Ler Memórias entre um sorriso (Setúbal: ed. Autor, 2009), de Fernando Guerreiro, é um exercício de visita a um poeta, de entrada num mundo que se nos dá a revelar no seu presente e no seu passado, um franquear de portas pelos caminhos da memória, uma inscrição de um “eu” na história, na sua própria história, sempre a oscilar entre o que sente e o que foram os momentos com os outros. Não é por acaso que Fernando Guerreiro foi buscar para o título a palavra “memórias”! Na verdade, falar desta poesia fica incompleto se não se disser o quanto a memória por aqui foi trabalhando, o quanto ela se transformou num motor e numa fonte, recolectando os dias e os momentos, salvando o tempo.
Fernando Guerreiro, que assumiu no texto prefacial não ter o direito de submeter os amigos à prova de escreverem uma introdução para o seu livro, sabe que um diário ou as memórias são algo que constrói a fronteira da intimidade e do privado. Foi por isso que inaugurou o seu livro com um prefácio por si mesmo assinado, enquanto autor da obra, para dizer ao leitor que o objecto que lhe cai nas mãos está regado pelos afectos de uma vida, faz parte de “um Diário vivido e escrito em verso, sem retórica poética nem gramática cuidada”. Temos, pois, retratos dos dias de um “eu”, que podem ser lidos entre duas balizas: a da sinceridade, se acreditarmos que um diário é um depósito da autenticidade, ainda que mediada pela escrita, e a do artifício da escolha (nos textos seleccionados a partir de um período que desfila entre 1961 e 2008) e da forma (escolhendo o verso).
Mas estes poemas, além de terem essa marca do tempo, possuem também o desejo da inscrição, do partilhar instantes, sentidos e sentimentos com os outros, do fazer a história de um poeta, da recusa do esquecimento. A dado ponto do prefácio, há a confidência que alia a vida, a escrita e a publicação: “Ao chegar à minha idade e sem descendentes, olho para o espólio que juntei toda uma vida: os papéis que escrevinhei, as cartas que recebi, as dedicatórias que me escreveram, as honras com que me distinguiram, e surge-me uma pergunta angustiante que nunca tinha feito antes: quando eu partir, para onde irá tudo isto? Os livros, os quadros, as fotos, o Tempo e a traça se encarregarão de lhes dar destino. Mas aquilo que eu escrevi? Os Meus Afectos? Bolas!, ao fim e ao cabo são bocados do meu sentir, pedaços de mim, que, mal ou bem, com todos os meus defeitos e algumas possíveis qualidades, fui eu! É, pois, com este pensamento que deixo este livro a todos aqueles que o desejarem ler como prova incontestável de que existi.” Ora, o tal diário, a escrita, o livro ganham força porque atestam, porque comprovam que um “eu”, num determinado tempo e num não menos determinado lugar, existiu. A palavra escrita é, pois, o testemunho da existência, da vida. E tudo isto poderia ser uma verdade lapaliciana se não lhe associássemos, como temos de fazer, o facto de um autor se dizer e o pormenor de este autor ser também… actor! Duplamente actor, portanto: na profissão, porque representa, e como protagonista de uma vida, porque age.
Em cinco partes se apresenta dividido este livro, todas elas com título a preceito, insistindo na ideia do compromisso do poeta com a sua escrita e com a sua vida como objecto dessa escrita: “Folhas soltas de um diário” (a parte mais longa), “Gritos do meu silêncio”, “As marés do meu sentir”, “Pegadas do meu caminho” e “Foi pelo sonho que fui”.
Em todos estes títulos está nítida a presença do “eu”. Depois de se ter assinalado a marca da escrita diarística, vale a pena chamar a atenção para os títulos das duas partes seguintes, ambas manifestações do conflito que vai no poeta – o leitor ora é dominado pelo paradoxo entre os “gritos” e o “silêncio”, presente no título do segundo grupo de poemas (“Gritos do meu silêncio”), uns e outro impossíveis de conciliar e denotando uma veia lírica que canta as “coisas do coração”, o amor, os sentimentos, as dúvidas, a saudade, o que fica no interior do poeta, bem como é surpreendido por alguma sintonia ou identificação entre as “marés” e o “sentir”, constante no título do terceiro grupo (“As marés do meu sentir”), onde surge um conjunto de poemas que parte, muitas vezes, de circunstâncias ocasionais como um pombo no quintal, uma mosca incómoda, uma data, um momento de ironia, um beijo.
