Um Papa alemão na tormenta
"... compreendamos, acima de tudo, que o Evangelho fala sempre da Igreja como de uma Igreja de pecadores, o que é justamente o seu rasgo específico" - cardeal Ratzinger in Deus Existe?
Que apenas meio século após o holocausto a Santa Igreja católica, apostólica e, sobretudo, romana, tenha eleito um papa de nacionalidade alemã, ainda espantou um mundo onde ninguém se espanta com coisa nenhuma. Muitos se escandalizaram, então, menos por considerações duvidosas, quase racistas, do que pelo perfil e reputação teológico-pastoral do novo eleito, o cardeal Ratzinger, com vinte anos de chefia à frente do dicastério, guardião da ortodoxia, da Propaganda Fide.
Quando se pensa que desde os tempos de Carlos V, até João Paulo II, só um Papa não fora italiano (Adriano VI), esta nova eleição de um "estrangeiro" era, já em si, uma surpresa e quase um milagre. A opinião católica e a do mundo tinham de lhe reservar um acolhimento e uma atenção à altura de uma tal surpresa.
Em breve o lado teutónico foi esquecido. Suave, delicado, grande intelectual, o novo Papa que sabia não poder contar com o efeito mediático de João Paulo II, nem fazer esquecer "o bom" Papa João XXIII, mau grado algumas intervenções no tabuleiro político, ou assim tido na óptica profana, que suscitaram reacções ofuscadas, conseguiu fazer esquecer que era alemão e tivera o magistério da disciplina e vigilância da Igreja. Duas encíclicas encontraram um eco atento nos meios intelectuais católicos e, para além deles, em gente que não esperaria dele textos teológico-proféticos, como os de alguns dos seus famosos predecessores. Tranquilamente, esse grande teólogo e filósofo, a par do movimento de ideias da sua pátria, relembrou na ordem da exegese, e em termos originais relativamente à tradição, a leitura da mensagem cristã como Amor, renovando-a na sua semântica, ao ter em conta os laços estruturais entre Eros e Agape. Sem audácias provocantes, um pouco na senda e como eco a um célebre ensaio de Anders Nygren, com esse título. O mesmo fará na revisitação e explicitação da doutrina social da Igreja, o que surpreendeu - dentro e fora dos meios católicos - gente que há muito o tinha catalogado - nessa matéria em particular, mas também nos domínios da ética e dos costumes - como um dos Papas mais conservadores, uma espécie de Pio IX redivivo. O que é totalmente inexacto.
E de súbito, como em simetria com a crise do Ocidente na ordem profana (economia, política e ética), sofrida pelo comum dos mortais como uma ameaça e um desafio ainda em curso ao tipo de civilização que é a nossa, abate-se sobre a Igreja uma espécie de vendaval ético-histórico, ampliado pelo mediatismo planetário, senão de todo inédito (antes pelo contrário), o mais apto para atingir a Igreja instituição e a feri-la, não no coração da sua mensagem, mas na imagem que a define e caracteriza a sua missão "exemplar".
Em nada, a título pessoal, Bento XVI tem a ver com esse escândalo, por ele mesmo descrito e sofrido como tal, mas foi sobre ele, sucessor de Pedro, que caiu o reflexo profano, mundano, desse fait-divers que não se parece com nenhum outro. É uma injustiça objectiva e ninguém o saberá melhor do que ele. A Igreja não é nenhuma barca angélica. Está no mundo e pertence ao mundo. Não existe para impedir o mundo de passar mas para santificar o mundo que passa. De resto, já tem no seu fundador o mais incontornável dos juízes.
O drama - humano, social, ético e simbólico -, com que a Igreja se viu e vê confrontada e a que o actual Papa teve de fazer frente com determinação e humildade possível, pertence justamente àquele domínio do "oculto", para não dizer do recalcado, que conferiram precisamente à mesma Igreja onde ela foi - e é ainda - a instância não apenas religiosa e ética condicionante e sancionante dos desvios ostensivos dessa ordem, um papel capital. Em termos simples, e antes da era Freud - curiosamente também em vias de contestação clamorosa - esses entorses à prática ética, subdeterminada pelo continente submerso ou visível daquilo que é tido como "pecado" numa perspectiva que, sendo religiosa, é mais do que isso, fez da Igreja durante séculos "o confessionário" colectivo diante de quem se exorcizavam os "pecados" do mundo, os dessa ordem e sobretudo e, ao mesmo tempo, a instância do perdão e da remissão.
Claro que hoje e, em particular, neste Ocidente descristianizado as coisas não se passam assim. Como a Igreja, os confessionários conhecem os efeitos dessa desertificação religiosa. A massa indiferente dos cidadãos até pode receber com alívio ou júbilo este percalço espectacular da velha Igreja, instituição impecável que perdoa os pecados do mundo, revestindo à força, e dolorosamente, o estatuto de "pecaminosa", ela que é, histórica e simbolicamente, a expressão sublimada da consciência da humanidade como pecadora e ao mesmo tempo instrumento da sua redenção.
Numa óptica assumidamente profana, tudo se passava (ou passa) como se a Igreja julgasse o mundo e o mundo não a pudesse julgar. Ainda - pelo menos para quem nasceu e foi educado no seio da Igreja e com referência aos seus valores míticos - ou mitificados - não se é facilmente indiferente e menos ainda cinicamente espectador de um drama tão doloroso como o que engloba ao mesmo tempo as vítimas dele e os que dela abusaram sendo os guardiões não apenas de uma fé, como da sua mera dignidade humana. Claro que esse "drama" é universal, porventura o terá sido sempre. Mas desse "drama", sem sujeito próprio, o que importa no contexto cultural do Ocidente em especial - e não só - é que uma instituição tão singular - e para muitos de nós referência única na luta pelo combate pela definição do destino espiritual e cultural da humanidade - como a Igreja esteja vivendo esse vexame e essa agonia com uma provação misteriosa. E quem sabe como uma revisitação e rasura futurante de clamorosas quedas históricas da sua vocação redentora que continuam como um espectro a ensombrar a mensagem de luz onde o Evengelho nasceu. Em visita a este velho país cristão, Bento XVI, no centro de um drama que tem exorcizado, não sem coragem, não terá aqui, como o poderia ter em outros espaços, nem comentários sarcásticos, nem exaltações perversas de quem contempla a barca de Pedro outrora em excesso triunfalista, num mau passo. Apenas votos para que essa barca passe para a outra margem de si mesma, como o Mestre a convidou.
Lisboa, 9 de Maio de 2010 - Eduardo Lourenço
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