa, claro. Não tão forte em obras que se lhe seguiram, mas intensa essa do Memorial. Há obras assim!
[foto: José Saramago, na Feira do Livro, em Lisboa, em Junho de 2008]

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Entre o copianço e a ética

De vez em quando surgem as notícias sobre o plágio ou sobre o "copianço" e, por vezes, a explicação para tais casos - um texto que estava no computador, a sobreposição com as fontes, etc. Há bem pouco tempo, foi o caso de uma tese de doutoramento que terá sido decalcada a partir de uma outra defendida no estrangeiro; há dias, um investigador debruçava-se sobre o acto de copiar, puxando o assunto para trabalho académico e apresentando resultados avassaladores; há uns anos, foi o caso de uma colunista que, num artigo para uma revista, inseriu, sem indicar a proveniência, parte de um texto de outro autor publicado no estrangeiro... No quotidiano, na escola, vamos assistindo ao confronto entre o copianço e a seriedade, nem sempre saindo a última como vencedora. A net tem dado uma ajudinha nesta tentação, mas também tem servido para pôr a descoberto as quedas... Na última edição do Correio da Educação (da editorial ASA), o seu director, J. Esteves Rei, docente universitário, aborda o assunto de uma forma que merece a nossa atenção. De lá transcrevo.

«(…) É estranho que os alunos cheguem às universidades sem conhecerem claramente a dimensão ética da aprendizagem ou a relação entre o aprendente e aprendizado, tal como entre a fonte e a recepção da informação e do conhecimento.
Olhada a situação do lado do docente, também se estranha que, à primeira falta de clareza dessa relação, o professor não alerte o aluno dessa falha ética, apontando-lhe os riscos que corre perante a lei.
Do lado dos princípios, há que considerar os pressupostos e as grandes linhas de acção. Entre os primeiros, tenhamos presente que não há comportamento humano, individual ou colectivo, sem uma dimensão ética a envolvê-lo. Daqui decorre que cada indivíduo deverá identificar os princípios lógicos ou a razão ética, subjacentes às suas decisões, condutas ou comportamentos.
Na constituição desse conjunto de princípios há quem tome como ideia central o dever, ou o uso da razão, que no momento de agir se transforma em dever moral. As dificuldades na aceitação desta perspectiva nascem da impossibilidade de hierarquizar princípios quando surge o conflito entre dois deveres. Exige-se, então, ao indivíduo que saiba ponderar a importância de optar por um ou pelo outro.
Há, porém, quem escolha os princípios em função da utilidade das acções, em ordem a satisfazer o bem-estar dos agentes envolvidos e da sociedade, hoje ou no futuro. Neste caso, as reservas perante um princípio advêm da dificuldade em quantificar os riscos, danos e prejuízos, ao determinar a sua aceitação ou rejeição.
Como princípios gerais de uma ética aplicável a estudantes e professores, destacam-se os seguintes. A exigência de formação humana, intelectual e profissional deve ser timbre de qualquer escola, confrontando com ela o jovem, de qualquer idade. Por outro lado, não é possível crescer e agir humanamente sem pautar a sua vida por valores, assumidos pelo próprio e reconhecidos pela sociedade.
Num segundo patamar, situa-se a responsabilidade de aprender, pelo aluno e pela escola. Sem ela, não existem, nem esta nem aquele. A escola foi sempre uma zona franca para o espírito, um lugar amigável de encontro e descoberta do saber. Mas para isso exigem-se tolerância, abertura de espírito e respeito perante as dúvidas, as diferentes apreciações, os interesses e os ritmos de aprendizagem do outro, cujos limites se situam no dogmatismo, parcialidade, violência e falso consenso.
Por último, é indispensável a liberdade de opinião, método e pensamento. Tal atitude, a valorizar pedagogicamente, é propiciadora de soluções positivas para a resolução da maior parte dos problemas da sociedade. Todavia, a sua plena actualização tem como verso de medalha a solidariedade perante o outro e as regras aceites e sempre em reavaliação.»
J. Esteves Rei. “Quando copiar é uma fraude - Ética no ensino e na aprendizagem”. Correio da Educação. ASA: 17.Junho.2010.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Exames: Três em cada quatro alunos copiam na universidade