Se de conflito falei, entendido enquanto motor que suscita a acção, que desperta o “eu”, para as partes anteriores, creio que os dois últimos grupos de poemas são mais apaziguadores, levam o poeta mais ao encontro de marcas de identificação, venham elas do exterior ou tenham o “eu” como ponto de partida. A atenção dada ao papel do outro é sobremaneira visível na quarta parte (“Pegadas do meu caminho”), constituída por poemas sobre os amigos, sejam eles contemporâneos do poeta (e alguns têm acção bem conhecida no nosso meio e servem também para pontuar a tal dimensão autobiográfica deste livro, na medida em que são marcas de um tempo, de um lugar e também de uma vida) ou referências culturais que dominaram esse mesmo poeta, como são os casos de Bocage e de Sebastião da Gama, e um sobre a escola (por onde passam o afecto do apego – no uso do possessivo, “à minha escola” –, os professores e o tempo da infância, além de uma certa mística trazida pela memória da Escola Conde Ferreira, num tom que igualmente comprova o pendor memorialístico que Fernando Guerreiro quis imprimir neste livro).
Mas a vida, enquanto itinerário próprio, enquanto caminho assumido e construído pelo andar de um “eu”, surge forte no grupo de poemas que fecha a obra, intitulado “Foi pelo sonho que fui”, valendo recordar a resposta que esta afirmação pode ser ao convite deixado por Sebastião da Gama quando dizia “Pelo sonho é que vamos”, sendo também importante que neste conjunto vejamos aquilo que poderia ser um manifesto de vida, pois é nele que encontramos os poemas mais intensos do ponto de vista do retrato a legar, uma espécie de chave para desvendar todas as contradições de uma vida, com títulos em que a exposição do “eu” surge mais vincadamente explícita – “Liberdade em Sol Maior”, “Contabilidade”, “Autobiografia” e “Introspecção”.
Em torno dos poemas de Fernando Guerreiro ronda o amor, numa inconstância permanente e absoluta, ora sentido através do outro, ora acentuado no desejo, por vezes violento, outras vezes reduzido ao sexo, muitas vezes platónico, frequentemente causa de decepção, rondado pelo ciúme, deixando amargura, recalcamento, numa insegurança forçada porque “não há solução / para um coração quebrado”, porque o poeta se confessa farto de uma paixão que é “um ser e não ser”. Enquanto vamos passando pelos retratos – ou pelos momentos – que do amor nos falam nos poemas deste Memórias entre um sorriso, dificilmente não nos vem à memória aquele conclusivo e paradoxal terceto camoniano que irrompe depois de o poeta ter tentado definir o amor: “Mas como causar pode seu favor / Nos corações humanos amizade, / Se tão contrário a si é o mesmo Amor?”
A ironia suplanta muitas vezes a amargura e a resposta é dada, frequentemente, pela provocação, tom que surge evidente num texto como “Leilão”, em que o poeta anuncia pôr os seus sonhos à venda e, depois de fazer desfilar a variedade sonhadora, conclui num terceto: “Os meus sonhos estão à venda! / Vá, meus senhores! / Quem dá mais?” Esta marca provocatória, mesmo caprichosa, surge também dirigida a um “tu”, como em “Coisas do coração”: “Não quiseste quando eu queria, / Agora não quero eu…” Contundente provocação e não menos instigadora ironia ressalta também da definição de beijo num poema eivado de uma certa modernidade – depois de uma busca de definições sobre o beijo, que incluiu um passeio pela internet, o poeta conclui com a sua sapiente, defensiva e algo perversa opinião: “Eu, depois de tanto ouvir, / só tenho para dizer / com tantas explicações, / que o Beijo cá para mim / é forma de contrair / Gripes e Constipações!” O beijo serve, aliás, vários poemas, ainda que em registos diferentes – acentua, por exemplo, o amor e o início de uma relação (“Começámos com um beijo / o que eu chamo namorar”, no texto “História com princípio e fim”, temporizado por esse beijo e pelo final violento de uma bofetada, narrativa com o seu ingrediente de ironia no final – “E se aquele nosso começo / foi de forma apaixonada, / não foi menos engraçada / a bofetada do fim.”) Noutro passo, o beijo serve para despoletar os sentidos (“Quando me beijas gemendo / na tua sensualidade, / eu sinto que esses beijos / não acalmam meus desejos / nem me anulam a vontade.”, no poema “Indiferença”); num outro momento, o beijo é atirado “com a ponta dos dedos” para logo a seguir o poeta se interrogar sobre como terá ele sido recebido – e, uma vez mais, uma certo tom irónico conclui o raciocínio: “Se foi bem, / fico contente!... // Se foi mal, / olha… / Paciência!”
