sábado, 6 de dezembro de 2014

Grandes entrevistas da História, com o "Expresso" (4)



As dez personagens reveladas no quinto volume de Grandes Entrevistas da História (em publicação a cargo do semanário Expresso), que abrange o espaço temporal entre 1971 e 1990, são: Margaret Thatcher (Terry Coleman, The Guardian, 02-11-1971), Stanley Kubrick (Gene Siskel, Chicago Tribune, 13-02-1972), Yasser Arafat (Oriana Fallaci, Intervista con la Storia, 1974), Álvaro Cunhal (Oriana Fallaci, L’Europeo, 06-06-1975), Amália Rodrigues (Miguel Esteves Cardoso, Se7e, 24-11-1982), Pablo Escobar (Yolanda Ruiz, RCN Radio, 1988), Steve Jobs (Bob Burlingham e George Gendron, Inc., 04-1989), Jack Nicholson (Gene Siskel, Chicago Tribune, 12-08-1990), Luciano Pavarotti (Màrius Carol, Magazine, 02-09-1990) e Ayrton Senna (Gerald Donaldson, McLaren, 09-1990).
Na entrevista com Amália, além de surpreender o tom de abertura e de rapidez com que a conversa se desenrola, é ainda de enaltecer o formato de texto devido a Miguel Esteves Cardoso, perguntas e respostas segmentadas em dez partes, cada uma delas tendo como título um mandamento, resultante do conteúdo e da dose de revelação que surge nas respectivas respostas. Uma estratégia coerente, pois que o jornalista se metaforiza em profeta, logo no início do texto: “A partir de hoje, podem chamar-me Moisés. Subi à montanha de São Bento e a Deusa falou-me e transmitiu-me os seus Mandamentos. Agora esculpo-os numa pedra. Numa pedrada de divindade e de Fado.” A entrevistada surge em diálogo com as marcas que já lhe eram habituais, sem certezas, mas num tom pessoal expressivo. Cantora ou fadista? “Nem uma coisa nem outra. Não sei se sou fadista, se não sou. Era pequenina e cantava. Um dia disseram-me que aquilo era fado. Disseram-me que era fado… mas eu não faço questão.” Falará das músicas, de trivialidades, de histórias, da simbologia que lhe foi atribuída, de poemas e do que de si ficará para a memória: “Sim, vai em mim essa pieguice, de querer continuar nas pessoas. A coisa mais bonita que podem dizer de mim, depois de morta, seria ‘Coitadinha da Amália, já morreu…’! ‘Tadinho’ é uma das palavras mais portuguesas, gosto muito dela. Tenho essa pieguice porque sei que, depois de morrer, o universo acaba comigo.” E, no final, um humor brilhante: Esteves Cardoso quer inverter os papéis e, em vez de lhe pedir uma mensagem final: “A senhora quer fazer a última pergunta?” Resposta imediata, certeira: “Obrigada, mas não pergunto nada, com medo das respostas.”
O outro português entrevistado nesta obra, Álvaro Cunhal, deve a sua entrada ao trabalho da jornalista italiana Oriana Fallaci. É uma entrevista dura porque Fallaci assume contestar muitas afirmações de Cunhal, que profere afirmações polémicas do ponto de vista político (que, aliás, mereceram muitas reservas em várias latitudes, depois de conhecida a publicação) e mantém um secretismo assumido quanto à sua vida pessoal. A entrevista tem uma longa introdução, que a autora preparou para a integrar no seu livro Intervista com la Storia, em que o político português é retratado e biografado, numa tentativa de explicação da personagem, chegando Fallaci a interpretar o silêncio sobre o privado como o “gosto pelo mistério [que] surgiu em consequência do seu passado como conspirador e, também, da tal renúncia que é tão típica de alguns comunistas”. Cunhal mostrou convicções que, lidas hoje, acentuam as marcas epocais no vocabulário usado – “nós, comunistas, não aceitamos o jogo das eleições”, já que elas “pouco ou nada têm a ver com a dinâmica revolucionária”; “garanto-lhe que em Portugal não haverá um Parlamento”; “Portugal já não tem qualquer hipótese de estabelecer uma democracia ao estilo das que vocês têm na Europa ocidental”; “o 25 de Abril não foi um golpe (…) foi um movimento de forças democráticas no seio do Exército”; “Portugal não será um país com as liberdades democráticas e os monopólios, não será companheiro de viagem das vossas democracias burguesas”. Assumiu a sua concordância com a intervenção soviética na Checoslováquia, a frontalidade com que respondeu ao embaixador americano sobre a permanência de Portugal na NATO, dizendo-lhe: “por agora, não queremos discutir esse problema”. Em vários momentos, a conversa mais parece um jogo de fuga: Fallaci quer saber de onde veio Cunhal quando chegou a Portugal em 1974 e a resposta mostra-se evasiva  –  “Não lhe digo onde estava. Vocês, os jornalistas, gostam tanto do  mistério como nós, os comunistas”; noutro passo, a jornalista insiste com a ideia do “imperialismo soviético” e a refutação surge sob a forma de alteração das regras – “Um dia hei-de entrevistá-la a si acerca do imperialismo soviético”.
