Aceite o leitor o convite para subir a Rua Arronches
Junqueiro, ali a partir do centro de Setúbal, até chegar ao arco de S.
Sebastião, ponto em que atravessa a muralha, desembocando no Largo dos Defensores
da República. O espaço anuncia-se vasto e, do seu lado esquerdo, surge-lhe frontaria
de casa nobre, com duas torres não muito altas relativamente ao resto da
fachada, numa pose rígida quanto baste, reforçada por uma localização algo
altaneira, voltada para o Sado, via de entrada na cidade, sobretudo em tempos
que já lá vão, talvez na época em que o edifício foi construído…
É neste momento que a história se nos impõe qual
demanda por sendas de aventura ou peregrinação pelos itinerários da identidade.
É neste momento que nos socorremos da obra De
Colégio de S. Francisco Xavier a Palácio Fryxell, de Inês Gato de Pinho (Setúbal: Instituto Politécnico de Setúbal, 2013),
guia que nos desvenda as linhas arquitectónicas bem como as linhas por que a
história se foi fazendo – a história da construção e longas e diversas entradas
na história de Setúbal, uma e outras vogando a par no ondular do passado.
O título do escrito remete-nos para duas utilizações
distintas deste espaço – a primeira, devida a ordem religiosa, e a segunda, a
utilização próspera e aburguesada – ambas marcando justamente os extremos da
vida do edifício até à sua passagem para as mãos do Instituto Politécnico de
Setúbal pela década de 1980.
Entre as duas referências constantes no título passou
um tempo de cerca de três séculos, o que nos possibilita um recuo até meados de
Seiscentos, quando D. João IV assinou autorização para a instalação de colégio
jesuíta em Setúbal a fim de que aqui houvesse “pregadores, confessores e
mestres que ensinem latim e as ciências necessárias para os sujeitos da terra”.
Corria o ano de 1654 e o despacho régio era datado de
3 de Junho. A essa data, já vários colégios da Companhia de Jesus existiam em
Portugal, o mais antigo dos quais localizado em Coimbra desde 1542, a que se
seguiram, por ordem alfabética, fundações em Angra do Heroísmo, Braga, Bragança,
Elvas, Évora, Faial, Faro, Funchal, Lisboa, Ponta Delgada, Portalegre, Porto, Santarém
e Vila Viçosa. O consentimento régio, como resposta a pedido da câmara da vila,
em associação com o facto de a ordem dos Jesuítas ter sido herdeira única de
André Velho Freire e de sua mulher, D. Filipa de Paredes, levou a que muito
rapidamente, em 1655, fosse iniciada a construção do colégio sadino, nos
arrabaldes de Palhais, numa área extensa, localizada entre as traseiras da
Igreja de Santa Maria e o dito Palácio Fryxell, passando pelos terrenos do
Pátio Gago da Silva e da gráfica dos Armazéns de Papéis do Sado.
As instalações serviram os Jesuítas durante cerca de
um século, até à expulsão desta ordem religiosa em 1759, depois de forte
impulso na reconstrução devida aos estragos causados pelo terramoto. Uma década
mais tarde, o edifício passava para outra ordem religiosa, das freiras
bernardas, passando a ser, ao longo de uma década, o Real Mosteiro de Nossa
Senhora da Nazaré de Setúbal. A partir daqui, a propriedade começou a desmembrar-se
e a ter diversificados fins: um teatro com porta para a Rua de Santa Maria nas
duas primeiras décadas do século XIX, estabelecimentos comerciais, afectação
pelas obras ferroviárias da Linha do Sado, espaço de habitação no Pátio Gago da
Silva, fábrica de conservas alimentícias e de conservas de sardinha, fábrica de
transformação de cortiça e parque tipográfico, num trajecto que vem até ao
século XXI.
A história do edifício que Inês Gato de Pinho nos vai
contando, sempre orientada pela pesquisa arquitectónica e tendo em vista o
processo das sucessivas reabilitações do edifício, surge eivada de outras
histórias, num processo de contaminação com o meio e com o que tem sido a
própria narrativa de Setúbal. A investigação levada a cabo, não isenta de dificuldades
(sobretudo relacionadas com a inexistência de documentação alusiva a datas
importantes do edifício), ultrapassa os limites murais da propriedade e entra
nos quotidianos de Setúbal de várias épocas, dando conta das evoluções
socioeconómicas, do modo de viver das próprias ordens religiosas (com destaque
para a Companhia de Jesus e o seu “Modo Nostro”), dos agentes promotores (que
biografa), das vidas de trabalho, num quase reconhecimento de que a localização
do espaço permite uma visão de conjunto sobre a comunidade.
À medida que os episódios sobre esta construção vão
avançando vai o leitor tendo consciência de que a própria história está a ser
construída, não deixando Inês Gato de Pinho de acentuar que algumas das
leituras que apresenta são conjecturas que poderão vir a ser contrariadas ou
aprofundadas por outros estudos ou por outras descobertas – não podemos
esquecer que muitos dos documentos que poderiam fundamentar a história do
complexo jesuíta em Setúbal desapareceram na voragem da perseguição à própria
ordem religiosa no século XVIII e no incêndio dos Paços do Concelho em Outubro
de 1910 e que muitos outros documentos andam dispersos (perdidos?) por
instituições várias.
Pelo que revela – de que se podem destacar os casos da
localização da igreja do colégio jesuíta, as mutações ou adaptações a que o
espaço esteve sujeito, os intervenientes responsáveis por essas alterações, o
repositório que a actual capela de S. Francisco Xavier é no respeitante a
elementos oriundos de outros espaços de Setúbal e até as possibilidades de
investigação no futuro –, este estudo de Inês Gato de Pinho bem se torna
importante para a bibliografia sadina, não só na vertente de história da
arquitectura, mas também nos domínios da sua história religiosa e da sua
história económico-social. Iniciativa louvável, pois, para uma obra que se
afigura indispensável para o estudo da identidade setubalense.
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