Pormenor bem significativo no campo dos afectos que neste livro perpassam é o olhar, seja o que irradia dos olhos do outro, seja o que decorre do gesto de contemplar através dos olhos próprios. É o poeta quem confessa esta fusão entre olhares, num fascínio mútuo – “Teu olhar não sei / o que é que ele tem, / uma coisa é certa: / ver-te sabe bem!” Noutro momento, deixa-se enredar na confusão suscitada no outro através do olhar – “Estou a ver como estranhaste / minha maneira de olhar”. Num outro texto, o olhar do poeta atinge um quase estado de encantamento, deixando-se levar pela imagem de um ser pouco preciso, quando regista: “Meus olhos seguindo o mover dos teus dedos / (…) / Meus olhos prendidos / ao mover dos teus lábios” Outra vez a sugestão camoniana do outro enquanto ser indefinível, em que se alicerça o amor platónico, sempre desejado e alimentado, mas nunca materializado. E, para que o poder que irradia de uns olhos fique completo, não podia faltar o fado ou a sorte, associado ao olhar, como acontece na “Balada dos olhos verdes”, estes definidos como “meu veneno, / minha razão de viver, / minha cura, / minha vida, / meu doce enleio de morrer. / (…) / Meu destino!”
Regressemos à questão autobiográfica, por ser essa a que abre e fecha o livro. O último grupo de poemas assume esse tom, mesmo porque um dos poemas se intitula “Autobiografia” e outro “Contabilidade”, títulos que se complementam porque uma escrita sobre o “eu”, sobre si próprio, é uma forma de registar o deve e o haver da vida. O último poema, não menos significativamente intitulado “Introspecção”, é uma despedida dos leitores e um quase pedido de desculpas – é que, no prefácio, Fernando Guerreiro recusara ser dominado pela “retórica poética” e, no final, o poeta, falando também de si, afirma a distância que está entre a Poesia (com P maiúsculo) e a sua obra – “Nós, os outros agraciados / por alguma habilidade, / apenas podemos dar / à Grande Mãe Poesia, / uns versos desentoados / que em infantil felicidade / nos dão uma certa alegria.” É este prazer de se dizer que comove também um actor. E, a este propósito, não será despiciendo assinalar outra marca autobiográfica que se intromete em vários poemas – a da representação e do prazer de ser actor, seja porque, numa conversação, se “divagou entre o Teatro / e o gosto de ser Poeta”, ou pela importância atribuída a uma mascarilha que esconde ao mesmo tempo que representa, ou porque as formas de disfarçar saltam aqui e ali, ou porque, como partilha no poema “Autobiografia”: “O Teatro e a Poesia / abriram de par em par / portas da minha Verdade”. Poderíamos ainda pensar que, mesmo apesar de tudo isto, o Fernando Guerreiro autor se distanciava do poeta a que deu forma no livro… esforço inútil, porque, mesmo no poema, o seu nome fica registado, prova de que este trajecto é mesmo autobiográfico, seja pelas memórias, seja pelo diário, seja pelos retratos. E a demonstração disso ressalta num poema como “A arte de representar”, onde, bem próximo do fim, o poeta exclama: “Ah! Fernando, meu estupor! / Quando perdes a mania / de em tudo querer ser actor?!”
