quarta-feira, 8 de junho de 2022

Memórias e aprendizagens de Violante Saramago Matos


 

“Sou filha de gente grande. Entre o orgulho que tenho no que eles foram e o medo de eu falhar, tive de aprender a ser eu, para além de ser filha de gente grande. E sempre gostei, e também precisei, de os ouvir.” Assim conclui Violante Saramago Matos (n. 1947) o seu livro De memórias nos fazemos (Edições Esgotadas, 2022), título que revela o conteúdo - momentos e aprendizagens definidores da identidade -, confessando a influência consentida recebida dos pais, ambos “gente grande” - Ilda Reis (1923-1998), pintora, e José Saramago (1922-2010), escritor.

Em quase meia centena de pequenas crónicas, a autora vai encontrando os fios que a ligam à memória dessas aprendizagens (e incorporações), num processo ajudado pela própria escrita, pois, “é certo que, quando escrevemos, arrumamos ideias, obrigamo-nos a torná-las percetíveis, num esforço para encontrar as palavras certas, as que queremos escrever”, em textos que pretendem também testemunhar - “aqui fica muito do que aprendi com ele, que é alguma coisa do que lhe cheguei a dizer.”

Se a faceta do escritor Saramago perpassa por estas páginas, a verdade é que os registos da filha tentam mostrar o equilíbrio com a figura paterna - “para além do pensador e do escritor, sempre tão justa e condignamente recordado e reconhecido, houve um pai. Com quem vivi os primeiros vinte e três anos de vida. Que me ensinou a ‘ler’ (...). Que me chamou várias vezes para conversas sérias e inesquecíveis. Que me apoiou, quando foi preciso. Que, sem retóricas nem palmadas, me ensinou valores e princípios.” -, aspecto reforçado com a reprodução de três mensagens escritas do pai para a filha no final do volume.

As aprendizagens que ficaram advêm de momentos que marcaram pela simplicidade ou pela situação vivida - a necessidade de se informar para fazer um trabalho estudantil (combatendo os “especialistas de sofá”), o encorajamento para retomar o caminho após um acontecimento grave, os primeiros livros oferecidos pelo pai (de Selma Lagerloff e de Edmundo de Amicis), a descoberta do inconformismo, o afecto pelo tacto ou pela presença, o “olhar para o interior das aparências”, a grandeza das pessoas, a capacidade para resistir (notável é o momento em que, presa em Caxias, em 1973, Violante Matos recusa o pagamento da caução, o que levará o pai a dizer-lhe: “Então, tens que ir buscar forças, nem que seja ao dedo grande do pé!”).

As visitas à Azinhaga e ao rio Almonda, pontos de origem de Saramago, preenchem também o imaginário e a escrita de Violante Matos, seja pela necessidade de uma consciência ecológica, seja pela reminiscência vinda dos tempos da “avó Zefa”, tratamento carinhoso dado a Josefa Caixinha, avó de Saramago, ficando o registo de indignação quanto à reconstrução da casa de origem - “A casa foi fechada. Quem ficou com ela, destruiu-a. (...) Ou quis mostrar que, com o dinheiro que tinha, faria melhor. Não fez! Fez uma jóia de exibicionismo, apenas, e já agora de mau gosto.” Geografia também obrigatória é Lanzarote, ponto de conversas e de revelações, encontro de adultos que mutuamente se admiram.

O livro contém uma segunda parte ligada às memórias das releituras dos livros de Saramago, em mais fundos mergulhos. Nem todos merecem texto autónomo, mas por aqui passam os que mais impressionam a autora, destacando-se A caverna (2000) por uma razão pessoal - “este é um livro em que revejo muito da ligação com o meu pai”. 

Em ano de centenário saramaguiano, estas memórias são um bom contributo para o conhecimento do homem que alimentava o escritor.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 865, 2022-06-08, p. 10.


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