Este texto, que pode ser lido no Diário Digital de hoje, só surpreenderá os incautos ou quem viva num mundo tão virtual que não tenha qualquer semelhança com aquele em que vivemos. E quem diz "copianço" pode ainda dizer outras situações de favor para serem obtidos resultados positivos nos estudos, ainda que ambos comunguem da mesma característica - a fraude.
O que espanta é o ar de que tudo isto é normal. Aliás, na continuação da peça, é dito que os alunos não reconhecem o "copianço" como acto ilícito...
Há dias, tive uma prova disso: quando uma aluna tentava obter uma resposta para o teste, perguntando a solução a uma amiga, chamei-lhe a atenção. No final, veio falar comigo, dizendo: "Ó professor, vou ser sincera consigo. Só copiei a resposta X... Pode perguntar a Y..." Apenas comentei: "Porque queres ser sincera se já mentiste, pondo como tua uma resposta que não te pertence?" Ficou a olhar, embasbacada, porque nunca tinha pensado nisso... e eu fiquei a pensar que a sua prática irá continuar!...

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Rostos (143) - No Dia de Camões (e de Portugal e das Comunidades)

Camões, por Euclides Vaz (1969), na Biblioteca Nacional (Lisboa)

Vasco Graça Moura e a língua de Camões

No 10 de Junho comemora-se, entre outras coisas, a obra de Luís de Camões. Não cabe duvidar de que esse seja o propósito formal de Estado e das entidades oficiais envolvidas nos actos comemorativos, nem de que o nome, a figura e a obra do épico sejam automaticamente associados à simples menção daquela data.
Mas o que parece preocupante é o facto de cada vez menos haver em Portugal qualquer espécie de interesse por Camões e por aquilo que ele representa. O nome do autor de Os Lusíadas tende a ser apenas a marca distintiva de um feriado, ambíguo luxo nos tempos que correm, e pouco mais.
As questões da identidade começam por estar relacionadas com a língua materna e esta deve a Camões a sua dimensão moderna. Mas estão à vista as consequências que, para a identidade, decorrem do actual estado de coisas: a língua materna está cada vez mais deteriorada, tornou-se uma espécie de caixote do lixo onde cabem todos os dejectos e, tal como é utilizada e falada, um dia destes mal conseguirá distinguir-se de um mero conjunto de grunhidos comunicacionais.
Nem sabemos pronunciá-la, nem sabemos escrevê-la ou falá-la com um mínimo de correcção. E nem vale a pena falar da situação catastrófica que virá a ser gerada pelo Acordo Ortográfico se este algum dia se aplicar (para já, não está em vigor: o que acontece é que se começa a macaquear nalgumas publicações uma forma aberrante de grafar a língua).
A escola pouco ou nada tem feito para melhorar a situação. Pelo contrário: durante anos e anos, degradada por teorias pedagógicas e linguísticas absurdas, permissiva e frouxa de saberes, autoridade e disciplina, a escola tratou de substituir o trato com os grandes testemunhos da língua, indispensável para ela ser bem falada e bem escrita, por relatórios, bulas de medicamentos e outras coisas assim.
Vivemos numa época de apoucamento da língua, de empobrecimento do vocabulário, de aviltamento de todas as regras de gramática. É também um tempo em que toda a gama de valores que ela transporta consigo (intelectuais, cognitivos, estéticos, expressivos, afectivos...) deixou de contar. Vêmo-la subordinar-se servilmente ao facilitismo e à tecnologia, quando devia contribuir para uma estabilização dos seus paradigmas próprios, procurando equilíbrios permanentes com as tendências que são sinal dos tempos.
É por essas e por outras que os resultados escolares do nosso país, no confronto com as tabelas internacionais, costumam ficar no último lugar de todas as escalas. E em consequência a deficientíssima formação proporcionada por uma escolaridade leviana reflecte-se no geral atraso do país e na sua trágica incapacidade para fazer face aos problemas que tem de enfrentar.
Camões não podia imaginar que a geral incapacidade de aprender e falar correctamente a língua portuguesa explica em grande parte, tanto o insucesso escolar em todas as disciplinas como as restantes maleitas crónicas que nos afectam tão gravemente e não foram erradicadas pela generalização e democratização do ensino. Como explica a terrível ignorância com que os jovens concluem os seus cursos secundários e entram nos cursos superiores. E permite ainda compreender por que razão somos um país que não consegue sair da cepa torta.
Na comunicação intergeracional, também já parece não ocorrer aquela transmissão de um conjunto de princípios, de saberes e de tradições, entre eles os relativos à língua materna, que são elementos integradores da chamada cultura geral e de uma imprescindível visão do mundo transportada e transmitida ao longo do tempo.
Nada disto é novo. Há anos e anos que se discute o que se passa e não se consegue instaurar um conjunto de medidas, a começar pelos programas, que possam reputar-se de eficazes.
Basta trocar umas palavras com qualquer professor universitário para se ver que é assim e que não se sabe de que remédios lançar mão. A doença é muito funda e prolifera desreguladamente. Contribuiu para nos lançar na crise e, o que é pior, não abre perspectivas optimistas para sairmos dela.
O poeta dizia não lhe faltar na vida honesto estudo com uma longa experiência misturado. Hoje, muito poucos podem repetir esta afirmação em causa própria.
A língua de Camões está irreconhecível. Se ele voltasse ao mundo, decerto pensaria em rasgar a sua obra. Deixámos de ser dignos dela.
Vasco Graça Moura. "A língua de Camões?". Diário de Notícias: 09.Junho.2010

