segunda-feira, 22 de julho de 2013

António Marcelino Igreja (1867-1952), o benemérito biografado por Ana Gomes



A vida de António Marcelino Igreja não é muito conhecida, apesar de ter sido um dos grandes beneméritos das Misericórdias de Lisboa e de Setúbal. Para isso concorre a escassez de testemunhos e o facto de a própria documentação existente ser sobretudo de carácter notarial, que, apesar de dar um contributo fidedigno, não vai muito além do cunho transaccional que a marca. Certo é que o período de vida de Marcelino Igreja está associado a uma série de circunstâncias que se cruzaram com a história do país, num tempo ocorrido entre a segunda metade oitocentista e o final da primeira metade do século XX. Foi por entre estas dificuldades que se moveu Ana Gomes, autora da obra António Marcelino Egreja (1867-1952), pretextada por se tratar de um benemérito importante para a obra de Misericórdia da capital [col. “Beneméritos” (7). Lisboa: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, 2013].
O percurso do biografado é construído segundo o modelo do estilo da reportagem, numa escrita que viaja pelos documentos consultados e que tenta preencher esse esqueleto com alguns testemunhos de memórias já longínquas de mais de seis décadas, recorrendo a uma excelente caracterização dos momentos, circunstâncias e ambientes em que a vida de Marcelino Igreja decorreu.
Oriundo de família com origem galega por parte do pai (que de Pontevedra veio para Lisboa na leva da chegada dos galegos migrantes de meados do século XIX), esta condicionante constitui pretexto para uma ilustração e lembrança do que seria a Lisboa da época, frequentemente percorrida por galegos, sobretudo em funções subalternas – aguadeiro, empregado em casas de pasto, fazendo fretes, amolador, etc. Nada se sabendo sobre a infância e a juventude do biografado, o leitor vai encontrá-lo, vinte anos feitos, como sócio do seu tio, e depois sogro, António Igreja Moinhos, na empresa Moinho & Sobrinho, fortemente ligada a Setúbal nas duas últimas décadas oitocentistas. Motivo para tão íntima ligação é a indústria conserveira, que leva a empresa a agir na área da conservação dos produtos alimentares e seus satélites, como a aquisição da Litografia Setubalense, essencial para a estampagem das embalagens das conservas, ou a constituição de uma fábrica de guano. O nome de Marcelino Igreja surgiu ainda envolvido na criação da Empresa de Recreios Setubalense, responsável pela construção da Praça de Touros D. Carlos (actual Praça Carlos Relvas) e do Teatro D. Amélia (antepassado do Forum Luísa Todi).
Com um tal percurso, não podia António Marcelino Igreja estar distante da intervenção cívica e assim o vamos encontrar como responsável do Partido Republicano Português (PRP) em Setúbal. Paralelamente, em 1901, entra no Ministério dos Negócios da Fazenda com o cargo de inspector do serviço das contribuições, início de uma carreira que seguiu até 1935, ano da sua reforma, em que um dos passos foi o desempenho da função de Director de Finanças do distrito de Setúbal.
Este cruzamento de Marcelino Igreja com Setúbal forneceu a Ana Gomes a condição necessária para a apresentação de um quadro sobre o que foram as condições vividas na cidade do Sado durante o período situado entre a última década do século XIX e a de 1930, cronologia fortemente dominada pelo desenvolvimento industrial, pela organização dos trabalhadores e das profissões e pelo palco da política, cenário que a autora muito bem sintetiza, apoiada em recente e informada bibliografia de autores setubalenses como Albérico Afonso, Carlos Mouro ou Maria da Conceição Quintas.
Ao longo desta biografia, o leitor vai assistindo ao que foi o crescimento do espólio e da fortuna de António Marcelino Igreja e de sua mulher (de cujo casamento não houve descendência), nuns casos por negócio e aquisição, noutros casos por herança familiar, sobretudo através do contributo que é o último capítulo, “O legado”, em que os bens do benemérito são cuidadosamente enunciados, cruzando-se a informação com testemunhos e memórias de algumas pessoas que com ele privaram. Num universo dominado por considerável quantidade de bens, salta também a imagem de uma personalidade austera, culta, sensível e generosa. No seu testamento, foram beneficiados os seus mais próximos colaboradores e duas instituições ligadas ao bem-fazer, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e a sua congénere setubalense – a esta última coube a herança de uma centena de contos, bem como todos os imóveis que o benemérito possuía no concelho de Setúbal.
Para se avaliar a dimensão da fortuna legada, o final do livro contém o “Inventário e Encargos do Testamento”, organizado por Cristina Gil, que refere a verba de quase 54 mil contos resultante do valor patrimonial de imóveis, de depósitos bancários, de móveis e sucata, de objectos de ouro e prata, de títulos e papéis de crédito, da venda de imóvel e do rendimento dos imóveis. A fechar a biografia, Ana Gomes considera: “ainda hoje, em pleno século XXI, decorridas seis décadas sobre a morte do benemérito, mais de uma dezena de prédios de Lisboa, oriundos da herança que confiou à Santa Casa, contribuem para manter pujante o gesto filantropo que assinou no passado.”
A obra conclui com uma útil cronologia, válida sobretudo por ser um documento que apresenta a relação do trajecto de Marcelino Igreja com as vivências histórico-sociais da época e dos lugares que o biografado frequentou, com uma bibliografia (fortemente dominada pelos documentos e registos notariais) e com a árvore genealógica do biografado. E, chegado ao final, o leitor vê-se com o retrato possível da personagem com quem conviveu ao longo de centena e meia de páginas, em tudo fiel àquele que a autora forneceu logo no início da obra, na “Introdução”: “Figura austera e discreta. Homem de firmes princípios e sólidas crenças. Republicano convicto. Espírito laborioso. Cavalheiro e distinto. Empresário invicto. Gestor hábil. (…) Personagem que a penumbra do passado torna enigmática. (…) Conquistou créditos enquanto industrial pioneiro do sector conserveiro, zeloso funcionário das Finanças ou astuto proprietário imobiliário. Para lá do êxito que colheu e do empenho que investiu em cada uma das acções a que se dedicou, em todas preferiu a sombra dos bastidores aos holofotes do protagonismo.” Esta biografia trouxe a luz possível sobre este retrato, reunindo as peças do puzzle necessário para o conhecimento de António Marcelino Igreja, dono de vida intensa e longa mas, até aqui, muito pouco conhecida.

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