O
livro que temos perante nós e que aqui nos trouxe hoje (Jorge Calheiros. “Je suis le pianiste!” – A vida e a música
de Rui Serodio. Linda-a-Velha: DG Edições, 2013) valerá por muitas razões,
mas sobretudo por esta: é uma prova de amizade. Assim, sem adjectivos, sem
intensificadores. Uma prova de amizade em tudo aquilo que estas palavras querem
dizer. Poderemos vir a gostar deste livro por muitas razões, mas continuaremos
a apreciá-lo por este gesto intenso que é o de um livro falar sobre alguém e
ser-lhe dedicado ou oferecido, em simultâneo. Uma prova de amizade, de
irrefutável amizade, pois.
Jorge
Calheiros nunca terá pensado escrever um livro. No entanto, fê-lo. E a mola que
o impulsionou foi a mesma que consolidou um relacionamento de anos de convívio
e de amizade. Sem outros alcances que não os do afecto e de manter a memória.
Viva, claro, porque a memória é sempre uma forma viva de se estar.
Veja-se o primeiro parágrafo
do “prefácio”: “Nunca fui, não sou, e provavelmente nunca serei um escritor.
Mas decidi escrever um livro, o que me colocou desde logo inúmeras questões. A
primeira de todas foi: como fazê-lo?” Expressas as dúvidas e as hesitações, a
reflexão chega a uma certeza: “Sentado na minha varanda, com um café já meio
frio, numa contínua pesquisa da inspiração, encontrei a solução: Vou escrevê-lo com o coração! E assim
ficou definida a forma como escrevi este livro.”
Quanto ao título, não tem o
leitor dúvidas: é uma biografia e, como tal, conta-nos a vida de alguém.
Cruzando o título com o que o prefácio relata, outra certeza o leitor terá: é a
vida de alguém, narrada por quem também entra na história. Esta obra vai então
muito além da biografia, uma vez que é também testemunho de uma amizade vivida
e, se dúvidas existissem, bastaria estarmos atentos à forma como o herói desta
história é tratado – o seu nome quase sempre antecedido do determinante “o”,
que revela a familiaridade do protagonista biografado com o protagonista que é
também o biógrafo. Esta obra não fala apenas “de” Rui Serodio; fala sobretudo “do” Rui. Uma escrita de afecto, ainda por cima partilhada por
várias mãos.
“Je suis le pianiste!” – A vida e a obra de Rui
Serodio é um livro que se constrói
com base numa trindade: por um lado, o relato da vida do Rui segundo uma
perspectiva nada isenta de amizade, como vimos; por outro lado, os textos de
Rui Serodio, uns narrativos, outros críticos, muitos autobiográficos; de outro
ângulo ainda, os apontamentos testemunhais de mais de três dezenas de amigos do
Rui (lista em que estou incluído). Chamei “trindade” a esta conjugação porque é
impressionante o retrato que resulta no final, sobretudo do ponto de vista da
conjugação de observações, da sobreposição de opiniões: não é um rol em que os
convidados vão todos dizer bem; é um conjunto de experiências muito
diversificadas no calendário, na duração, nas condições, nos propósitos, em que
as opiniões testemunhadas se rendem perante a particularidade e a genialidade
de uma figura como a de Rui Serodio, na sua bonomia, no seu saber, na sua
sensibilidade, na sua postura perante a vida, na sua superioridade de homem bom,
disponível e aberto. Se todas as testemunhas deste círculo tivessem combinado
previamente o que iriam fazer, o retrato não sairia por certo nem tão completo,
nem tão coincidente!...
A escrita de Jorge Calheiros
acompanha o percurso biográfico de Rui Serodio em variadas áreas: na
profissional, na artística, na familiar, sempre com o preceito da informação
exacta e objectiva, eivada de histórias presenciadas, de situações de humor,
frequentemente dando a palavra ao biografado, seja através da evocação de
acontecimentos, seja pela reprodução de mensagens trocadas. O tom, ora
narrativo ora descritivo, de precisão, permite ao leitor o convívio com Rui
Serodio. E quem o conheceu facilmente o ouvirá ou o sentirá ali ao pé, com o
seu humor e simplicidade desarmantes, como nesta situação: “Muita gente tratava
Rui Serodio por maestro, ao que ele
normalmente respondia: Eu não sou
maestro! (…) Um dia comentou: Não sei
por que raio as pessoas me chamam maestro! Talvez seja do cabelo e barba
branca, que dão assim um ar distinto…”
Ao longo das quase 130
páginas de discurso biográfico, fica o leitor perante uma história completa,
com certezas e emoções, acompanhando as inconstâncias e as paixões de uma vida.