Estes textos valem bem a leitura pelo retrato traçado e pela identidade que se apresenta, pelas amizades que cauciona, pelo uso da ironia com relativa parcimónia, pela obliquidade do amor e da paixão… e pelo sorriso com que a nossa leitura é, por vezes, surpreendida.
Fernando Guerreiro, que assumiu no texto prefacial não ter o direito de submeter os amigos à prova de escreverem uma introdução para o seu livro, sabe que um diário ou as memórias são algo que constrói a fronteira da intimidade e do privado. Foi por isso que inaugurou o seu livro com um prefácio por si mesmo assinado, enquanto autor da obra, para dizer ao leitor que o objecto que lhe cai nas mãos está regado pelos afectos de uma vida, faz parte de “um Diário vivido e escrito em verso, sem retórica poética nem gramática cuidada”. Temos, pois, retratos dos dias de um “eu”, que podem ser lidos entre duas balizas: a da sinceridade, se acreditarmos que um diário é um depósito da autenticidade, ainda que mediada pela escrita, e a do artifício da escolha (nos textos seleccionados a partir de um período que desfila entre 1961 e 2008) e da forma (escolhendo o verso).
Mas estes poemas, além de terem essa marca do tempo, possuem também o desejo da inscrição, do partilhar instantes, sentidos e sentimentos com os outros, do fazer a história de um poeta, da recusa do esquecimento. A dado ponto do prefácio, há a confidência que alia a vida, a escrita e a publicação: “Ao chegar à minha idade e sem descendentes, olho para o espólio que juntei toda uma vida: os papéis que escrevinhei, as cartas que recebi, as dedicatórias que me escreveram, as honras com que me distinguiram, e surge-me uma pergunta angustiante que nunca tinha feito antes: quando eu partir, para onde irá tudo isto? Os livros, os quadros, as fotos, o Tempo e a traça se encarregarão de lhes dar destino. Mas aquilo que eu escrevi? Os Meus Afectos? Bolas!, ao fim e ao cabo são bocados do meu sentir, pedaços de mim, que, mal ou bem, com todos os meus defeitos e algumas possíveis qualidades, fui eu! É, pois, com este pensamento que deixo este livro a todos aqueles que o desejarem ler como prova incontestável de que existi.” Ora, o tal diário, a escrita, o livro ganham força porque atestam, porque comprovam que um “eu”, num determinado tempo e num não menos determinado lugar, existiu. A palavra escrita é, pois, o testemunho da existência, da vida. E tudo isto poderia ser uma verdade lapaliciana se não lhe associássemos, como temos de fazer, o facto de um autor se dizer e o pormenor de este autor ser também… actor! Duplamente actor, portanto: na profissão, porque representa, e como protagonista de uma vida, porque age.
Em cinco partes se apresenta dividido este livro, todas elas com título a preceito, insistindo na ideia do compromisso do poeta com a sua escrita e com a sua vida como objecto dessa escrita: “Folhas soltas de um diário” (a parte mais longa), “Gritos do meu silêncio”, “As marés do meu sentir”, “Pegadas do meu caminho” e “Foi pelo sonho que fui”.
Em todos estes títulos está nítida a presença do “eu”. Depois de se ter assinalado a marca da escrita diarística, vale a pena chamar a atenção para os títulos das duas partes seguintes, ambas manifestações do conflito que vai no poeta – o leitor ora é dominado pelo paradoxo entre os “gritos” e o “silêncio”, presente no título do segundo grupo de poemas (“Gritos do meu silêncio”), uns e outro impossíveis de conciliar e denotando uma veia lírica que canta as “coisas do coração”, o amor, os sentimentos, as dúvidas, a saudade, o que fica no interior do poeta, bem como é surpreendido por alguma sintonia ou identificação entre as “marés” e o “sentir”, constante no título do terceiro grupo (“As marés do meu sentir”), onde surge um conjunto de poemas que parte, muitas vezes, de circunstâncias ocasionais como um pombo no quintal, uma mosca incómoda, uma data, um momento de ironia, um beijo.
