quinta-feira, 16 de maio de 2013

A batalha do 9 de Abril de 1918 vista por Ferreira do Amaral



A batalha do Lys, conhecido feito militar em que os portugueses participaram em Abril de 1918, no decurso da Primeira Grande Guerra, quando estavam em campanha na Flandres, nem sempre reuniu o consenso na interpretação, sobretudo dentro de Portugal. Prova disso é a obra de João Maria Ferreira do Amaral (1876-1931) intitulada A batalha do Lys, a batalha de Armentières ou o 9 de Abril (Lisboa: Tipografia do Comércio, 1923), escrita quando o autor estava em Benguela, por 1920, inicialmente publicada “em folhetim no Jornal de Benguela”, depois em separata de um milhar de exemplares pelo mesmo periódico e, posteriormente, em volume autónomo, em Lisboa.
As razões para tal publicação, surgida no jornal logo dois anos depois do acontecimento da La Lys (e em livro cinco anos depois), refere-as o autor em “Explicação prévia”: “nunca será demais marcar factos que tão deturpados têm sido pela confusão política, que sobre tudo o que respeito diz à nossa participação na Guerra, se tem dito e escrito”. Assim, pisando um caminho em que é dada a voz justamente ao homem que coordenou o ataque à frente portuguesa, o general Erik Ludendorff (1865-1937, através da sua obra Souvenirs de guerre, de 1920), e ao general Gomes da Costa (1863-1929), que estivera nas funções de comando do Corpo Expedicionário Português na Flandres (através do seu escrito Batalha do Lys), Ferreira do Amaral insiste nas preocupações que o orientaram: elaborar “um vulgaríssimo trabalho de compilação e sobretudo um relato de pessoas, lugares, factos e datas, que a actual geração portuguesa não pode nem deve ignorar” e “apresentar os factos sem paixão, colocando-me tanto quanto possível como árbitro”. Assinalar essa ausência de paixão esbarra com o percurso do próprio autor, que esteve na Flandres e que, num outro livro, A mentira da Flandres e… o medo! (Lisboa: Editores J. Rodrigues & Cª, 1922), redigiu curta nota biográfica logo na página de rosto, dizendo que, enquanto esteve em França, “nunca quis vir de licença a Portugal” e que “marchou para França sem lhe competir por escala ou por escolha, mas simplesmente coagido por motivos de ordem pessoal e razões de ordem puramente militar”… No entanto, Ferreira do Amaral mostra-se coerente, pois não fala da ausência de paixão sem reconhecer também que desempenhará o papel de árbitro “tanto quanto possível”.
A primeira frase da sua monografia retoma o que vem da “explicação”: “Como é do conhecimento de todos, ninguém em Portugal chegou até hoje a ter uma noção aproximada do que foi o 9 de Abril”. Mas não é apenas esta ignorância que preocupa o autor, porque, umas linhas adiante, a acusação tem destinatário: “Toda a política do meu país, dos últimos seis anos, caiu [itálico do autor] sobre os soldados de Portugal, que na Flandres receberam um dos muitos e vários ataques com que os alemães procuraram vencer os aliados”. Uns parágrafos depois, o humor e a ironia de Ferreira do Amaral não perdoam as diferentes interpretações atribuídas aos democráticos e aos sidonistas, uns e outros culpando-se quanto à responsabilidade do que se passou na Flandres: por um lado, esqueceram-se ambas as ideologias “de que o general alemão Ludendorff não consultou nenhum dos partidos políticos de Portugal para tomar a deliberação de forçar o caminho de Calais nesse dia”; por outro lado, “ambos os adversários chamam desastre ao que se passou nesse dia com os portugueses, que procuraram evitar o avanço alemão até onde o seu máximo esforço o permitia”, sendo “caso para notar uma falta que ambos os partidos cometeram para se poderem acusar mutuamente – foi a de não terem enviado a tempo delegados especiais para assistirem ao desastre!”
