Duas
mulheres, dois livros. Duas mulheres ligadas a Setúbal, duas mulheres
conhecidas pelo seu compromisso social e político, duas mulheres que (se)
escrevem, em duas boas propostas de leitura.
De
Alice Brito saiu já há uns tempos a narrativa de ficção As mulheres da Fonte
Nova (Lisboa: Planeta, 2012), um romance que, sem exagero, pelo menos os
setubalenses deveriam ler, não só por uma questão de apreço por uma autora
local, mas sobretudo pelos vectores de identidade ligados à cidade do Sado que
por esta obra ressaltam.
Dispenso-me
de contar a história que povoa o livro. Mas chamarei a atenção para essas
personagens que são a cidade e as suas gentes, ondulantes, uma e outras, pelos
meandros de uma trama de famílias, de política, de grupos sociais, de tomadas
de posição. Não há uma única referência ao nome da cidade, mas também não era
necessária porque o topónimo Fonte Nova não deixaria enganar… No entanto, todas
as referências a sítios ou ruas são facilmente reconhecíveis para os
setubalenses. Assim se transforma uma história local(izada) em algo cujo
interesse ultrapassa essa fronteira, haja em vista o retrato social
apresentado, por exemplo, que não é exclusivo de Setúbal.
De
um ponto de vista de informação, o livro de Alice Brito, apesar de ser uma
ficção, introduz o leitor no ambiente vivido na cidade conserveira entre os
anos 30 e 70 do século passado, caracterizando uma época e dando ideias sobre a
intervenção política, sobre o papel da mulher, numa cidade e numa sociedade
grávidas de contrastes e de contrariedades.
É
uma história bem contada, bem escrita, com imagens muito sugestivas, num jogo
assumido entre narradora e personagens, saltando entre o tempo da narrativa (no
passado) e o tempo do leitor (no presente), criticando, reflectindo. Uma obra a
ler, repito.
Maria
Barroso é trazida para esta crónica devido ao projecto que o semanário Sol está a levar a cabo: uma edição em 18 volumes, com publicação semanal, reunindo
duas obras – oito fascículos de correspondência, Cartas a Mário Soares
(1961-1974), título constituído pelas missivas enviadas por Maria Barroso ao
marido durante o seu tempo de prisão, de viagem, de degredo ou de exílio, e dez
fascículos memorialísticos, Álbum de memórias, redigidos pelo jornalista
Vladimiro Nunes.
A
ligação de Maria Barroso a Setúbal vem contada no segundo volume das memórias –
na sua infância, entre 1926 e 1935, viveu em Setúbal e episodicamente em
Palmela, acompanhando a mãe, professora que foi nestas duas localidades, e o
pai, militar em Setúbal, com interrupções várias. Há ainda a ligação de Maria
Barroso ao poeta Sebastião da Gama, recordada no quarto volume das memórias,
conhecimento e amizade vindos desde a Faculdade de Letras.
Se
as biografias são importantes para o leitor se confrontar com trajectos de vida
singulares, não menos interessante é o passeio pela correspondência produzida
pela imagem que o próprio de si dá, sem intermediários, sem preparação
propositada, retrato espontâneo e descomprometido, ainda por cima quando se
trata de cartas dirigidas a familiares.
As
cartas de Maria Barroso para Mário Soares revelam uma mulher actuante,
assumindo todos os compromissos familiares, profissionais e sociais em seu nome
e em nome do marido. Por aquelas cartas passam valores, momentos de desabafo,
preocupações, considerações sobre a vida e sobre a política, combates à
solidão, afecto e preocupação, dádiva, organização e necessidade de lutar e de
trabalhar, acompanhamento dos filhos e dos familiares, entendendo o leitor que
a intenção de Maria Barroso era a de tornar o mundo familiar presente a Mário
Soares, assim impedindo que as interrupções da vida em comum equivalessem a
descontinuidades e possibilitando que os projectos em que estavam envolvidos
pudessem continuar a ser gizados a dois. São cartas que apaziguam quem as
escreve e que pretendem idêntico efeito no destinatário, que se alicerçam na
partilha e na comunhão para que o sofrimento das lonjuras seja, pelo menos,
esbatido.
Duas possibilidades de leitura de escritas no feminino, uma e outra eivadas de um sentido de intervenção e de responsabilidade cívica, uma e outra devidas a mulheres que se cruza(ra)m com Setúbal em áreas diversas e em tempos vários. Alice Brito e Maria Barroso, uma na ficção e outra no testemunho, são dois bons nomes para leitura nestes tempos de certa desolação e aridez.
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