Se de conflito falei, entendido enquanto motor que suscita a acção, que desperta o “eu”, para as partes anteriores, creio que os dois últimos grupos de poemas são mais apaziguadores, levam o poeta mais ao encontro de marcas de identificação, venham elas do exterior ou tenham o “eu” como ponto de partida. A atenção dada ao papel do outro é sobremaneira visível na quarta parte (“Pegadas do meu caminho”), constituída por poemas sobre os amigos, sejam eles contemporâneos do poeta (e alguns têm acção bem conhecida no nosso meio e servem também para pontuar a tal dimensão autobiográfica deste livro, na medida em que são marcas de um tempo, de um lugar e também de uma vida) ou referências culturais que dominaram esse mesmo poeta, como são os casos de Bocage e de Sebastião da Gama, e um sobre a escola (por onde passam o afecto do apego – no uso do possessivo, “à minha escola” –, os professores e o tempo da infância, além de uma certa mística trazida pela memória da Escola Conde Ferreira, num tom que igualmente comprova o pendor memorialístico que Fernando Guerreiro quis imprimir neste livro).
Mas a vida, enquanto itinerário próprio, enquanto caminho assumido e construído pelo andar de um “eu”, surge forte no grupo de poemas que fecha a obra, intitulado “Foi pelo sonho que fui”, valendo recordar a resposta que esta afirmação pode ser ao convite deixado por Sebastião da Gama quando dizia “Pelo sonho é que vamos”, sendo também importante que neste conjunto vejamos aquilo que poderia ser um manifesto de vida, pois é nele que encontramos os poemas mais intensos do ponto de vista do retrato a legar, uma espécie de chave para desvendar todas as contradições de uma vida, com títulos em que a exposição do “eu” surge mais vincadamente explícita – “Liberdade em Sol Maior”, “Contabilidade”, “Autobiografia” e “Introspecção”.
Em torno dos poemas de Fernando Guerreiro ronda o amor, numa inconstância permanente e absoluta, ora sentido através do outro, ora acentuado no desejo, por vezes violento, outras vezes reduzido ao sexo, muitas vezes platónico, frequentemente causa de decepção, rondado pelo ciúme, deixando amargura, recalcamento, numa insegurança forçada porque “não há solução / para um coração quebrado”, porque o poeta se confessa farto de uma paixão que é “um ser e não ser”. Enquanto vamos passando pelos retratos – ou pelos momentos – que do amor nos falam nos poemas deste Memórias entre um sorriso, dificilmente não nos vem à memória aquele conclusivo e paradoxal terceto camoniano que irrompe depois de o poeta ter tentado definir o amor: “Mas como causar pode seu favor / Nos corações humanos amizade, / Se tão contrário a si é o mesmo Amor?”
A ironia suplanta muitas vezes a amargura e a resposta é dada, frequentemente, pela provocação, tom que surge evidente num texto como “Leilão”, em que o poeta anuncia pôr os seus sonhos à venda e, depois de fazer desfilar a variedade sonhadora, conclui num terceto: “Os meus sonhos estão à venda! / Vá, meus senhores! / Quem dá mais?” Esta marca provocatória, mesmo caprichosa, surge também dirigida a um “tu”, como em “Coisas do coração”: “Não quiseste quando eu queria, / Agora não quero eu…” Contundente provocação e não menos instigadora ironia ressalta também da definição de beijo num poema eivado de uma certa modernidade – depois de uma busca de definições sobre o beijo, que incluiu um passeio pela internet, o poeta conclui com a sua sapiente, defensiva e algo perversa opinião: “Eu, depois de tanto ouvir, / só tenho para dizer / com tantas explicações, / que o Beijo cá para mim / é forma de contrair / Gripes e Constipações!” O beijo serve, aliás, vários poemas, ainda que em registos diferentes – acentua, por exemplo, o amor e o início de uma relação (“Começámos com um beijo / o que eu chamo namorar”, no texto “História com princípio e fim”, temporizado por esse beijo e pelo final violento de uma bofetada, narrativa com o seu ingrediente de ironia no final – “E se aquele nosso começo / foi de forma apaixonada, / não foi menos engraçada / a bofetada do fim.”) Noutro passo, o beijo serve para despoletar os sentidos (“Quando me beijas gemendo / na tua sensualidade, / eu sinto que esses beijos / não acalmam meus desejos / nem me anulam a vontade.”, no poema “Indiferença”); num outro momento, o beijo é atirado “com a ponta dos dedos” para logo a seguir o poeta se interrogar sobre como terá ele sido recebido – e, uma vez mais, uma certo tom irónico conclui o raciocínio: “Se foi bem, / fico contente!... // Se foi mal, / olha… / Paciência!”