Depois de acompanhar as leituras apresentadas por Ludendorff e Gomes da Costa, Ferreira do Amaral tenta desfazer os equívocos, apresentando os acontecimentos do 9 de Abril de 1918 como um episódio de um projecto mais vasto, ligado à estratégia militar e bélica germânica, de uma ofensiva que se iniciara em 21 de Março e teve conclusão em 18 de Julho (quando os franceses passaram a “muralha” dos alemães, assim se iniciando uma ofensiva dos aliados): “Não se julgue que o 9 de Abril se resumiu a um ataque isolado contra os portugueses, que estavam nesse dia a defender 12 quilómetros de frente. Até 25 de Abril, houve todos os dias… um 9 de Abril para ingleses e franceses, isto é, a batalha começou em 9 de Abril e acabou em 25 de Abril. (…) A anterior batalha [de Amiens] começara a 21 de Março e terminara a 4 de Abril. À batalha começada a 21 de Março chamaram os alemães a batalha da França. À que começou em 9 de Abril chamaram aliados e alemães a batalha de Armentières. Nós tomámos parte em um dia dessa batalha, o começo, e o general Gomes da Costa chama-lhe a batalha do Lys reservando assim um justo título para o nosso esforço entre os aliados, pois que nós não defendíamos Armentières, mas sim parte da bacia da ribeira de La Lys.” Se ainda assim se mantivessem os detractores da coragem portuguesa, Ferreira do Amaral deixava a lembrança: “de 18 de Julho em diante, tivera Ludendorff muitos 9 de Abril, tal qual ingleses e franceses os tiveram de 21 de Março até essa data”. E, para que dúvidas não restassem, uma citação do amigo e camarada Gomes da Costa enaltecia a participação lusa: “a 2ª Divisão Portuguesa com os seus 7500 homens perdidos, dos quais 327 oficiais, demonstrou à evidência que se bateu com bravura e com honra e que, se mais não fez, foi porque era humanamente impossível”.
O plano alemão de, através desta ofensiva, conseguir chegar a Calais e assim dominar o Norte de França não começou favoravelmente para os seus autores e, em Julho, teria o seu termo. Pelo caminho, muitos momentos semelhantes aos do sofrimento e luta dos portugueses ficaram: “que a ninguém fiquem dúvidas sobre o destino que uma divisão francesa, inglesa ou americana teria no dia 9 de Abril se estivesse onde esteve a 2ª Divisão Portuguesa – quem lá estivesse seria esmagado, atropelado e… varrido.”
Para atestar o feito português, o autor não hesita em convocar excertos de reconhecidíssimos órgãos de informação (Reuter, Times, Daily Mail, Matin) que foram elogiosos na classificação da atitude lusa. Mas o humor de Ferreira do Amaral avança, questionando os maldizentes: “Que situação resta agora aos mortos, feridos e sobreviventes da batalha do Lys?” A resposta é longa, sugerindo que talvez todos tenham de “pedir desculpa ao cidadão português”, uns porque não resistiram “à caqueirada de ferro”, outros por “não lhes ter sido possível morrer” e outros “por não terem fugido logo de manhã”…
O próprio comandante do CEP, o general Tamagnini de Abreu (1856-1924), não é poupado, sendo invectivado de forma contundente: “O que diz do 9 de Abril o general português Tamagnini de Abreu, comandante do CEP? Até agora não disse nada nem dirá nunca, porque as maçadas estão proibidas”. E os políticos também não escapam a acusações e ironias: “Ludendorff nesse dia atacou os soldados de Portugal que encontrou pela frente e deixou em paz todos os nossos políticos”.
É, pois, sugerido ao leitor que aqueles que foram heróis estão isolados e desprezados, mesmo quando o valor lhes é reconhecido por alguns. No entanto, este livro quer repudiar essa ideia transmitida pela depreciação e conclui com uma lição sobre o mérito, depois de mais um libelo contra quem desprestigia uma condecoração como a Cruz de Guerra Portuguesa, contra os comentários depreciativos movidos pela inveja e pela mesquinhez: “em qualquer dos países que se bateu nesta guerra, vencido ou vencedor, [o soldado português] sentiria que era duas vezes cidadão: primeiro porque tinha uma bandeira que representava para todos (…) um símbolo de tradições honrosas (…); segundo, porque os seus compatriotas se sentiram honrados por Eles e pelo Seu Esforço Particular e Pessoal no campo aberto aos maiores sacrifícios”.
Em pouco mais de sessenta páginas, Ferreira do Amaral pretendeu chamar a atenção para o estado do CEP, para as dificuldades que lhe tinham sido criadas e para a singularidade do combatente português. Foi uma maneira de dar azo a que a verdade saltasse e a que a história fosse reconstruída.
[Esta obra está disponível no formato e-book]

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