“Estou
no cimo de uma serra, estou no céu, ou se calhar voo pelos ares de asas abertas
numa nuvem sem borbotos, e vai-se a ver estou a nadar no mar alto sem ter
fundo, que ao fim e ao cabo isto vai dar tudo ao mesmo: uma grandessíssima arrelia.
Não se enxergava uma polegada britânica à frente do nariz, com os cristais de
gelo sobre as pálpebras parecia que nem o próprio nariz se via. E é isto vir de
férias nesta ilhota do mar do Norte.” Assim começa Bifes mal passados (Lisboa: Gradiva, 2014), a obra de João Magueijo
(n. 1967) que, entre Junho e Novembro, atingiu onze edições e que tem por
subtítulo o explicativo dizer: “Passeios e outras catástrofes por terras de Sua
Majestade”.
Não
vá o leitor enganar-se e pensar que está perante um livro de viagens, o
subtítulo desengana logo e o primeiro capítulo não lhe fica atrás. Sugestivamente
intitulado “weekend”, esse texto de abertura relata uma ida a Helvellyn, em
Lake District, caminhada cheia de peripécias demasiado catastróficas para se
recordar um bom passeio. Essa abertura serve ainda para o autor mostrar a sua
ligação a Inglaterra e para se justificar do tom a utilizar: “Tendo vivido
vinte e tal anos em Inglaterra, depois de acumular duras experiências, munido
da sagacidade que a rude prática nos traz, hoje em dia, quando quero ir de
férias, espairecer um bocado, desaparecer um fim-de-semana, a primeira coisa que
faço é comprar um bilhete de avião. E fugir deste ilhéu a sete pés!” Não é,
pois, feliz o retrato que vai ser feito do país de acolhimento do autor…
Ao
longo das quase duas centenas de páginas, o leitor vai conquistando a surpresa
do mal-estar que invade a memória do narrador. Com efeito, o livro, extensa
crónica de vivências diversas, com opiniões que partem de histórias do acaso, é
também um repositório memorialístico, já que as experiências aconteceram na
primeira pessoa e contêm a marca autobiográfica. Por lá passam apreciações da
paisagem, dos hábitos, das pessoas, em suma, de uma identidade do outro,
perscrutada por um estrangeiro que acaba por se habituar e por se inserir na
sociedade de que tanto se ri e sobre outro tanto ironiza.
À
medida que os comentários sobre Inglaterra vão correndo, vai o leitor
percebendo que a vida do narrador se alicerça sobre o conjunto de experiências
que vai vivendo e sobre as memórias que vai tendo do seu país, de Portugal, ora
pela evocação de tempos da sua infância e juventude em Sesimbra ou no Alentejo,
ora pelo conhecimento que detém de uma certa forma de ser português, mais
prático, mais imediato, mais popular, a tentar compreender um mundo novo, que
não tem semelhanças com o de origem.
O
tom de riso ou de humor é logo marcado pelas epígrafes que abrem a obra, de
Petrónio e de Jerome K. Jerome, e, ao longo do escrito, há ainda referências a
Orwell, a Bergerac, a Baudelaire, a Eça, a Rentes de Carvalho, todos eles suficientemente
críticos e praticantes de humor e de dizeres sobre outros povos. Apesar disso,
vai-se o leitor interrogando sobre o ponto a que chegará esta obra, tão intenso
é o tom crítico, atingindo por vezes um certo mal-estar no que se lê, seja por
algum aparente exagero, seja por não se saber muito bem a partir de que ponto
uma experiência pessoal pode passar a marca generalizada…
O
capítulo designado “Epílogo” faz as pazes ou estabelece a harmonia entre o
narrador, o leitor e o mundo que foi (re)criado. O título que lhe é dado contém
também uma chave para a leitura – “Agridoce”. E é num desabafo que essa chave
se inicia: “agradeço a quem me leu até aqui por ter aturado as graçolas de mau
gosto, mas espero que tenha ficado claro que não são gratuitas – se as disse é
porque esta é a única forma de lidar com este país sem recorrer ao suicídio.”
Daqui para a frente, o autor revê-se na sorte que teve em ter passado esse
tempo em Inglaterra – “Foi esta a pátria adoptiva que me permitiu fazer o que gosto: a
minha vida como físico e cosmólogo tem sido uma longa história de amor com as
tradições científicas britânicas, que não são perfeitas, longe disso, mas também
não é isto amor platónico, é uma relação carnal que aprecia a sua verrugazita.
Pelo contrário, se tivesse ficado em Portugal teria sido a asfixia.” A justificação
para o tom de gozo e de ironia utilizado expõe-na João Magueijo numa observação
sobre o auto-retrato que os ingleses de si mesmos produzem: “Uma das
particularidades do humor britânico é que frequentemente é self-deprecating, auto-depreciativo: consiste em fazer pouco de si
próprio, levado a um extremo que deixa os estrangeiros constrangidos.” Com esta
reflexão, o autor assume já o seu quê de britânico, melhor, de inserido no
espírito do país que o recebeu e de que ele se ri, porque, afinal, o riso e a
gargalhada surgem sobre as suas experiências, não as que lhe passaram ao lado
mas as de que ele foi protagonista.
Por isso, a crónica encerra com algo que pode ser um
princípio salutar: “As pessoas às vezes levam-se demasiadamente a sério. Não há
nada mais saudável do que rir às gargalhadas de si próprio.” E é isso que
ressalta neste Bifes mal passados: as
aventuras de um português que assume um percurso de descoberta e de inserção em
terras de Sua Majestade… nem sempre agradável, é claro, mas que serve para se
inserir e para a afirmação da sua identidade também.
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