O relato é de tal forma vivo e dinâmico
que, por vezes, se tem a ilusão de que se está a ler (ou a ouvir) uma conversa
entre Rui Serodio e Jorge Calheiros, um género de tertúlia em que se vai
contando uma vida, repondo histórias.
No grupo de textos de Rui
Serodio impressiona o ritmo da escrita, ficando o leitor com a sensação de que,
muitas vezes, se oscila entre um trecho musical, a cena de um filme ou o
próprio texto escrito, tal é o poder descritivo e narrativo, tal é o empenho
que o narrador empresta ao discurso. O primeiro texto, uma magnífica evocação
da mãe, intitulado “Berta”, assenta na perspectiva autobiográfica, aliando
coisas aparentemente inconciliáveis – a história de um certo desprendimento
entre pessoas que se admiram e amam, a amargura pelo que não se partilhou e a
confidência com a memória, tudo rematado com uma homenagem salutar e
revitalizante: “Conservei muito do que ela
me transmitiu: a resignação, a reserva comedida das atitudes, o respeito pelos
outros, o silêncio em vez do espavento, o convencimento de que, se existimos, é
para cumprirmos uma missão que nos foi destinada, sem pedir nada em troca. E,
se nascemos com um dom especial, não nos devemos vangloriar disso, mas sim
cultivá-lo e partilhá-lo com quem o queira apreciar. E agradecer a Deus por nos
ter concedido o privilégio da diferença. E nunca – mas nunca – querer parecer
ou ser o que se não é.” Este parágrafo é muito mais do que uma lembrança: é
uma herança que se reconhece, é um testemunho, um acto de amor e um testamento.
Que belo conjunto de ensinamentos para se poder estar num mundo melhor!
Por estes textos passam as
imagens da(s) mulher(es) da sua vida, retratos de Setúbal, a valorização do
autor e do respeito pela criação artística, as pequenas epopeias de uma vida, o
humor sobre si próprio, a pedagogia pela música, a prática auto-reflexiva, o
registo de pequenos momentos de prazer que a vida vai segredando e até um texto
para memória futura – umas quase memórias póstumas – teatralmente intitulado “A
cerimónia de encerramento”. Tão importantes como as suas composições musicais,
estes textos de Rui Serodio captam o essencial das coisas, bem tecidos, certeiros,
delicados, tendo sempre a acompanhá-los um narrador experimentado e em estado
de bem com a vida.
Quanto aos testemunhos dos
amigos, a sua leitura complementa os anteriores, pois impressiona ver como,
sendo oriundos de diversas longitudes de convivência ou de variadas latitudes
de geografia, todos se rendem a essa figura ímpar que foi o Rui Serodio. Fica a
sensação de que não se está perante a homenagem forçada e conveniente, antes se
caminha na estrada da sinceridade e na linha da descoberta e da aprendizagem
que foi ter encontrado esta personagem em dado momento do percurso. Esta
perspectiva é tanto mais aliciante quanto alguns dos que testemunham nem sequer
conheceram o Rui pessoalmente, mas só através da comunicação virtual e, claro,
com a música como mediadora, como ponte, que é como quem diz com a
sensibilidade do Rui.
Fecha o livro o “epílogo”,
assinado pelo autor desta obra, escrito sob a forma de carta, dirigida pelo
biógrafo ao biografado. É a satisfação pelo cumprimento de um dever – o da amizade,
o da preservação da memória. É o prazer por este bocado de tempo, em mais de
trezentas páginas, ter permitido a recordação de muitos momentos de
aproximação. É o assumir da emoção como um dos motores e uma das condicionantes
desta obra. É o confronto com a insuficiência em que a palavra se torna quando
o que está em causa é a amizade. É a manifestação da impossibilidade de voltar
a viver tudo de novo: “Tentei contar a tua história. Mas nunca, mesmo nunca, os
versos da Manuela de Freitas significaram tanto como neste momento. Na verdade…
eu só sei contar a história / da falta
que tu me fazes.”
Como leitor que fui desta
obra quando ela estava já em gestação adiantada e como amigo que também tive a
sorte de ser do Rui, termino com a expressão que Ana Carvalho relembra ser
usada pelo Rui de cada vez que acontecia um ensaio do grupo “Afina Setúbal”:
“hoje fez-se magia”! E devemos agradecer isso ao Jorge Calheiros e ao Rui
Serodio!
[Na apresentação do livro, ontem, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal.]
OBS 1: O projecto levado a cabo por Jorge Calheiros inclui, além da edição da biografia, a edição de 5 cd's com as composições musicais inéditas de Rui Serodio. Além de poderem ser adquiridos em livraria, estes materiais estão também disponíveis em http://www.m-oceans.com/
OBS 2: Documento videográfico desta sessão de apresentação, assinado por Simões da Silva, pode ser visto aqui.
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