A vida de António Marcelino Igreja não é muito
conhecida, apesar de ter sido um dos grandes beneméritos das Misericórdias de
Lisboa e de Setúbal. Para isso concorre a escassez de testemunhos e o facto de
a própria documentação existente ser sobretudo de carácter notarial, que,
apesar de dar um contributo fidedigno, não vai muito além do cunho
transaccional que a marca. Certo é que o período de vida de Marcelino Igreja
está associado a uma série de circunstâncias que se cruzaram com a história do
país, num tempo ocorrido entre a segunda metade oitocentista e o final da
primeira metade do século XX. Foi por entre estas dificuldades que se moveu Ana
Gomes, autora da obra António Marcelino
Egreja (1867-1952), pretextada por se tratar de um benemérito importante
para a obra de Misericórdia da capital [col. “Beneméritos” (7). Lisboa: Santa
Casa da Misericórdia de Lisboa, 2013].
O percurso do biografado é construído segundo o modelo
do estilo da reportagem, numa escrita que viaja pelos documentos consultados e
que tenta preencher esse esqueleto com alguns testemunhos de memórias já
longínquas de mais de seis décadas, recorrendo a uma excelente caracterização
dos momentos, circunstâncias e ambientes em que a vida de Marcelino Igreja
decorreu.
Oriundo de família com origem galega por parte do pai
(que de Pontevedra veio para Lisboa na leva da chegada dos galegos migrantes de
meados do século XIX), esta condicionante constitui pretexto para uma
ilustração e lembrança do que seria a Lisboa da época, frequentemente percorrida
por galegos, sobretudo em funções subalternas – aguadeiro, empregado em casas
de pasto, fazendo fretes, amolador, etc. Nada se sabendo sobre a infância e a
juventude do biografado, o leitor vai encontrá-lo, vinte anos feitos, como
sócio do seu tio, e depois sogro, António Igreja Moinhos, na empresa Moinho & Sobrinho, fortemente ligada a Setúbal nas duas últimas décadas
oitocentistas. Motivo para tão íntima ligação é a indústria conserveira, que
leva a empresa a agir na área da conservação dos produtos alimentares e seus
satélites, como a aquisição da Litografia Setubalense, essencial para a
estampagem das embalagens das conservas, ou a constituição de uma fábrica de
guano. O nome de Marcelino Igreja surgiu ainda envolvido na criação da Empresa
de Recreios Setubalense, responsável pela construção da Praça de Touros D.
Carlos (actual Praça Carlos Relvas) e do Teatro D. Amélia (antepassado do Forum
Luísa Todi).
Com um tal percurso, não podia António Marcelino Igreja
estar distante da intervenção cívica e assim o vamos encontrar como responsável
do Partido Republicano Português (PRP) em Setúbal. Paralelamente, em 1901,
entra no Ministério dos Negócios da Fazenda com o cargo de inspector do serviço
das contribuições, início de uma carreira que seguiu até 1935, ano da sua
reforma, em que um dos passos foi o desempenho da função de Director de
Finanças do distrito de Setúbal.
Este cruzamento de Marcelino Igreja com Setúbal
forneceu a Ana Gomes a condição necessária para a apresentação de um quadro
sobre o que foram as condições vividas na cidade do Sado durante o período
situado entre a última década do século XIX e a de 1930, cronologia fortemente
dominada pelo desenvolvimento industrial, pela organização dos trabalhadores e
das profissões e pelo palco da política, cenário que a autora muito bem
sintetiza, apoiada em recente e informada bibliografia de autores setubalenses
como Albérico Afonso, Carlos Mouro ou Maria da Conceição Quintas.
Ao longo desta biografia, o leitor vai assistindo ao
que foi o crescimento do espólio e da fortuna de António Marcelino Igreja e de
sua mulher (de cujo casamento não houve descendência), nuns casos por negócio e
aquisição, noutros casos por herança familiar, sobretudo através do contributo
que é o último capítulo, “O legado”, em que os bens do benemérito são
cuidadosamente enunciados, cruzando-se a informação com testemunhos e memórias
de algumas pessoas que com ele privaram. Num universo dominado por considerável
quantidade de bens, salta também a imagem de uma personalidade austera, culta,
sensível e generosa. No seu testamento, foram beneficiados os seus mais
próximos colaboradores e duas instituições ligadas ao bem-fazer, a Santa Casa
da Misericórdia de Lisboa e a sua congénere setubalense – a esta última coube a
herança de uma centena de contos, bem como todos os imóveis que o benemérito
possuía no concelho de Setúbal.
Para se avaliar a dimensão da fortuna legada, o final
do livro contém o “Inventário e Encargos do Testamento”, organizado por
Cristina Gil, que refere a verba de quase 54 mil contos resultante do valor
patrimonial de imóveis, de depósitos bancários, de móveis e sucata, de objectos
de ouro e prata, de títulos e papéis de crédito, da venda de imóvel e do
rendimento dos imóveis. A fechar a biografia, Ana Gomes considera: “ainda hoje,
em pleno século XXI, decorridas seis décadas sobre a morte do benemérito, mais
de uma dezena de prédios de Lisboa, oriundos da herança que confiou à Santa
Casa, contribuem para manter pujante o gesto filantropo que assinou no passado.”
A obra
conclui com uma útil cronologia, válida sobretudo por ser um documento que
apresenta a relação do trajecto de Marcelino Igreja com as vivências
histórico-sociais da época e dos lugares que o biografado frequentou, com uma
bibliografia (fortemente dominada pelos documentos e registos notariais) e com
a árvore genealógica do biografado. E, chegado ao final, o leitor vê-se com o
retrato possível da personagem com quem conviveu ao longo de centena e meia de
páginas, em tudo fiel àquele que a autora forneceu logo no início da obra, na “Introdução”:
“Figura austera e discreta. Homem de firmes princípios e sólidas crenças.
Republicano convicto. Espírito laborioso. Cavalheiro e distinto. Empresário
invicto. Gestor hábil. (…) Personagem que a penumbra do passado torna
enigmática. (…) Conquistou créditos enquanto industrial pioneiro do sector
conserveiro, zeloso funcionário das Finanças ou astuto proprietário
imobiliário. Para lá do êxito que colheu e do empenho que investiu em cada uma
das acções a que se dedicou, em todas preferiu a sombra dos bastidores aos
holofotes do protagonismo.” Esta biografia trouxe a luz possível sobre este
retrato, reunindo as peças do puzzle necessário para o conhecimento de António
Marcelino Igreja, dono de vida intensa e longa mas, até aqui, muito pouco conhecida.
Sem comentários:
Enviar um comentário