Para este Dia Mundial da Poesia, António Osório escreveu a mensagem que reproduzo, divulgada pela Sociedade Portuguesa de Autores. Vale a pena lê-la, olhando o mundo em que estamos.
'A poesia é ainda possível'? Montale, no discurso em que recebeu o Prémio Nobel de 1975, interroga-se sobre o papel que pode ter 'a mais discreta das artes', num tempo em que 'o homem civilizado chegou ao ponto de ter horror de si próprio'. Montale deixou-nos uma palavra de esperança – para a poesia 'que surge quase por milagre e parece condensar toda uma época', 'para essa poesia não há morte possível…'.
Mais de 30 anos passaram. Não haverá agora maiores motivos para se ficar inquieto quanto ao futuro? O mundo actual não é bem pior que o de 1975? Os drogados, a sida, os alunos que desrespeitam e agridem os professores, a brutalização da Europa, a crueldade recíproca entre árabes e judeus, o terrorismo internacional, as infindáveis guerras, a crise financeira que se apossou do mundo, tudo isto não são formas tenebrosas de desprezar a vida e a poesia?
Por outro lado, avulta o triunfo da 'mediocracia' e dos best sellers do sexo (La vie sexuelle de Catherine M. chegou aos 350.000 exemplares em França e foi traduzida em vinte línguas, a portuguesa inclusive, e, note-se, era um editor respeitável, as Éditions du Seuil…).
Mutatis mutandi, o mesmo se passou e passa entre nós. Os livros dos 'ases' do futebol e da televisão, que colhem fortunas …
Em contrapartida, as edições de poesia sofrem acentuada diminuição das tiragens. Os jovens universitários lêem cada vez menos, trocando a poesia, quando a trocam, pela 'prosa' multimilionária…
Repare-se no que ocorre com a televisão, o deus ex machina. Quando aparece a poesia, e só muito raramente aparece, vem longe dos ditos 'horários nobres'. E as páginas literárias estão acabando tristemente, o que conta é o futebol e as revistas do coração…
Que fazer contra esta maré negra, contra esta ocultação da poesia?
Infelizmente, ninguém vê hoje o poeta como o via Platão – 'uma coisa leve, alada e sagrada'. Os poetas são agora uns estranhos párias, uma espécie de sonhadores que andam nas nuvens.
A defesa da poesia cabe aos poetas. Muito tem resistido, têm que resistir mais ainda.
A experiência diz-me que as leituras de poesia nas escolas e nas universidades, pelos próprios poetas, o diálogo que tem de estabelecer com os alunos seus ouvintes é uma das melhores formas de humanizar o poeta e de chamar o interesse para a poesia que faz. E não se devem limitar estas leituras ao próprio país… Graças a Eugénio Lisboa e Patrick Quillier, fui primeiro traduzido para inglês e francês – e em Inglaterra e em França convivi com centenas de alunos.
Não basta o esforço isolado do poeta. O confinamento ao seu próprio país também lhe é nefasto.
Há menos de 20 anos, quantos poetas portugueses contemporâneos eram conhecidos no Brasil ou em Espanha? Impõe-se a ajuda crescente da Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas, e do Instituto Camões.
Não tenhamos dúvida sobre a nossa poesia actual. Ángel Crespo, um dos maiores lusitanistas e grande poeta, na sua Antologia de Poesia Portuguesa escreveu que 'la poesía portuguesa contemporânea muestra … una variedad tal de enfoques e soluciones que hacem de ella una de las mas significativas de nuestro tiempo'.
Tão-pouco nos devemos confinar a uma ironia sarcástica contra um mundo cruel.
Sem dúvida, a poesia terá de ser um 'refúgio' contra a voragem tecnocrática, contra o desrespeito pela beleza do mundo, contra a destruição da paisagem. Os seus são os valores da vida, a poesia é, como Croce sempre defendeu, a 'palavra cósmica', uma forma de não se submeter, mas de se indignar, de estar ao lado dos humilhados, uma afirmação humanista.
Retenhamos estas palavras de Rainer Maria Rilke, nas suas Cartas a um jovem Poeta: 'ser artista é amanhecer como as árvores, que não duvidam da própria seiva e que enfrentam tranquilas as tempestades da Primavera, sem recear que o Verão não chegue'.
Teremos de ser como elas, que não põem em causa a própria seiva e que resistem às tempestades da Primavera. Contra o desprezo pela poesia, oponhamos a nossa perseverante defesa. E ofereçamos os nossos livros, com um gesto fraterno.
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