terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Grandes entrevistas da História, com o "Expresso" (6)



Dois falantes de língua portuguesa, uma de Portugal e outro do Brasil, entram no último lote de dez entrevistados que constituem o derradeiro volume de Grandes Entrevistas da História, abrangendo o período de 2007 a 2014 – Paula Rego (Eunice Goes, Expresso, 15-09-2007) e Chico Buarque (Ana Cristina Leonardo, Expresso, 08-08-2009). Os restantes entrevistados são: Stephen Hawking (Xavi Ayén, La Vanguardia, 25-09-2008), Ferran Adrià (Cristina Jolonch, Magazine, 21-02-2010), Bernard Madoff (Steve Fishman, New York Magazine, 27-02-2011), Mikhail Gorbatchov (Jonathan Steele, The Guardian, 16-08-2011), Barack Obama (Susan Page, USA Today, 03-09-2012), Salman Rushdie (Clara Ferreira Alves, Expresso, 22-09-2012), Tim Berners-Lee (Paul Sagan, projecto Riptide da Nieman Foundation for Journalism, da Universidade de Harvard, Abril de 2003) e Mark Zuckerberg (Farhad Manjoo, The New York Times, 16-04-2014).
A conversa com Paula Rego mostra o apego da artista a marcas de um Portugal rural – “gosto da estética das feiras, das festas, do bobo da festa, e das pessoas que lá trabalhavam” –, justificando a sua preferência pela figura feminina “por causa dos fatos, das cinturas” e porque “há mais cumplicidade”, e assumindo a situação de compromisso cívico que os seus quadros têm, através de evidentes marcas contra a injustiça e retratando as relações de poder. A entrevista com Chico Buarque debruça-se também sobre a arte, a literatura, e surge a propósito da edição do seu livro Leite derramado (2007). Mesmo dizendo que não é escritor, Chico Buarque consegue entender a literatura como uma construção, aspecto muito mais interessante do que a história que é contada – “eu, na verdade, o que menos me atrai na escrita de um romance é a história. Me interessa mais trabalhar com a forma, a forma de contar aquela história. A história em si não é nada, muitas vezes não é nada.” No entanto, a sua vertente de leitor e de construtor de histórias leva-o a que se apaixone por uma das suas personagens, o velho Eulálio, porque a conversa de velhos tem sempre uma “memória selectiva, as fugas, as tergiversações, mesmo aquelas mentirinhas ou lapsos de memória, coisas que voltam não exactamente como eram..”
De outras três áreas da cultura são os entrevistados Stephen Hawking, Ferran Adrià e Salman Rushdie. O físico que fala através do computador (“à razão de uma palavra por minuto”) paira numa entrevista, para nós curta, mas longa para ele, atendendo às suas condições físicas. Aí, glorifica a ciência e conjuga-a com Deus (“Se quisermos podemos chamar Deus às leis científicas, mas estas não são um Deus pessoal que podemos interpelar”), ao mesmo tempo que não se põe de lado em relação à política e que relança o seu permanente desafio à descoberta. Ferran Adrià, o cozinheiro catalão, que “está para a culinária como Steve Jobs está para a tecnologia” (no dizer do organizador do volume), surge-nos através de uma peça que mais se aproxima do género reportagem, com o objectivo de ser traçado o retrato do homem que esteve à frente do restaurante madrileno “El Bulli”. O texto é baseado em conversas com o próprio retratado e com amigos e familiares, o que o distancia do género entrevista, que originou esta obra. Fica, porém, a partilha de aprendizagens importantes, como aquela que o levou a descobrir que, “no âmbito profissional, mesmo que nos esforcemos, não somos o que pensamos ser, mas sim o que os outros pensam que somos.” Salman Rushdie, o escritor que teve um longo período de vida clandestina por razões de sobrevivência e por causa da obra Versículos satânicos (1988), é entrevistado a propósito de uma obra autobiográfica em que relata esse tempo de clandestinidade a que foi obrigado pelo fundamentalismo. Ressaltam as convicções, o papel da escrita, o valor das amizades, a tristeza pelos que viram costas, mas salva-se o escritor – “Sou o mesmo escritor. Uma vitória.”
