O nome de Domingos Garcia Peres não é desconhecido na
cidade de Setúbal, seja pela inserção do seu nome na toponímia (um beco, um
largo e uma rua), seja pela existência de um fundo bibliotecário com o seu nome,
doado em 1964 para integrar o Museu da Cidade. No entanto, a sua biografia,
baseada em fontes e estabelecida com rigor, teve de esperar até aos finais de
2012, em que foi assinalado o bicentenário do seu nascimento, a acompanhar uma
exposição, uma e outra actividades devidas a António Cunha Bento, Carlos Mouro
e Horácio Pena.
A biografia, intitulada Domingos Garcia Peres (1812-1902) – Um setubalense pelo coração
(Setúbal: Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, 2012), é justificada pelo acto
comemorativo, pela admiração que esta personalidade despertou em vida, pela sua
intervenção cívica e cultural assente em Setúbal mas fazendo a ponte com outros
meios (foi clínico e deputado e manteve colaboração e amizade com o bibliógrafo
Inocêncio da Silva e com o espanhol Menéndez y Pelayo, eruditos de renome na
área da cultura).
Thomaz de Mello Breyner, médico e amigo de Garcia
Peres, no elogio fúnebre do amigo, caracterizou-o como “homem que nunca fez
falar de si, por ter sido dotado de uma modéstia tão grande como era o seu
coração, a sua inteligência e o seu saber”. Estas qualidades determinaram a
admiração, mas não podem ser responsáveis por um desconhecimento sobre a sua
personalidade que levou tanto tempo a ser suprido, mesmo em Setúbal, terra onde
esteve ligado a eventos e criações importantes como o exercício da medicina, a
eleição como deputado, a intervenção no Asilo da Infância Desvalida, a
participação na Sociedade de Recreio Familiar, a fundação da Sociedade
Arqueológica Lusitana ou a autoria de uma obra importante para a bibliografia
como o Catalogo razonado biográfico e
bibliografico de los autores portugueses que escribieron en castellano (obra
de uma vida, publicada em Madrid em 1890).
Fruto das suas viagens a Espanha, Garcia Peres teve
ainda possibilidade de, resultado do acaso, ter conhecido Hans Christian
Andersen e com ele ter viajado entre Madrid e Lisboa, em Maio de 1866, época em
que o escritor dinamarquês visitou Portugal a convite dos seus amigos O’Neill
(tendo permanecido cerca de um mês em Setúbal).
A biografia que Cunha Bento, Carlos Mouro e Horácio
Pena assinam passa por todos esses aspectos e momentos da vida deste alentejano
nascido em Moura, que, aos 34 anos, chegou a Setúbal (depois de quatro anos em
Alcácer do Sal) e que pelas margens do Sado se deixou ficar, numa ligação
intensa à terra. Lidaram os três autores com variadas fontes, sobretudo do
Arquivo Distrital de Setúbal, da imprensa sadina da época e da correspondência
entre Peres e Pelayo, o que permitiu corrigir informações que têm sido
divulgadas sobre o biografado, assim se revendo os seus aspectos biográficos.
Num texto preocupado com o rigor e com informação
exigente, bem anotado, esta viagem pela vida de Garcia Peres não esquece mesmo
a recolha de testemunhos sobre a personalidade e o quotidiano do médico
alentejano, resultante de uma leitura que permite inclusivo que o biografado se
autorretrate, como se pode verificar em duas passagens bem reveladoras do seu
sentido de humor e de disponibilidade – ao escrever sobre a sua prática em
Alcácer do Sal, referirá: “ali desfalquei a humanidade até 1844”; em
correspondência com Menéndez y Pelayo, dirá: “de há muito que seus são todos os
meus livros”, numa prova de permuta incondicional que girava em torno das
bibliografias entre os dois autores, levada ao extremo, quando numa outra carta
o desafia para lhe renovar a assinatura de uma revista espanhola e redigirá numa
outra carta um pacto de troca em termos humorísticos – “a respeito de contas
creio-as saldadas; saqueemo-nos mutuamente, segundo possamos; eu, pela minha
parte, não deixarei de tentá-lo; faça Você o mesmo e veremos depois quem leva a
melhor.”
Figura
grada no seu tempo, que suscitou admiração e esteve envolvido em marcos
importantes para a história sadina, Garcia Peres tem agora o ensaio biográfico
que merecia, enriquecido ainda com alguma documentação fotográfica e com uma
tábua cronológica. Um documento cheio de interesse e, sobretudo, credível.