No conjunto de 22 crónicas sob o título Paris (Lisboa: Tinta da China, 2010), Julien Green (1900-1998) faz a sua escrita deambular pela Paris luminosa ou nocturna, em paz ou sofredora, num encontro com a história, com episódios quotidianos, numa despedida ou num reencontro, antes ou depois da guerra.
Nestes textos, traduzidos por Carlos Vaz Marques, surgem marcas do tempo de escrita, firmadas por referências de alteração da cidade ou por convulsões da história. E o leitor percorre os becos, as escadas, os espaços abertos, as zonas mais frequentadas ou as ruelas de uma cartografia quase particular, ora sentindo o chão calcorreado pelo viandante que testemunha e sente, ora sobrevoando telhados e contemplando artérias que vão dar aqui ou ali, que se encontram.
É uma escrita de afectos aos lugares, desviando o leitor das turísticas peregrinações, mas levando-o a ouvir praças, monumentos tempos. E convidando-o ainda a incursões cronológicas, com recuos a outras eras, através do abrir de uma porta ou da visita a um templo.
Green localiza-se na cidade e revisita o espaço em que também fez viver algumas das suas personagens. Preocupa-se com as imagens que guarda do passado e alerta para o futuro, sentindo as ameaças sobre a cidade, que é também o seu ninho de afectos.
Não é um roteiro para seguir, é um roteiro seguido, experimentado, vivido, pessoal, que ensina a olhar, a viver, a sentir a cidade. É Paris na sua magia, com apelos para a memória, para o equilíbrio, para a natureza da cidade em que se passeia, se deambula. E mesmo numa capital como esta pode haver lugar para uma carta que é declaração de amor às árvores, como é o caso do texto “Escuta, lenhador…”, em que elas, as árvores, mostram as suas vantagens: têm a seu favor “o silêncio dos amantes, as brincadeiras das crianças, as divagações dos solitários e um povo livre e sem constrangimentos, ou seja, os pássaros.”
Deixando-se levar por uma escrita onde não falta o pendor memorialístico e uma observação apurada, o leitor é sub-repticiamente levado a agarrar ou a deixar-se agarrar pela cidade.
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«A cidade, efectivamente, sorri apenas àqueles que se aproximam dela e que deambulam pelas suas ruas; a esses, ela fala numa linguagem tranquilizadora e familiar.»
«A não ser que se tenha perdido realmente tempo numa cidade, ninguém poderá considerar que a conhece bem. A alma de uma grande cidade não se deixa apreender facilmente; é preciso, para se comunicar com ela, termo-nos aborrecido, termos de algum modo sofrido nos lugares que a circunscrevem.»
«O viajante, por mais que fale, parece, quando termina, não ter dito nada. Isto porque quereríamos que ele nos oferecesse a cidade inteira, que ela nos fosse entregue com o murmúrio das suas ruas e o sol sobre as casas e o alvoroço das crianças nas praças; ele não nos traz mais do que uns ecos disso.»
«Um dos segredos das grandes cidades é proporcionarem aos flâneurs passeios cujo encanto se torna por vezes inexplicável, e por muito que me digam que a minha satisfação resulta do facto de as casas serem belas, as alamedas longas e as pedras antigas, há algo mais a que as palavras não podem senão fazer uma vaga alusão: uma certa ligeireza íntima que nos é dada pela presença de uma árvore perto de um telhado, ou por uma rua ensolarada, pela súbita frescura de uma cúpula negra sob as arcadas altivas de um palacete de outrora.»
«Há na paisagem parisiense qualquer coisa de tão perfeitamente indefinível como na expressão de um rosto humano.»
«[As estátuas] são um pouco como que sentinelas desse mundo de pedra, de bronze, de mármore, espiando de perto, em certo sentido, as nossas atitudes incompreensíveis, tal como é incompreensível para o homem comum a agitação dos insectos.»
«Enquanto jovem, eu só tinha um desejo quando chegava o bom tempo: partir, ir passear para longe com os meus desejos e os meus sonhos, que por vezes se misturavam, mas, com o passar dos anos, apercebo-me de que todos os horizontes longínquos se reúnem e de que os percorremos muto melhor intimamente.»
«Vivemos, à beira do século XXI, com ideias absolutamente retrógradas, em particular na forma de construir as nossas cidades. Não se trata de querer abolir o passado, mas de o usar como memória, e o inventário que o futuro fará é antes de mais o de tudo aquilo que as várias gerações nos ofereceram de mais belo desde a primeira pedra talhada pelo homem.»
«Desde que nasci, no XVII bairro, perto da porta des Ternes, depois das guerras e dos anos de exílio, e mesmo depois de todas as viagens que me levaram a quase todo o lado onde queria ir, vim reencontrar a minha cidade-natal com uma admiração igualmente intensa de cada vez que regressei.»