De Oriana Fallaci é ainda a entrevista com Arafat, outro encontro em que as respostas constituem um enigma sobre a personagem. Uma parte significativa do texto, no início é a reconstituição possível da história do líder palestiniano nascido egípcio, que, na conversa, rejeitas várias vezes responder a perguntas sobre a sua vida pessoal e centra o discurso num jogo em que foge, frequentemente, ao que lhe é perguntado, mais interessado na luta contra Israel – “só agora começámos a preparar-nos para o que será uma longa, longuíssima guerra, uma guerra destinada a prolongar-se por gerações”; “deve perguntar até onde poderão resistir os israelitas, porque não pararemos até ao dia em que possamos regressar a casa e tenhamos destruído Israel”. A própria jornalista é vista como uma representante dos adversários e é desafiada – “Se têm assim tanto interesse em dar uma pátria aos judeus, dêem-lhes a vossa. Há muita terra na Europa, na América.” E termina o diálogo com uma quase confissão: “Nunca encontrei a mulher certa. E agora não é o momento. Casei-me com uma mulher chamada Palestina.”
O universo da política tem ainda encontro com Margaret Thatcher, numa entrevista dominada pelos acontecimentos do momento, a do leite nas escolas, apoio cortado pelo governo, e pela imagem que da governante se faria. Ressalta uma figura enérgica, contrapondo às marcas negativas do seu retrato as decisões tomadas em prol das melhorias, às questões mais problemáticas uma explicação que finda com a pergunta “não é?”, ao mundo das dificuldades o seu próprio percurso, aos comentários dos adversários uma certeza – “os insultos dizem mais sobre quem os profere do que sobre quem é alvo deles, não é?”
Pretendendo ter intervenção política, sobretudo pelo condicionamento que fez nessa área, surge Pablo Escobar, o colombiano que associou o seu país ao narcotráfico, com um discurso que, conjugado com o que se sabia e se veio a saber sobre o entrevistado, configura situações de vitimização, de paradoxo, de representação, de discurso para tratar a imagem perante o seu país e o estrangeiro – “sou uma pessoa que respeita muito as ideias alheias”; “sempre estivemos abertos ao diálogo e pessoalmente considero que a falta de diálogo é a causa principal da violência no país”; “existe uma preocupação com o consumo de drogas”; “as drogas vieram para ficar”; “todas as pessoas acusadas publicamente de pertencer ao narcotráfico são, na verdade, as únicas pessoas que investem no país, isto é, as únicas que dão trabalho ao povo da Colômbia”.
Do mundo do cinema, o encontro é com um realizador, Kubrick, numa entrevista curta que toma como referência o filme Laranja Mecânica e a opinião sobre política e ambiente social, sempre na perspectiva de que a autoridade pode levar à repressão. O outro entrevistado é Nicholson, o actor que demonstra uma forma sadia de lidar com a fama e com o sofrimento (real, por razões familiares), bem como com a felicidade (na ternura com que fala da filha bebé que lhe nascera aos 53 anos, por altura da entrevista) ou com a opção de viver sozinho. Ainda do mundo do espectáculo é Pavarotti, o tenor que trouxe a música clássica para os estádios, falando dos seus prazeres, da sua música e da sua pintura, revelando-se sempre um imperfeito, um trabalhador incansável a lidar com os seus dotes, um “superperfeccionista” – “acho sempre que tudo aquilo que faço, por muito bem que esteja, pode sempre ser melhorado”.
A entrevista com Ayrton Senna é um encontro com um homem do risco e das manobras arriscadas. Senna é apresentado como um tímido muito por responsabilidade do próprio autor da entrevista, que reproduz toda a conversa em discurso indirecto, só dando a palavra ao entrevistado no final, numa mensagem. Apresentado com grande dose de humanismo e de carinho pelos seus fãs, Senna mostra-se em reflexão, oscilando entre o risco e uma maneira própria de lidar com a fama. No final do encontro, comove-se e fala dos artistas enquanto símbolo: “Em muitos aspectos, não somos uma realidade para as pessoas, mas um sonho. É uma coisa que nos fica gravada no pensamento. Mostra-nos até que ponto podemos ter impacto na vida das pessoas. E, por mais que tentemos dar qualquer coisa a essas pessoas, nunca será nada, comparado com o que elas sentem por nós dentro delas e nos seus sonhos. E isso é muito especial… é muito, muito especial para mim.” Como se sabe, Senna morreria em prova cerca de quatro anos depois, em 1 de Maio de 1994, no circuito de Imola.
Steve Jobs não pertence a nenhum dos mundos das outras personagens deste volume. Ligado às tecnologias, a marcas extraordinárias no universo da informática, Jobs apresenta-se na luta pela democratização das tecnologias numa perspectiva de que o público exigirá sempre mais, de inovação nas empresas, de aposta na criatividade dos colaboradores de abertura para a surpresa da vida. Não é da entrevista (gerada em 1989), mas o organizador do volume, em nota final, retoma um pensamento de Jobs, produzido em Junho de 2005, proferido na Universidade de Stanford, quando ele já sabia estar doente, sem hipótese de recuperar: “Lembrar-me de que em breve estarei morto é a ferramenta mais importante que encontrei para me ajudar a tomar as grandes decisões da minha vida. (…) Lembrarmo-nos de que vamos morrer é a melhor forma que conheço de evitarmos o engano de acharmos que temos algo a perder.”
Vinte anos de esperanças, de crenças, de contradições. Um tempo que oscilou entre os grandes avanços no domínio da tecnologia e as instabilidades oriundas da política a céu aberto…

