Entrevistas
realizadas na última década do século XX e no primeiro lustro do século XXI
constituem o sexto volume de Grandes
Entrevistas da História, que o semanário Expresso está a publicar, sendo
protagonistas desta série: José Saramago (Clara Ferreira Alves, Expresso, 02-11-1991), João Havelange
(Andrés Mercé Varela, La Vanguardia,
17-04-1994), António de Spínola (José Pedro Castanheira, Expresso, 30-04-1994), Osama Bin Laden (Robert Fisk, The Independent, 22-03-1997), Michael
Jackson (Edna Gundersen, USA Today,
14-12-2001), Gilberto Gil (Joaquim Ibarz, La
Vanguardia, 05-01-2003), Hugh Hefner (Lluís Amiguet, Magazine, 13-04-2003), Bansky (Simon Hattnestone, The Guardian, 17-07-2003), Dalai Lama (Luke
Harding, The Guardian, 05-09-2003) e
Tony Blair (Jeremy Webb, New Scientist,
01-11-2006).
A
entrevista de José Saramago tem como pretexto a publicação do seu romance (que
gerou polémica) O Evangelho segundo Jesus
Cristo e serve para o autor falar de cristianismo, de comunismo, de
ideologia e da história do mundo. Na conversa, Saramago explica-se: “A tese
escondida é a de que eu digo, em primeiro lugar, que o cristianismo não valeu a
pena; e em segundo, que se não tivesse havido cristianismo, se tivéssemos
continuado com os velhos deuses, não seríamos muito diferentes daquilo que
somos”. Se se justifica quanto ao livro e quanto às ideias feitas sobre a
religião, também se afirma relativamente ao Partido Comunista e à ideologia – “a
União Soviética não é nem nunca foi, para mim, uma referência política ou ideológica”,
chegando a afirmar que sairá do partido “se um dia se sentir mal”. A questão da
sua escrita no que se relaciona com a dimensão histórica, do tempo, também lhe
merece aprofundamento: “Agrada-me pensar que o tempo não é essa diacronia, essa
sucessão de momentos, agrada-me pensar no tempo como uma espécie de imensa tela
onde se projectam e se fixam os acontecimentos.”
O
outro português sentado nesta mesa das entrevistas é António Spínola, o homem
que povoou as primeiras páginas dos jornais durante muito tempo, sobretudo a
propósito dos acontecimentos decorrentes
do 25 de Abril de 1974. É uma entrevista de memórias quanto ao que se
passara anos antes, oscilando entre a dedicação ao 25 de Abril e um certo
ajuste de contas com políticos e sectores, como o MFA (Movimento das Forças
Armadas) e o PCP. Nem tudo é pormenorizado ao ponto de o leitor poder avaliar
as posições. Certo é que o militar se sobrepõe ao político. Não escondendo a
razão de ser do monóculo (algo que usava por tradição recebida dos oficiais de
cavalaria), explica-se quanto ao que viveu na Guiné e quanto à emergência que
era a independência daquele território. Personalidades como Costa Gomes, Rosa
Coutinho ou Vasco Gonçalves não são poupadas e, na história política que viveu,
não esqueceu a parte do MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal).
Ao seleccionar o seu maior sucesso político, optou: “ter colaborado abertamente
nos objectivos previstos no 25 de Abril, que, em última análise, se resumiram à
restituição da liberdade e da democracia ao povo português”. E quanto ao
sucesso militar, destaca, a fechar a entrevista: “ter participado como
voluntário na Guerra do Ultramar, onde tive o privilégio de correr riscos ao
lado dos nossos extraordinários soldados, lídimos representantes do ancestral
patriotismo do povo português”.
Do
Brasil, foram convocados também dois nomes: primeiro, o de João Havelange,
fluminense que presidiu à FIFA (Federação Internacional de Futebol Associado)
entre 1974 e 1998, numa conversa que passa pelo vasto mundo do futebol a nível
mundial, com ideias sobre inovações, com responsabilidades, tocando, entre
outros, os problemas da massificação e da arbitragem. A fechar o encontro,
Havelange refere: “penso no futebol, que é a grande paixão do mundo actual, e
tento dar o equilíbrio para que esta paixão seja um elemento civilizador da
nossa sociedade”. O outro entrevistado é Gilberto Gil, músico e político do
governo de Lula da Silva (em que interveio como Ministro da Cultura), em
conversa tida com o jornalista no dia em que tomou posse no cargo. A conversa
ficará marcada por esse momento, uma vez que o tema foi a política cultural a
implementar, com destaque para o fomento da criatividade, uma vez que “a
política cultural não pode deixar todos os seus trunfos à mercê de ventos,
sabores e caprichos do deus Mercado”.
