Ulrich von Kremer, Tõnu Prillup e
Mari constituem o trio de personagens que motivam a narrativa de O leiteiro de Mäeküla (1916), do
escritor estoniano Eduard Vilde (1865-1933), numa saga que se alimenta dos
contornos psicológicos dos actores, sobretudo Kremer e Prillup, amo e
trabalhador, respectivamente, passada nos arredores de Tallinn na última década
do século XIX.
Mari é personagem quase remetida
ao silêncio, com escassa caracterização, apesar de ser ela quem domina a
história e quem lhe põe um fim. Prillup, que virá a ser “o leiteiro de Mäeküla”,
vive com os filhos ainda crianças e com Mari (que veio substituir a irmã,
esposa de Prillup, entretanto falecida). Kremer deixa-se fascinar pelos
encantos de Mari e propõe a Prillup um contrato: dar-lhe-ia o lugar de leiteiro
se ambos partilhassem os amores da rapariga, Prillup enquanto marido e Kremer
como amante, um pacto com o seu quê de diabólico.
Ansiando desde há muito um melhor
lugar nas quintas de Kremer, vivendo a desejar as riquezas que podiam advir da
função de leiteiro (notadas na prosperidade de quem desempenhava essa função no
momento), deixando-se levar pela sua ambição, querendo também agradar ao
senhor, Prillup acaba por conversar com a mulher no sentido de ser dado
cumprimento ao contrato, que, após alguma rejeição, acaba por ser iniciado e o
lugar cobiçado de leiteiro muda de mãos e Mari passa a desempenhar também o
papel de amante com a concordância do marido.
O romance constrói-se com o
debate interior de Kremer e de Prillup quanto às dúvidas, ao pecado, à ambição,
à coerência, aos sentimentos. O negócio acabará por não ser tão vantajoso quanto
era imaginado e Prillup começa a viver a amargura da solidão, do insucesso
material, das dívidas, da falta de amor, enredado numa teia que o derrubará. E
quando se pensa que von Kremer vai ter Mari apenas para si, leitor e personagem
são enganados, porque a rapariga que viveu a história quase sempre calada e
sendo o objecto dos dois homens rejeita a proposta do amo: ia finalmente viver
para a cidade, a sua ambição máxima e promessa que Prillup lhe fizera para a
convencer a entrar no pacto. E mesmo perante a insistência do pedido de Kremer
a resposta é certa e decisiva: “Quando estiver na cidade, quero ser um pardal,
não um canário numa gaiola.” Depois, qual gesto de ironia e de sarcasmo
direccionado para os costumes, “solta uma risada alegre e vai-se embora.”
Por este romance passam temas
como a independência da mulher, a imagem do campo e da cidade como opressão e
como libertação, o domínio dos camponeses estonianos pela nobreza germânica, o
papel da religião com alguma hipocrisia à mistura. A trama que anima O leiteiro de Mäeküla (Col. “Nova
Europa”. Lisboa: Cavalo de Ferro Editores / Grande Reportagem, 2004) prende o
leitor, mesmo quando se confronta com as fraquezas dos actores, sobretudo pela
densidade psicológica posta no trabalho com as personagens, um quase desempenho
laboratorial à maneira de Zola, que ajuda a perceber a complexidade das decisões
humanas, seja no desculpar os momentos de fraqueza (“Não é humano desejar o
fruto proibido?”, argumento retórico de von Kremer para justificar a proposta a
fazer a Prillup), seja na dificuldade de encarar as mais duras realidades (“As
palavras importantes são sempre as mais rápidas.”, lembra Mari a von Kremer a
uma página do desfecho).
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