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Memória: António Manuel Couto Viana (1923-2010)

Quando, ontem, a meio da tarde, vi uma mensagem de uma amiga a dar-me a notícia da morte de António Manuel Couto Viana, senti a revolta que nos fica quando um encontro adiado acaba por não acontecer porque a vida nos troca as voltas. Não pude estar na apresentação do seu último livro (Ainda não. Lisboa: Averno, 2010), que decorreu em Abril, em Lisboa, um conjunto de poemas maioritariamente autobiográficos, em que se canta o prazer de estar vivo e a alegria da escrita – o último poema do livro, datado do seu 86º aniversário (em Janeiro de 2009), assim celebra na derradeira quadra: “E aceito os 86, / Numa condição, que é: / Tê-los com livros, papéis, / Amizade, amor e fé.”
Não sei desde quando conheço a escrita de Couto Viana. O primeiro contacto pessoal com ele foi no final dos anos 80, através de um amigo comum – o Miguel Castelo Branco. Depois, na segunda metade dos anos 90, tivemos uma aproximação grande por causa da revista Távola Redonda, projecto por que foi responsável, com David Mourão-Ferreira, em que interveio Sebastião da Gama e que assumiu a perspectiva do lirismo como condição da poesia portuguesa, num tempo algo indeciso e conturbado no domínio da escrita e das correntes. Dava-se o caso de eu estar a investigar sobre essa revista para uma dissertação de mestrado e Couto Viana quis acompanhar a evolução do meu trabalho, forneceu-me elementos e aproximou-me de pessoas que também pelo grupo "tavoleiro" tinham passado – Júlio Evangelista e Fernando Paços, sobretudo. Interessado como era na poesia, na sua obra e na cultura, fez questão de assistir à minha defesa da tese, acto que me impressionou pela disponibilidade, pela atenção e pela amizade revelada.
Depois, foram os encontros regulares de visita, com conversas à mesa do café “Ribalta” ou no Teatro Dona Maria, diálogos à volta de gastronomias diversas, momentos sempre dominados pela poesia e pela literatura, muitas vezes intervalados com apresentações de livros ou em conferências, por vezes com os encantos das emoções (como acontecia sempre que me falava da bisneta, nascida há cerca de dois anos).
Couto Viana deu-me o privilégio de construirmos uma amizade com dois pilares muito fortes: a nossa origem de Viana do Castelo e a questão literária. Por isso, tive, ao longo destes anos, a sorte de ser um leitor imediato de alguns dos seus textos e de acompanhar, em pormenor, a sua vida de autor. Personalidade de uma cultura extraordinária, de uma memória infindável, de um sentido de humor invencível, Couto Viana ultrapassou as adversidades ocasionadas por uma saúde irregular – diabetes e a amputação de uma perna, que o limitaram bastante na sua autonomia – através do contacto com os amigos e, sobretudo, por via da escrita, num ritmo quase religioso de poema diário e de leitura intensa. Em todas as vezes que o visitei, havia sempre poemas ou contos ou textos acabados de fazer, que me lia (gostava de se ler) ou, quando mais fatigado, me convidava a ler. Passei boas tardes com a amizade de António Manuel Couto Viana.
Mais recentemente, a partir de 2006, outra causa intensificou o nosso relacionamento: a criação da Associação Cultural Sebastião da Gama, de que se fez associado desde início, sempre estando disposto a testemunhar sobre a poesia desse seu parceiro de letras e de versos que foi o Poeta da Arrábida. Em variadas sessões e actividades promovidas pela Associação pude(mos) contar com a presença rica de Couto Viana.
Fica-me uma saudade grande do tempo em que com ele aprendi. Como me fica o desgosto do tal encontro adiado que não vai poder acontecer. E fica o convite para a leitura da sua poesia, porque, como escreveu no quarto poema de Ainda não, sobre a solidão dos poetas: “Cada poeta sente / Que é uma ilha no mar? / Será um continente / Se alguém o escutar!”
[foto: Couto Viana, em 9 de Junho de 2007, em Azeitão, na inauguração do monumento a Sebastião da Gama, fotografado por Cília Costa]