Da
área da política aparecem mais três nomes: Dalai Lama, Tony Blair e Osama Bin
Laden. Quanto ao primeiro, o décimo-quarto Dalai Lama do Tibete, um monarca que
perdeu o reino por imposição do governo chinês, deixa uma entrevista pincelada
pela amargura do exílio forçado e pela dúvida quanto ao futuro no que toca ao
sucessor. Apesar destes traços, o discurso é apaziguador – “a melhor solução
para um problema consegue-se através do diálogo”. No caso de Tony Blair, a
conversa, atendendo à publicação que a reproduziu, toca um tema candente como
seja a ligação da política com a ciência, defendendo Blair a necessidade de a
política britânica ter de considerar “a ciência tão importante como a
estabilidade económica”, assim como a urgência de académicos e empresários irem
à escola com o objectivo de despertarem “entusiasmo nos alunos, não só pelas
descobertas científicas, mas também pela infinidade de oportunidades laborais”
existentes na área. O tema vinha a propósito de acontecimentos ocorridos no
tempo da governação de Blair – a clonagem, as culturas transgénicas e as
recusas por parte da população na administração de algumas vacinas. O terceiro
entrevistado, Bin Laden, faz girar a conversa em torno da guerra santa contra
os Estados Unidos, quase único inimigo, bem como a dose de ameaças
relativamente à América, que o entrevistador não sublinhou convenientemente, só
a tendo valorizado após o 11 de Setembro. A peça jornalística, cujo autor
chegou três vezes à fala com Bin Laden, oscila entre os géneros entrevista e
reportagem, já que também narra, com algum pormenor, a viagem ao encontro do
dirigente fundamentalista.
Do
mundo do espectáculo e da arte são os outros três entrevistados: Michael
Jackson, Hugh Hefner e Bansky. O encontro com Jackson resulta numa entrevista
fortemente condicionada, já que a conversa teve a presença de assessores do
artista, que impediram que algumas perguntas fossem feitas ou desviaram a
atenção das respostas, sobretudo quando relacionadas com a vida privada do
artista ou com os escândalos que o acompanharam. Jackson aceitou apenas falar
de música, de “show”, ainda que se deslumbre a falar dos filhos e que tenha
confessado ter tido uma infância perdida. A razão de entrevista tão
condicionada é exposta por Jackson: “se aceitasse entrar na esfera pessoal,
seria o único assunto de que as pessoas falariam”. Assim, forte é a paixão pela
música e pelo reviver de alguns momentos em palco e com os seus fãs. Hugh Hefner
surge entrevistado sem ser para a publicação que fundou e com que alcançou fama
e sucesso, apesar de o pretexto da entrevista serem os 50 anos sobre a fundação
dessa revista, a Playboy. Assim, o
diálogo versa sobre as vitórias e dificuldades do projecto, visando uma nova
ideia do homem moderno, em muito criado e vivido na própria personalidade do
fundador Hefner. Com o ar mais solene, o entrevistado comenta: “Sempre disse
que a Playboy não é uma revista de
sexo, mas sim uma publicação sobre estilos de vida que dedica especial atenção
ao sexo, porque o sexo é uma parte importante da vida”. E uma curiosidade: a
revelação de que o primeiro número da publicação não teve data registada
porque, por razões económicas, não havia a certeza de vir a ser feito um
segundo número…
O
último entrevistado deste lote é Banksy, o artista de paredes que ninguém
identifica. Sem fotografia, Banksy ajuda a construir o seu próprio anonimato,
tomando posições contra marcas e códigos, comprazendo-se com o viver no fio da
navalha para não ser descoberto. Com orgulho, afirma: “a lista dos trabalhos
que recusei é muito mais extensa do que a dos trabalhos que fiz. É como um
currículo ao contrário, é estranho.” Depois, é o desenrolar de histórias sobre
os desenhos em paredes, seguindo o princípio do graffiti quanto à efemeridade,
mas com a eficácia da crítica e do fazer pensar, porque “a graça está em
dedicar menos tempo a fazer o desenho do que as pessoas a observá-lo”.
Tempos
de crise, de mudanças, de reflexão sobre o tempo e a forma de se estar
constituem esta dezena de entrevistas, que acentua a quantidade de questões que
o século XXI tem ainda para resolver, se é que essa vai ser uma preocupação…
Sublinhados
Música – “A música é um mantra que alivia a alma. É terapêutica. É algo necessário
para o corpo, como o alimento. É muito importante compreender o poder da
música. Seja onde for, num elevador ou numa loja, a música influencia a forma
de comprar ou a forma como tratamos a pessoa que temos a nosso lado.” [Michael
Jackson. Entrevista a Edna Gundersen, em USA
Today (14.Dezembro.2001). Grandes
Entrevistas da História 1991-2006. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 70]
Religião – “As religiões tanto servem para sobreviver às
perseguições como para fazer perseguições, e os perseguidos vão por seu turno
refugiar-se noutra religião que fará outros perseguidos.” [José Saramago.
Entrevista a Clara Ferreira Alves, em Expresso
(02.Novembro.1991). Grandes Entrevistas
da História 1991-2006. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 17]
[Com a próxima edição do Expresso, o último volume da série, o nº 7]
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