“Envia-me cartas” é a
exposição de fotografia de Raul Reis que está em mostra na Casa da Cultura, em
Setúbal, até 5 de Setembro. Poucos dias até ao final, pois. E, se o leitor
ainda por lá não passou, aproveite os dias que restam. Vai confrontar-se com
umas dezenas de fotografias de caixas de entrada de correio, centradas naquela
pala bem conhecida que servia como gps dos carteiros, indicando “cartas”.
Sabemos que as caixas de
correio de hoje são sobretudo virtuais e que aquelas que têm existência física
nas portas das casas ou dos prédios jazem silenciosas e abandonadas por muito
tempo (condizendo com o abandono de muitas edificações) ou servem para receber
apenas as notas fiscais e as facturas de serviços... Já não são alimentadas de
emoções e de histórias, já não adquirem marcas de aproximação entre humanos.
Como escreve o setubalense Raul Reis na nota introdutória ao livro que
acompanha a exposição (objecto belo e recomendado), essas caixas de correio com
a palavra “cartas” empurram-nos “para as reminiscências de um tempo passado -
aquele em que os sentimentos eram deixados no papel”. Quase como se de
narrativas se tratasse...
Mas Raul Reis alargou o âmbito
da sua exposição ao público, tendo criado sítio adequado na net, em que cada
visitante podia escolher a fotografia de uma das caixas de correio e
escrever-lhe uma carta. E assim surgem disponíveis para o público visitante 32
cartas com destinatários múltiplos - amigos, familiares (avó, pai, filhos),
amores, locais, etc. E, no final da exposição, o visitante pode escolher entre
32 postais que numa face exibem a respectiva porta e caixa de correio e na
outra a carta que lhe foi dirigida. Pode escolher e pode trazer. Uma, duas,
três ou todas as portas e todas as cartas, que ali estão para oferta.
E, nos escritos que ali surgem
reproduzidos, há para todos os gostos e tipologias, como se imagina. Desde o
mais elaborado ao mais simples, do mais loquaz ao mais reservado, do mais
metafórico ao mais imaginativo, do mais pessoal ao mais colado a um momento
histórico. Refiro alguns exemplos, entre vários que poderia escolher: escreveu
Filipe Lourenço que “as cartas são pessoas com selos na ponta da língua”, bela
imagem que carrega todo um historial ligado ao gesto de escrever e enviar uma carta;
Marco Dias aproveitou o momento histórico e enviou missiva a Donald Trump, em
tom sarcástico e de medição de forças em nome da humanidade, contendo uma praga
rogada; Susana Albuquerque escolheu Lisboa como destinatária, escrevendo desde
Madrid e concluindo a sua mensagem com uma declaração de amor - “querida
Lisboa, se eu pudesse, vivia em todas as boas cidades do mundo só para
descobrir tudo o de que eu gosto mais em ti”; Tiago Gonçalves optou por uma
carta aos filhos, que fecha a declarar-lhes que “devia poder mandar fazer uma
gaiola para guardar os vossos sonhos”.
Há, contudo, uma carta que se
me apresentou como preferida. Com autoria de NQ, estabelece uma relação entre
Lino Nossa, 2º Sargento do CEP (Corpo Expedicionário Português) na Flandres em 9 de Abril de 1918, e Celeste,
que ficara em Portugal, a quem o combatente promete casamento se regressar ao
seu país. É uma carta apócrifa que bem poderia ser verdadeira e que dá a noção
do sofrimento e da dor nas trincheiras na Grande Guerra - mesmo neste contexto
o valor da metáfora é extraordinário ao referir que a guerra é “um purgatório
em vida”.
Ao leitor caberá descobrir
outras mensagens, outros segredos, outras sublimes frases em cartas que não
entrarão em caixas de correio mas que estão ao dispor nesta exposição, que é
quádrupla: a dimensão das fotografias de Raul Reis, a dimensão das cartas de 31
autores (há dois textos de uma autora), a associação das cartas às fotografias
nos postais, o mundo das caixas de correio em livro (Envia-me Cartas / Send Me Letters. No Frame Publishing, 2017). Vale a pena!
Refira-se ainda que “Envia-me cartas” é a primeira
fase de um projecto em trilogia designado “A Cidade está Deserta”. E como, em
nota final, Raul Reis revela, “Envia-me Cartas” é a parte em que “se explora a
nostalgia dos objectos que perderam o seu significado original”. Uma reflexão
sobre a cidade, sobre a vida, sobre a actualidade. A ver!
Carta de autoria de NQ, emprestando o momento a um combatente do CEP em 1918
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