terça-feira, 8 de junho de 2010

Do Jogo ao Texto - Quando os alunos se encontram com a literatura

Ontem, na minha Escola, foi a apresentação da antologia de textos literários escritos por alunos intitulada Do Jogo ao Texto, alusiva a este ano lectivo, sessão que contou com alguns dos autores a lerem os seus próprios textos e com as intervenções de três grupos musicais participados por alunos da Escola.
Do Jogo ao Texto nasceu há 20 anos, perfeitos em Maio passado. Nessa altura, Maio de 1990, saiu o primeiro volume desta antologia, reunindo colaborações de meia centena de jovens. Depois, anualmente, até 1993, saíram mais três volumes. Dez anos passados, em 2003, surgiu a quinta edição deste projecto. E, volvidos mais sete anos, agora, foi a vez do sexto. No total, até hoje, 430 alunos deixaram palavras de criação neste suporte, em cerca de 400 páginas, alguns deles nunca tendo chegado a pensar que iriam ter o seu nome num livro por edição escolar que fosse.
Ainda agora isso aconteceu: quando enviei um mail aos alunos autores a dizer o que ia acontecer, uma aluna pensou que seria uma piada que o professor estava a fazer e não quis acreditar… e teve de certificar a informação com outras pessoas e, depois, comigo. “Não imaginava ser possível, professor!”
Nutro um certo carinho por este projecto, porque lhe dei início, tendo, nos anos seguintes, passado a responsabilidade de o manter a uma equipa que partia do seguinte princípio: aproveitar os textos de qualidade literária produzidos pelos alunos para que, no final do ano lectivo, houvesse uma antologia dessas mesmas peças. E assim tem sido, com envolvimento de professores, de turmas, da Escola, com entradas pela fruição estética e pelo aprender a desvendar os segredos que a literatura insiste em guardar e revelar.
Por esta selecta passam trabalhos amadurecidos, nuns casos, trabalhos surgidos de repente, noutros casos. Há textos que foram produzidos, revistos, demoradamente elaborados; há textos que surgiram em momentos especiais, como em testes ou trabalhos feitos na lufa-lufa das aulas. Há textos individuais e textos colectivos, uns e outros agora dados à partilha. Todos valem pela criatividade, pela mensagem, pelo tema, pelo esforço, pela experiência, pela estética.
A edição deste ano aloja 60 páginas por onde passam poemas e prosa, diários simulados, cartas a personagens, continuações de textos literários lidos em aula, recriações sobre a vida, sobre o amor, sobre a felicidade e sobre as dores, em português, em inglês e em moldavo.
É uma gota, eu sei. Mas que valeu a pena pelas alegrias que transpareceram nos rostos dos alunos ao lerem-se e ao lerem o que os outros escreveram. E também nos olhares dos pais que, na tarde de ontem, assistiram à apresentação.
A edição deste ano lectivo, a sexta, teve ainda a colaboração de uma dezena de professores e da Câmara Municipal de Palmela, através do Programa de Apoio a Projectos de Escola.

OS ROSTOS DAS EDIÇÕES ANTERIORES

Capas de Do Jogo ao Texto, de 1990, 1991 e 1992

Capas de Do Jogo ao Texto, de 1993 e 2003

domingo, 6 de junho de 2010

Apresentação do cd "Sebastião da Gama - Meu caminho é por mim fora"

O final da tarde de ontem teve, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal, a apresentação pública do cd "Sebastião da Gama - Meu caminho é por mim fora", produzido pela Associação Cultural Sebastião da Gama, projecto em que intervieram as vozes de Célia David, José Nobre, Fernando Guerreiro, Maria Barroso e Maria Clementina, a música de Rui Serodio e o trabalho de montagem e de grafismo de Jorge Calheiros.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Memória: João Aguiar (1943-2010)