Sublinhados
Computador – “Os seres humanos são basicamente fabricantes de ferramentas, e o computador é a ferramenta mais extraordinária que construímos até hoje.” [Steve Jobs. Entrevista a Bob Burlingham e George Gendron em Inc. (Abril de 1989). Grandes Entrevistas da História 1971-1990. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 108]
Experiência – “Se não adquirirmos um pouco de bom gosto e de experiência enquanto jovens, nunca mais o faremos. A experiência faz aumentar o prazer…” [Jack Nicholson. Entrevista a Gene Siskel em Chicago Tribune (12-08-1990). Grandes Entrevistas da História 1971-1990. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 125]
Melhor – “As pessoas ficam mais motivadas a fazer coisas o melhor possível do que a fazê-las de forma simplesmente correcta.” [Steve Jobs. Entrevista a Bob Burlingham e George Gendron em Inc. (Abril de 1989). Grandes Entrevistas da História 1971-1990. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 112]
Passado – “Quando um homem tem um passado extraordinário, este vem ao de cima mesmo que ele o esconda, pois o passado está gravado no rosto, nos olhos.” [Oriana Fallaci. Introdução à entrevista de Yasser Arafat, em Intervista com la Storia (1974). Grandes Entrevistas da História 1971-1990. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 36]

Com o Expresso de hoje, o 6º volume

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