Pormenor bem significativo no campo dos afectos que neste livro perpassam é o olhar, seja o que irradia dos olhos do outro, seja o que decorre do gesto de contemplar através dos olhos próprios. É o poeta quem confessa esta fusão entre olhares, num fascínio mútuo – “Teu olhar não sei / o que é que ele tem, / uma coisa é certa: / ver-te sabe bem!” Noutro momento, deixa-se enredar na confusão suscitada no outro através do olhar – “Estou a ver como estranhaste / minha maneira de olhar”. Num outro texto, o olhar do poeta atinge um quase estado de encantamento, deixando-se levar pela imagem de um ser pouco preciso, quando regista: “Meus olhos seguindo o mover dos teus dedos / (…) / Meus olhos prendidos / ao mover dos teus lábios” Outra vez a sugestão camoniana do outro enquanto ser indefinível, em que se alicerça o amor platónico, sempre desejado e alimentado, mas nunca materializado. E, para que o poder que irradia de uns olhos fique completo, não podia faltar o fado ou a sorte, associado ao olhar, como acontece na “Balada dos olhos verdes”, estes definidos como “meu veneno, / minha razão de viver, / minha cura, / minha vida, / meu doce enleio de morrer. / (…) / Meu destino!”
Regressemos à questão autobiográfica, por ser essa a que abre e fecha o livro. O último grupo de poemas assume esse tom, mesmo porque um dos poemas se intitula “Autobiografia” e outro “Contabilidade”, títulos que se complementam porque uma escrita sobre o “eu”, sobre si próprio, é uma forma de registar o deve e o haver da vida. O último poema, não menos significativamente intitulado “Introspecção”, é uma despedida dos leitores e um quase pedido de desculpas – é que, no prefácio, Fernando Guerreiro recusara ser dominado pela “retórica poética” e, no final, o poeta, falando também de si, afirma a distância que está entre a Poesia (com P maiúsculo) e a sua obra – “Nós, os outros agraciados / por alguma habilidade, / apenas podemos dar / à Grande Mãe Poesia, / uns versos desentoados / que em infantil felicidade / nos dão uma certa alegria.” É este prazer de se dizer que comove também um actor. E, a este propósito, não será despiciendo assinalar outra marca autobiográfica que se intromete em vários poemas – a da representação e do prazer de ser actor, seja porque, numa conversação, se “divagou entre o Teatro / e o gosto de ser Poeta”, ou pela importância atribuída a uma mascarilha que esconde ao mesmo tempo que representa, ou porque as formas de disfarçar saltam aqui e ali, ou porque, como partilha no poema “Autobiografia”: “O Teatro e a Poesia / abriram de par em par / portas da minha Verdade”. Poderíamos ainda pensar que, mesmo apesar de tudo isto, o Fernando Guerreiro autor se distanciava do poeta a que deu forma no livro… esforço inútil, porque, mesmo no poema, o seu nome fica registado, prova de que este trajecto é mesmo autobiográfico, seja pelas memórias, seja pelo diário, seja pelos retratos. E a demonstração disso ressalta num poema como “A arte de representar”, onde, bem próximo do fim, o poeta exclama: “Ah! Fernando, meu estupor! / Quando perdes a mania / de em tudo querer ser actor?!”
Estes textos valem bem a leitura pelo retrato traçado e pela identidade que se apresenta, pelas amizades que cauciona, pelo uso da ironia com relativa parcimónia, pela obliquidade do amor e da paixão… e pelo sorriso com que a nossa leitura é, por vezes, surpreendida.
(texto lido na apresentação do livro, em Setúbal, em 21 de Setembro)
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