O escritor João Aguiar interrompeu um livro que estava em escrita e partiu. Vários dos seus livros me impressionaram, mas deixei-me fascinar por A voz dos deuses – Memórias de um companheiro de armas de Viriato, obra publicada em 1984 (que só nesse ano teve quatro edições e, volvida uma década, teve adaptação a banda desenhada), romance histórico que nos coloca num tempo algo mítico, perante personagens não menos míticas, mas próximas pela sua humanidade.
Dos sublinhados de então, ficou-me, por exemplo, esta frase que Lobessa dizia a Tongio: “É incrível como os homens andam depressa quando pensam em guerra e em saque.” Coisa que já sabemos o quão perniciosa é há tanto tempo, mas que se mantém como prática...
Recentemente, consegui transmitir algum do fascínio da escrita de João Aguiar a alunos meus através desse conto que é “Verba volent, scripta manent”, inserido no primeiro volume de Prazer da Leitura (Lisboa: FNAC / Teroema, 2008). Até hoje, li esse conto a várias turmas e em todas o prazer de ouvir a história do jovem Gonçalo que acaba a encontrar-se na biblioteca do primo Jeremias foi notório. Como o título da narrativa recorre ao latim, há que o explicar, mas, antes disso, tenho pedido aos alunos que, de acordo com o ouvido, atribuam um título ao texto. E recordo a prontidão com que o Pedro, meu aluno em 2008, respondeu: “Castigo encadernado”.
Continuarei a ler João Aguiar nos romances históricos e nas crónicas que deixou e continuarei a passar o exemplo da personagem Gonçalo, que descobriu o fascínio da leitura num mundo onde não havia computadores, telemóveis, televisões, onde estava envolvido pela Natureza e por uma biblioteca de segredos.

terça-feira, 1 de junho de 2010

José de Almeida - O golfinho chamado Fábula

“Estava um dia o Juca na sala, a ver televisão, e os seus olhos começaram a fazer pisca-pisca. Era sábado e ele estava há quatro horas a olhar para os desenhos animados. Tão cansado estava que não resistiu ao sono que insistia em enroscar-se em volta dele. Até que adormeceu a sério. Logo que adormeceu, começou a sonhar… Um sonho lindo a cores!” Esta é uma forma perifrástica de dizer o clássico “era uma vez”, vocacionado para levar o ouvinte – neste caso, o leitor – para o reino da imaginação, acompanhando o sonho do Juca.

É o início da história infantil Fábula – O pequeno golfinho roaz, de José de Almeida (Setúbal: ed. Autor, 2010), obra que contém ilustrações feitas por Marta Tomé, jovem leitora da narrativa, e que foi apresentada publicamente no Dia Mundial da Criança com Cancro.

O conto acompanha Juca, numa viagem pelo mar, em busca do golfinho roaz chamado Fábula, personagem irrequieta, habilidosa e brincalhona. Nesta demanda, Juca sai de barco, a bordo da traineira “Milú”, na companhia de pescadores como o Mestre Afonso, o Zé Navalhas ou o Baltasar, para, depois, mergulhar e encontrar amigos como a Dona Sapateira, a Dona Alforreca, o Senhor Carapau ou a Dona Lula, que lhe vão falando do mar e do feitio de Fábula.

Num espaço limitado pelo Cabo Espichel, ponto em que um golfinho começa a seguir o barco, e pela Caldeira, parque de diversão onde Fábula comete as suas acrobacias, o mar vai-se revelando a Juca, que também vai observando aquilo que ao oceano vai tirando beleza, vivendo a descrição também com objectivos pedagógicos – “Enquanto nadava, o menino reparou numa coisa horrível. O fundo do mar estava um nojo com tanto lixo que tinha. Eram latas, garrafas de vidro, ferros ferrugentos, sapatos velhos, eu sei lá que mais. Como se pode preservar o mundo marinho com estes comportamentos? Quem teria atirado aqueles objectos para o fundo do mar? Esta colónia de golfinhos-roazes não merece e tem de ser defendida por todas as crianças e adultos…”

O desejo impossível de Juca é ter o Fábula dentro de um vasto tanque de vidro para que as crianças o possam ver brincar, algo que aflige o golfinho, mas que Juca contorna – depois de uma temporada, serão os meninos quem virá brincar para junto da colónia de roazes, assim aprendendo a conhecer o mundo da Natureza. E, quando o acordo estava prestes a ser celebrado, eis que… como acontece nos sonhos das felicidades de cada um, Juca é acordado pela mãe, que o encontra deitado no sofá, adormecido. Fica-lhe a aprendizagem da beleza dos roazes do Sado e o sorriso sobre o espectáculo que quase lhe foi dado viver…

A linguagem acessível, o recurso à personificação, as ilustrações com traço infantil e a estrutura simples da história bem fazem deste texto de José de Almeida um sonho afável, que abre as portas para o convívio com a Natureza e com o mundo que nos rodeia.