O discurso de José Saramago continua a surpreender e a
apanhar-nos na sua postura crítica e de pensamento, agora com a edição de A estátua e a pedra, em português e em
castelhano (Lisboa: Fundação José Saramago, 2013). O texto foi inicialmente
oral, proferido em Maio de 1997, na Universidade de Turim, num encontro sobre a
cultura portuguesa. À medida que o discurso ia fluindo, um gravador
encarregava-se de perpetuar a mensagem, depois passada a escrita, agora dada a
ler a mais vasto público (houve uma edição em Itália em 1999). O texto dito em
Turim teve entretanto actualização, uma vez que Saramago refere nesta edição
obras posteriores à data desse encontro.
O título escolhido por Saramago remete-nos para Vieira
e lembra aquela belíssima imagem do canteiro que vai esculpindo a pedra,
dando-lhe forma, até a transformar numa imagem que até pode ser de um santo. No
entanto, aqui, o que Saramago propõe é o discurso ao contrário, da figura para
a matéria-prima, num percurso autorreflexivo, debruçando-se sobre a sua própria
obra, o que nos obriga a considerar este um texto importante para a leitura da
narrativa saramaguiana.
Romance histórico, o meu?, parece perguntar o autor de
Memorial do Convento no início da sua
comunicação, adiante recusando o epíteto, uma vez que os romances históricos
são “tentativas de reconstituição de uma época e mentalidade determinadas, sem
qualquer intromissão do presente (à excepção da linguagem), onde o autor finge
ignorar o seu tempo para colocar-se no momento do Passado que pretende
reconstituir” e o seu caso se apresenta diverso – “uma ficção sobre um dado
tempo do passado, mas visto da perspectiva do momento em que o autor se
encontra, e com tudo aquilo que o autor é e tem: a sua formação, a sua
interpretação do mundo, o modo como ele entende o processo de transformação das
sociedades.”
É neste último aspecto que Saramago insiste ao longo
de toda a conferência, procurando comprometer os seus títulos com o seu pensar
sobre o homem, sobre o mundo, sobre o outro, sobre o processo histórico, sobre
a actualidade. Passo a passo, vai desfiando o rol dos seus títulos desde Manual de pintura e caligrafia (1977),
com passagem por Objecto quase
(1978), Levantado do chão (1980), Memorial do convento (1982), O ano da morte de Ricardo Reis (1986), A jangada de pedra (1986), História do cerco de Lisboa (1989), O evangelho segundo Jesus Cristo (1991),
Ensaio sobre a cegueira (1995), Todos os nomes (1997), A caverna (2000) e O homem duplicado (2002).
Ao longo da comunicação, há imagens fortes para lá da
força da estátua e da pedra, como a da metáfora da espuma marítima que rebenta
sobre a areia, uma imagem que mostra sermos “nós a espuma que é transportada
nessa onda”, chegada porque “impelida pelo mar que é o tempo, todo o tempo que
ficou atrás, todo o tempo vivido que nos leva e nos empurra”; há as pequenas
histórias associadas ao aparecimento dos romances e a afirmação da ausência de
heróis nas suas obras, que pretendem “contar a vida das pessoas que não entram
na História”; e há a teorização de que o percurso dos seus romances se divide
em duas partes – a primeira, até O
evangelho segundo Jesus Cristo, associada à figura da “estátua”, que outra
coisa não é que a “superfície da pedra”, e a segunda, a partir de Ensaio sobre
a cegueira, a da “pedra”, que pretendeu entrar “no mais profundo de nós mesmos”,
numa “tentativa de perguntar o quê e quem somos”.
O livro inclui ainda textos de Giancarlo Depretis,
académico de Turim, a contextualizar esta comunicação, de Luciana Stegagno
Picchio, a evocar esse momento da conversa de Saramago, e de Fernando Gómez
Aguilera, a fechar, que aplica a metáfora de Saramago sobre o percurso da sua
obra, estendendo a análise até Caim
(2009), com visitação ainda às obras Ensaio
sobre a lucidez (2004), As
intermitências da morte (2006), As
pequenas memórias (2006) e A viagem
do elefante (2008), concluindo que, para este autor, era “imprescindível
uma revolução ética que, reivindicando o valor supremo da bondade, reconhecesse
como única prioridade o ser humano”.
A estátua e a
pedra torna-se um título
indispensável para o leitor de Saramago, uma quase autobiografia do seu
percurso no romance, que o conta, o analisa e o reinventa.
Sublinhados
Verdade e História – “A verdade na História não está
num lugar acessível, onde se possa chegar com facilidade.”
Gente e História – “Na História, iluminada com
documentos e certificada com selos, dificilmente encontraremos a gente comum, a
que parece que apenas tem existência para sofrer os avatares que outros
decidem.”
Crueldade – “Nenhum animal é cruel, nenhum animal
tortura outro animal (…). Torturar e humilhar os seus semelhantes são invenções
da razão humana.”
Esquecimento – “Esquecer é a morte definitiva.”
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