O domínio da política encontra dois nomes representativos do que foi a alteração das relações políticas no mundo no início do século que vivemos – Mikhail Gorbatchov e Barack Obama. O político russo estará para sempre associado à “perestroika” e apresenta-se numa entrevista que está entre o balanço, alguma paz de espírito e relativa amargura. Reconhece erros cometidos (não se ter demitido do Partido Comunista e ter criado um partido reformista democrático, não ter começado mais cedo a reforma da URSS e não ter dado mais poderes às quinze repúblicas, não ter afastado através da diplomacia Ieltsin da cena política). Na sua visão, surge a crença na reforma da China, bem como a rejeição dos métodos de Putin, designadamente a mudança no sistema eleitoral. Gorbatchov mantém o espírito de família e as marcas de proximidade, não escondendo o seu afecto por Raisa, a mulher (já falecida na altura da entrevista), que gostava de o ouvir cantar. Uma entrevista que é também um pouco das memórias de um homem que contribuiu para que o mundo fosse diferente… Do ocidente chega a entrevista com Barack Obama, conhecido como o primeiro negro que chegou à presidência dos Estados Unidos, feita na altura em que ele era candidato à reeleição. Obama, já não com a força do “yes, we can”, demonstra as dificuldades, entre um mundo em convulsão, o apego à família (as filhas “são um grande antídoto para evitar que me leve demasiado a sério”), e respeito pelo adversário e as aprendizagens da política, ainda que aparentemente simples, como perceber “a necessidade de se preocupar mais em convencer as pessoas do país inteiro sobre as medidas que quer tomar, do que os membros do Congresso na outra ponta da Pennsylvania Avenue”.
O mundo das tecnologias ligadas ao poder da informática aparece representado pelos nomes Tim Berners-Lee e Mark Zuckerberg, criadores da web e do facebook, respectivamente. Berners-Lee relembra a motivação que o levou a pensar na necessidade de criar um “hiperespaço aberto” e conclui com uma mensagem forte: as tecnologias deverão permitir resolver problemas “sem cortar tantas árvores para obter madeira e fabricar papel”, uma lição para os tempos de burocracia em que, além de os documentos existirem virtualmente (o que parecia que iria acontecer na sequência do uso generalizado dos computadores), vai havendo orientações em muitos serviços no sentido de os mesmos serem impressos… numa duplicação absolutamente acrónica. Zuckerberg, o criador da “maior nação digital da internet”, é entrevistado com o objectivo de ser questionada a capacidade de a empresa criar novos produtos, sabendo-se que alguns deles não têm tido o sucesso esperado. A conversa liga-se também à discussão do privado e do anonimato em termos de comunicação, acreditando o entrevistado que, de uma forma ou de outra… se visa criar laços. Boas intenções!...
Bernard Madoff, o nome que surge fortemente associado aos tempos de crise que vivemos, um género de “dona Branca” gigante, é entrevistado a partir da prisão, numa peça que é reconstituída sobre conversas telefónicas várias de Madoff para o jornalista, ainda que todas elas pagas no destino. Há ainda os testemunhos de familiares do preso e, por vezes, os desabafos veiculados por amigos, que confidenciaram os sentimentos dos filhos de Madoff. A entrevista é o retrato de um “arrependido”, que, explicando-se, tem dúvidas em aceitar-se, como se vê logo pela abertura da peça jornalística, que reproduz o entrevistado em discurso directo: “Como é que fui capaz de fazer o que fiz? Estava a ganhar muito dinheiro. Não precisava de o ter feito.”
Grandes Entrevistas da História, obra editada pelo semanário Expresso, conclui com este volume o lote de setenta conversas com outros tantos entrevistados, havidas num período entre 1865 e 2014. Todos os nomes que por estas páginas passaram tiveram (têm) o seu papel no mundo que conhecemos, uns associados ao bem, outros nem por isso, dependendo esta categorização da nossa margem de simpatias. São estes setenta como poderiam ser outros, mas as nossas curiosidades alimentam-se disto: a vontade de percebermos como os protagonistas do nosso tempo chegaram aos limites que chegaram e em nome de quê. Se nem tudo é dito nas entrevistas, ficam-nos, pelo menos, os retratos dos heróis sobre os momentos em que foram considerados determinantes, porque a História é feita desses mesmos momentos. E a História, podemos antologiá-la ou contá-la, mas não a podemos prever…

Sublinhados

Existência – “Não existe maior emoção do que a da descoberta, a de procurar incessantemente as respostas às nossas perguntas mais importantes: quem somos? De onde viemos?” [Stephen Hawking. Entrevista a Xavi Ayén, em La Vanguardia (25-09-2008). Grandes Entrevistas da História 2007-2014. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 21]
Perguntas – “As perguntas hipotéticas não servem de muito.” [Mikhail Gorbatchov. Entrevista a Jonathan Steele, em The Guardian (16-08-2011). Grandes Entrevistas da História 2007-2014. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 79]
Medo – “O medo faz as pessoas fazer coisas más.” [Salman Rushdie. Entrevista a Clara Ferreira Alves, em Expresso (22-09-2012). Grandes Entrevistas da História 2007-2014. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 104]

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